As décadas de 1960-1990 foram marcadas, na União Soviética, pela luta implacável contra o sionismo e «cosmopolitismo sem raízes». Qualquer manifestação
da religiosidade ou de outros elementos de judaismo, eram perseguidos de uma forma bastante paranóica.
A propaganda estatal soviética rotulou a religião judaica como a «base ideológica do sionismo». «O judaísmo, tal como o sionismo, é uma
ideologia reaccionária e nacionalista, imbuída de misticismo e dirigida contra as tarefas revolucionárias internacionais do proletariado», rezava o livro soviético «Judaísmo sem
adornos», citado no artigo histórico da página ucraniana Verdade Histórica.
A minúcia do KGB no combate aos «agentes do sionismo» roçava muitas vezes a paranóia. Sinais de propaganda hostil foram procurados e encontrados até
em caixas de doces e decorações de árvores de Natal.
 |
«Miragem deliriosa»: propaganda visual soviética anti-Israel. Revista satírica «Crocodilo», 1970. |
Entre as maiores «ameaças a toda a humanidade progressista», com que a propaganda da URSS do pós-guerra assustava persistentemente os seus próprios cidadãos,
o sionismo ocupava um dos lugares de liderança. A ideologia e o movimento político que visavam o regresso dos judeus à sua terra natal histórica adquiriram características demoníacas
na boca das autoridades soviéticas. «Reacionário», «agressivo», «racismo», «imperialismo» e, claro, «fascismo» — estes rótulos estavam
abundantemente espalhados em cada um dos milhares de artigos, panfletos e livros da época dedicados ao «nacionalismo burguês judaico».
 |
«Sionismo vs fraternidade dos trabalhadores». Cartoon do livro de Trokhym Kichko «Judaísmo sem adornos», 1963. |
Com igual zelo, os porta-vozes do regime soviético «desmascararam» tanto a política de Israel (apoiando constantemente os países árabes que lhe eram hostis) como os verdadeiros e supostos apoiantes do sionismo entre os seus próprios cidadãos.
O rótulo «sionista» podia ser colado à qualquer cidadão de origem judia, independentemente das suas opiniões. As autoridades sublinharam diligentemente
que «não há anti-semitismo na URSS» e até criaram um «comité antisionista», formado pelos «judeus domesticados», uma parte da elite judaica, leal ao regime comunista.
As campanhas «anti-sionistas» soviéticas tornaram-se particularmente agudas durante a Crise do Suez (1956-1957), a Guerra dos Seis Dias (1967) e a Guerra do Yom Kippur (1973),
e no contexto da luta dos judeus soviéticos pelo seu direito de emigrar.
Hoje falaremos de cinco casos mais caricatos em que a caça aos «sionistas» tomou na Ucrânia soviética. Todas as histórias remontam ao reinado de Leonid
Brejnev e foram encontradas em arquivos do KGB da RSS da Ucrânia, que estão atualmente armazenados no Arquivo Setorial Estatal do SBU.
Os documentos são, na sua maioria, em forma de chamadas «mensagens informativas» em que o KGB reportava à alta direção do Partido Comunista da Ucrânia
sobre acontecimentos extraordinários que ocorriam na república.
1. 1968. Na cidade ucraniana de Odessa, o professor local e guia turístico Arnold Vdovets (1937) é detido e preso preventivamente. Vendia, dentro da sinagoga, e ao preço de 50 copeque, as «emblemas sionistas»
metálicas.
O documento não especifica o aspeto destas emblemas. Muito provavelmente eram estrelas de seis pontas (estrela «Magen David»). Este símbolo, que tem sido utilizado sob vários
nomes por muitos povos há milénios e está localizado na bandeira de Israel, causava uma «alergia» particularmente aguda no regime soviético.
As autoridades expuseram um «grupo criminoso» de Odessa-Leningrado pela produção e venda de emblemas «sionistas». Foi instaurado um processo-crime contra
Vdovets nos termos do art. 148.º do Código Penal da Ucrânia soviética — «Pratica da atividade comercial ilegal», punível de até três anos de prisão efetiva.
Mais tarde, e com a ordem expressa do Procurador-geral da URSS, Vdovets foi transferido de Odessa para o Leninegrado, onde o caso seria investigado e possivelmente julgado. O seu desfecho e o destino posterior dos praticipantes é desconhecido.
O documento do KGB sublinha que não havia nada de «antissoviético» nas ações dos detidos — é puro comércio. Entretanto, na URSS houve
casos em que todos compreendiam: uma pessoa era acusada de crimes económicos, mas o verdadeiro motivo da perseguição era a «nocividade ideológica» daquilo que se vendia ou fabricava.
