Hoje, a velha Europa atravessa
uma crise moral, duvida de si mesma e os seus habitantes já não estão
preparados para proteger os valores europeus, se for necessário. Os ucranianos não
só estão prontos, como são os únicos que estão a defendê-los com armas em punho
no campo de batalha.
por: Pavlo Klimkin, Ministro
dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Observador.pt
Em janeiro de 2019, a Ucrânia
viveu um acontecimento histórico: a Igreja Ortodoxa da Ucrânia recebeu o Tomo(s) de Autocefalia de Constantinopla e pôde renovar a sua
igreja independente canónica, da qual foi desprovida por mais de 300 anos.
A Ucrânia é essencialmente um
país cristão. Em 988 d.C, o Príncipe de Kyiv, Volodymyr, batizou todos os
habitantes de Kyiv no Rio Potchayna, trazendo-os para a luz da fé cristã. O
baptismo iniciou a verdadeira vida da nossa nação e do nosso país. Como cristão
fiel, estou convencido de que a adoção do cristianismo, antes de mais, trouxe a
salvação ao nosso povo, mas a acção de Volodymyr, além de uma escolha de fé,
foi a escolha de um caminho histórico, civilizacional, de valores morais e
culturais, ou seja, de tudo o que realmente forma uma nação.
A introdução da fé num único
Deus na Rus´, como era chamada a Ucrânia naquela época, uniu as tribos eslavas
orientais e reafirmou a autoridade do Príncipe de Kyiv. Cerca de meio século
depois, durante o principado do seu filho, Yaroslav, o Sábio, a Rus´ tinha um
território mais alargado e tornou-se um dos novos estados mais desenvolvidos na
Europa. Juntamente com a religião, a Rus´ foi enriquecida pela educação, pela
arte e pela cultura de Bizâncio. Kyiv era um centro espiritual e cultural
poderoso e influente, logo, em todo o país, construíam-se igrejas, escolas e
novas cidades. O apogeu e o poder da então Rus´ de Kyiv continua a ser hoje uma
base da nossa consciência estatal e orgulho nacional. A nossa adesão ao mundo
cristão representa, ao mesmo tempo, um envolvimento significativo na
civilização europeia. Podemos dizer que o primeiro passo rumo a uma família
europeia, unida por valores cristãos comuns, foi feito justamente na altura do
baptismo, em 988 d.C. Este passo determinou para sempre a essência europeia e o
destino europeu da Ucrânia.
A Europa pré-cristã deu à
humanidade os ideais da liberdade individual, da democracia grega e da
república romana, e o cristianismo deu a determinação fundamental do amor
(humanismo). A combinação da liberdade-democracia com o amor-humanismo forma a
essência civilizacional da Europa, na qual se baseiam hoje todos os seus
valores e princípios. Desta perspetiva, os ucranianos são pronunciadamente uma
nação europeia, uma vez que a moralidade cristã e a busca da liberdade se
tornaram, há muito, elementos fundamentais da nossa mentalidade.
A Ucrânia-Rus’ não só recebeu
benefícios do cristianismo, mas também deu muito à Igreja de Cristo, à Europa e
ao mundo inteiro. Após o batismo de Kyiv, o cristianismo começou a espalhar-se
pelas restantes tribos eslavas orientais, a norte e a leste da Rus’ de Kyiv,
onde, após alguns séculos, surgiram as atuais Belarus e Rússia. Por fim, a religião cristã espalhou-se pelo
vasto território dos Cárpatos a Kamchatka. Concordem, sem isso, o mundo moderno
seria completamente diferente.
Foi também a Rus’ de Kyiv, na
fronteira da Europa Oriental, que enfrentou, em meados do século XIII, a horda
tártaro-mongol, defendendo a Europa da invasão asiática. Mais tarde, os
cossacos de Zaporizhzhya foram participantes ativos na defesa da Europa e do
cristianismo face à invasão do Império Otomano. Recordem-se, pelo menos, as
batalhas de Khotyn (1621) e de Viena (1683) que salvaram a Europa Central da
escravidão.
