Cinco
anos atrás morreu em Kyiv a Centena Celestial — assim na Ucrânia são chamados os
manifestantes que foram assassinados ou mortalmente feridos em confronto com
polícia do regime do presidente Yanukovych no decorrer do movimento Maydan — principalmente
nos dias 18, 19 e 20 de fevereiro de 2014.
Exatamente
nesses dias Yanukovych tentava impedir a votação no Parlamento ucraniano (Rada
Suprema) pelo retorno à Constituição de 2004 [que limitava os poderes
presidenciais e transformava Ucrânia numa república semipresidencialista], apostando
na última tentativa desesperada de derrotar o movimento Maydan.
Nos
dias 18 e 19 de fevereiro, decorreu a tentativa de assalto das barricadas de
Maydan, por parte das forças do regime (destacamento “Berkut”), e em 20 de
fevereiro, os manifestantes na rua Institutska foram alvos de armas do exército,
principalmente AK e espingardas/rifles de precisão. Yanukovych tentou com todas
as suas forças reprimir o Maydan, mas não conseguindo e, assustado com suas próprias
ações, acabou por fugir, com todas as suas propriedades para a cidade russa de Rostov.
O dia 20 de fevereiro também é considerado o dia da vitória de Maydan – na sua última
batalha, os ucranianos não cederam, Maydan sobreviveu e derrotou o tirano.
Como tudo começou?
No
dia 18 de fevereiro de 2014 o Parlamento da Ucrânia deveria votar a lei que
previa o retorno à Constituição de 2004 – uma das demandas mais importantes de
Euromaydan, que privaria Yanukovych do seu poder ditatorial. Do lado de Maydan,
colunas de manifestantes se dirigiram ao Parlamento (na rua Hrushevsky) para
apoiar os deputados nesta votação – as pessoas estavam vestidas de forma
festiva, havia, entre eles, pouca gente pertencente às unidades da autodefesa de
Maydan.
A
coluna foi atacada por forças de segurança – que, aparentemente, pretendiam,
por ordem de Yanukovych, interferir na votação parlamentar. Destacamento da
polícia “Berkut” começou espancar todos os cidadãos que estavam se dirigir ao Parlamento.
“Berkut” era apoiado pelos bandos chamados de “titushki” (parcialmente polícias vestidos à civil, parcialmente marginais
contratados), que espancavam, com muita crueldade, os que caíssem no chão. As
primeiras mortes da futura Centena Celestial surgiram naquele momento.
As
colunas de manifestantes se retiraram até Maydan, onde sob as coberturas das
barricadas tinham único lugar no centro de Kyiv, à salvo da polícia e dos titushki. As forças de segurança
pressionavam – aparentemente cumprindo a ordem de Yanukovych – e os
manifestantes começaram criar uma cortina de fumaça e de fogo, incendiando os
pneus, colchões e até mesmo sacos de roupas quentes.
Em
19 de fevereiro, durante o assalto ao Euromaydan, polícias e SBU queimaram o Prédio
dos Sindicatos de Kyiv, que na época era a sede do comando do Euromaydan. Um
número, até hoje, indeterminado dos manifestantes ucranianos feridos morreu
naquele fogo, pois os andares de cima serviram
de hospital de campanha.
Jovens delinquentes, conhecidos como titushki, armados com as pistolas se escondem atrás da polícia ucraniana. |
Após
o seu ataque frustrado na noite de 18 à 19 de fevereiro, as forças de segurança
e “Berkut” deixaram as suas posições apressadamente. Quando os manifestantes novamente
foram marchar até o Parlamento, subindo a rua Institutska completamente vazia, foram
alvo direcionado de armas automáticas – uma emboscada planeada.
Fogo
contra os manifestantes foi aberto por uma unidade especial trajada de preto, muito
possivelmente a unidade especial das tropas do Ministério do Interior (VV) da
Crimeia, chamada “Tin” [literalmente “Sombra”, aparentemente comandada pelo
coronel da polícia ucraniana e SBU Serhiy
Asavelyuk, que já em abril de 2014 participou nos primeiros e duríssimos combates
da OAT contra os grupos organizados de mercenários russos, demonstrando a bravura
em combate].
As forças de segurança atiraram contra as pessoas quase à queima-roupa, esperando
que quando matarem os mais ativos, Maydan simplesmente se dispersaria.
Os atiradores do coronel Serhiy "Asa" Asavelyuk |
Apesar
de serem alvejados por armas de fogo, e tendo apenas os escudos metálicos e até
de contraplacado, os manifestantes ucranianos caiam, morriam, mas não recuavam,
tentando salvar seus companheiros e carregando os feridos por cima dos escudos.
Um dos vídeos mais terríveis foi filmado naquele dia na rua Institutska. Mostra
um menino ucraniano muito jovem [músico e estudante Dmytro Holubnichiy de Lviv
de apenas 16 anos, o mesmo que aparece no filme documental Winter of Fire] que
está na primeira linha de confronto. Vemos uma das barricadas móveis se movendo
para frente. Neste momento, Dmytro recebe a chamada da mãe – e diz “sim, mãe, neste
momento estamos com o pai à comer no refeitório, ... ouvi que na Institutska
estão à disparar, ... mãe, eu te amo”.