Hoje, os cossacos são muitas
vezes considerados um fenómeno russo, selvagem e exótico, com um quê de pasquim
romântico. Porém, foram os cossacos ucranianos que criaram a primeira república
militar na nova Europa com uma liderança democraticamente eleita e proclamaram
a fé cristã. Em 1054, depois da divisão entre católicos e ortodoxos, foi também
na Ucrânia que se deu a reconciliação entre as duas denominações, com a
instauração da Igreja Grego-Católica. Apesar disso, a Europa sabe pouco sobre
esta contribuição da Ucrânia para a história da civilização europeia.
Atualmente, em termos de
diversidade religiosa, a Ucrânia é um espaço único, reunindo praticamente todas
as religiões da Europa Central num só país, as quais operam em paz e diálogo
amigável. A tolerância, solidariedade e abertura dos ucranianos é um reflexo da
Europa, dos seus valores fundamentais, dos quais nos podemos orgulhar e os
quais devemos proteger.
Note-se que a situação
religiosa na Ucrânia tem ainda outra característica — esta pós-traumática. A
ideologia soviética agressivamente ateísta, esmagou a igreja em todos os
sentidos, milhares de padres foram mortos durante a repressão stalinista e a
Igreja foi, em geral, proibida. Assim, o renascimento da religião e da
liberdade de religião, na consciência do nosso povo, estão intrinsecamente
ligados à luta contra o totalitarismo comunista, à democracia e a todos os
valores europeus.
A atual Ucrânia é, em grande
parte, um país neófito. E a fé dos neófitos é muito mais sincera e apaixonada.
Atrevo-me a dizer que, neste momento, o coração apaixonado da Europa bate na
Ucrânia. Hoje, a velha Europa atravessa uma crise moral, duvida de si mesma e
os seus habitantes já não estão preparados para proteger os valores europeus,
se necessário. Os ucranianos não só estão prontos, como são os únicos que estão
a defendê-los com armas em punho no campo de batalha. Parece claro que a Rússia
de Putin está a travar uma guerra não só contra a Ucrânia, mas também contra a
Europa e todo o mundo ocidental, e que esse conflito tem um caráter
civilizacional.
Na Rússia ortodoxa nunca houve
liberdade, democracia, abertura, nem tolerância como valores. Portanto, a
Rússia não pertence à civilização da Europa, apesar de todas as semelhanças
externas. A falta de liberdade distorce o princípio do amor cristão, muitas
vezes transformando-o em ódio em nome da Ortodoxia e do Império Russo.
Infelizmente, as diferenças civilizacionais são extrapoladas para a vida
religiosa na Ucrânia e, paradoxalmente, com total harmonia inter-religiosa e
interconfessional, temos uma divisão dentro da própria fé ortodoxa. A nossa
Ortodoxia hoje é dividida entre uma Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia,
independente da Rússia, e a Igreja Ortodoxa Russa, que opera no nosso país sob
o controlo direto de Moscovo.
Mas o principal é que esta
divisão não é de religiosa por natureza, já que os dogmas e cânones das duas
igrejas são quase idênticos. Trata-se, sim, do desejo da Rússia de manter o
controlo sobre a Ucrânia, sua antiga colónia, a todo custo e por qualquer meio.
Talvez seja difícil para os católicos entenderem esta questão, já que podem
estar absolutamente certos de que o pontífice não cumpre ordens do presidente
da Itália. Com a Igreja Ortodoxa Russa acontece exatamente o oposto: há muito
que a igreja está firmemente ligada ao aparato estatal russo, e é hoje um líder
ativo do conceito imperialista-chauvinista chamado “mundo russo”.
Estou convencido de que a autocefalia, que segue
plenamente a tradição ortodoxa (onde praticamente cada país tem a sua Igreja),
abriu caminho para unir todos os ortodoxos ucranianos numa mesma família. Estou
igualmente convicto da necessidade de reunir os povos da Europa em torno dos
seus valores – cristãos e democráticos, que por mais de mil anos determinaram o
sucesso da Europa e de toda a civilização ocidental. Hoje assistimos a uma
operação especial em grande escala para a sua destruição. O nosso dever comum é
protegê-los.