De seguida, ele olha para a barricada – acompanhado
pela câmara e, naquele momento, a barricada improvisada já está sob o fogo
cerrado das forças de segurança, um dos manifestantes está sendo alvejado mortalmente:
Apesar
do fogo da polícia, os manifestantes conseguiram recuperar rapidamente suas
posições, perdidas em 18 de fevereiro, e até mesmo expandir o território de Maydan.
O movimento Euromaydan sobreviveu.
Dezenas
de cadáveres e fogo de armas automáticas no centro de Kyiv impressionaram até
mesmo vários membros e ex-membros do “Partido das Regiões” – Yanukovych definitivamente
se transformou num ditador como Ceauşescu,
e o Parlamento da Ucrânia votou pela sua remoção do poder e pela detenção.
Nos
dois dias seguintes, Maydan enterrou os seus heróis mortos – dezenas de
milhares de moradores de Kyiv saíram para se despedir daqueles que morreram na
rua Institutska. Rada Suprema vota favoravelmente o retorno à Constituição de
2004, saída compulsiva das forças de segurança de Kyiv e retirada do ditador
Yanukovich do poder – que, juntamente com vários camiões/caminhões de dinheiro
e bens, com ajuda das forças russas foge para a cidade de Rostov.
Centena
Celestial
Para
não tornar o texto muito longo, falaremos brevemente sobre sete pessoas – tão
diferentes, mas muito semelhantes na sua rejeição ao mal e da ditadura.
Até o dia 24/02/2014 foram identificados 81 manifestantes e 12 polícias mortos. Os manifestantes eram da Ucrânia, Geórgia (3) e Rússia (2). |
Vitaly Vasiltsov, 36 anos, pai de duas filhas. Vitaly trabalhou como paisagista, amava a terra, a natureza e as plantas, mas acima de tudo – a esposa Natalia e duas filhas - Ivanka e Darynka. Morreu, atingido pelo disparo do franco-atirador.
Antonina
Dvoryanets, 61 anos, reformada/pensionista, da cidade-satélite de Kyiv –Brovary.
Foi morta em 18 de fevereiro, quando correu em defesa dos jovens espancados
pelo destacamento “Berkut”.
Dmytro
Maximov, 19 anos. Medalhista de prata e bronze das Surdolimpíadas de
judo/ô. Morreu na noite de 19 a 20 de fevereiro, durante o assalto das forças
de segurança ao Maydan – na explosão de uma granada perdeu um braço e morreu
por perda de sangue no Edifício dos Sindicatos.
Victor
Shvets, 58 anos de idade, reformado/pensionista, vivia nos arredores de Kyiv. Foi
ferido na rua Institutska, retirado de debaixo do fogo, mas morreu à caminho de
hospital. Na ambulância, mortalmente ferido, Victor conseguiu ligar para a
esposa e dizer “está tudo bem comigo”.
Olexander
Plekhanov, 22 anos, estudante de Arquitetura, praticava ciclismo e escultura. Morreu
em 20 de fevereiro de 2014, atingido pelo franco-atirador nas barricadas da rua
Institutska.
Oleksandr
Khrapchenko, 26 anos, cidade de Rivne, realizador teatral de formação, trabalhava
no Teatro Dramático de Rivne. Foi morto por um franco-atirador na manhã de 20
de fevereiro na primeira barricada na rua Institutska.
Ivan
Nakonechny, cidade de Kiev, 83 anos de idade. Na sua juventude, Ivan serviu
como marinheiro em Sebastopol, foi formado na escola naval, tornou-se tenente. Ivan
estava no Maydan desde início, disse que prestou o juramento militar e deveria
estar ao lado de seu povo. Recebeu ferimentos graves no momento do ataque do “Berkut”
em 19 de fevereiro de 2014, e morreu, devido aos ferimentos em março do mesmo
ano.
Nova
Ucrânia. Em vez de epílogo
Em
20 de fevereiro, após Maydan sobreviver o ataque de fogo, ficou óbvio que
Euromaydan tinha vencido. Naquele dia uma nova Ucrânia nasceu nas pedras negras
da fuligem e das pedras vermelhas do sangue das calçadas de Kyiv. E ao mesmo
tempo o acabou o mito do “mundo tríuno russo” – este mito imperial teve o seu
fim lógico na rua Institutska.
Depois
se segui a ocupação e anexação da Crimeia – Ucrânia seguiu seu próprio caminho rumo
a Europa, e a Rússia de Putin foi na direção oposta – mergulhando cada vez mais
nas profundezas da habitual servidão eclesiástico e das sanções.
Foto:
GettyImages | arquivos pessoais | Internet | Texto Maxim Mirovich e [Ucrânia
em África]
Dmytro
Holubnichiy em janeiro de 2019 toca a sua bandura
na Maydan:
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