Não é por acaso que o texto realça que as emblemas eram «sionistas». Por exemplo, na década de 1970-80, centenas de pessoas surdas e mudas (ou que se
passavam por estas) vendiam, nos comboios suburbanos os calendários de bolso com retratos de Estaline (e também as imagens eróticas) — dificilmente corriam o risco de ir para a prisão
por causa do retrato de Estaline, como aconteceu com Arnold Vdovets.
2. O KGB e os cidadãos vigilantes podiam encontrar «propaganda sionista» não só nas emblemas, mas também nos objectos completamente inesperados. Aconteceu, por exemplo, na cidade mineira de Shakhtarsk, na região de Donetsk.
O ano novo de 1981 aproximava-se, e as decorações «natalinas» para árvores de Ano Novo apareciam nas prateleiras das lojas locais, como é habitual. Os cidadãos vigilantes
repararam numa «estrela de seis pontas semelhante ao símbolo sionista» no brinquedo «Cometa».
A venda de «Cometas» foi interrompida. A fábrica de Terebovlya, na região de Ternopil, onde foi feito o brinquedo «destrutivo», foi investigada pelo departamento
local do KGB. Os agentes descobriram onde foram entregues as decorações de Ano Novo e enviaram informações aos colegas de outras regiões.
Um dos sites de classificados está a vender um brinquedo soviético «Cometa» com uma estrela de seis pontas. Talvez os produtos da fábrica de Terebovlya que
indignaram os habitantes de Shakhtarsk fossem exatamente iguais.
3. A fábrica de chocolate «Svitoch», de Lviv, opera há quase um século e meio. Para celebrar o aniversário da revolução bolchevique de outubro
de 1917, em 1967 a fábrica lançou um lote especial de doces «Leite de pássaro». Os rebuçados com o novo design de caixa foram chamadas «Fogo de artifício festivo». Estaria tudo
bem, até que alguém (não se sabe se foi o próprio KGB ou «cidadãos vigilantes») reparou que o desenho no pacote repetia o desenho de um selo postal israelita.
Se comparar duas fotos do ficheiro, a semelhança não é óbvia. Mas tudo isto é uma cópia a preto e branco de baixa qualidade. Se encontrar o mesmo selo
na Internet, torna-se claro: a imagem de fogo de artifício é realmente a mesma.
 |
O design de doces (à esquerda) e o selo Israelita (à direita) |
O selo original foi emitido pelos Correios de Israel em 1966 para o Dia da Independência. Foi uma série inteira desenhada pelo famoso artista israelita Eliezer Weishoff. Ele é
autor de centenas de cartazes, postais e selos, moedas e notas, logótipos, ilustrações para livros infantis, monumentos e esculturas. Weishoff ainda está vivo, tem 87 anos.
 |
Fontes: fineartamerica.com, cafepress.com |
É o trabalho deste artista que vimos na editora, chamado «Fogo de artifício sobre Tel Aviv». Está numa base de dados de imagens que várias empresas comerciais
podem imprimir na sua t-shirt, almofada, caneca e assim por diante.
Há uma outra ligação ténue entre Weishoff à Ucrânia. É coautor do desenho da nota de 50 shekels de 1985. A nota retrata o escritor e Prémio
Nobel Shmuel Yosef Agnon, que nasceu em Buchach, vila na atual região ucraniana de Ternopil.
 |
O Prémio Nobel Shmuel Yosef Agnon, natural de Buchach, região de Ternopil, é destacado na nota de 50 shekels. Imagem: wikipedia |
Mas voltemos à Direcção do KGB de Lviv. O artista desenhador da caixa de doces, Petró Chekanov, foi trazido ao KGB, onde confessou tudo: sim, um amigo judeu polaco
enviou-lhe exatamente este selo israelita para a sua coleção. O artista gostou do desenho e decidiu pedi-lo «emprestado». Exclusivamente com fins lucrativos e, como consta no documento, «sem qualquer intenção».
Qual poderá ser a tal «intenção» neste caso? Porque razão o caso interessou ao KGB em primeiro lugar? Seguramente o KGB não estava preocupado
com os direitos de propriedade intelectual de Eliezer Weishoff. Obviamente, a questão era que o selo não era um selo qualquer, mas sim, um selo israelita. Embora não existia nenhuma imagem «criminosa» como a estrela de seis
pontas no desenho, o KGB mesmo assim teve de perguntar se Chekanov estava de alguma forma secretamente a pretender promover ideias sionistas. Aparentemente, o artista de Lviv não foi mais afetado neste caso. Ao contrário de Weishoff, a Google não sabe nada sobre o destino posterior do Chekanov.
4. Os postais israelitas que vinham de Israel para cidadãos soviéticos. Em 1970, os funcionários do KGB, que violavam o segredo da correspondência nas estações
de correio, reuniram uma «colecção» inteira de panfletos «de natureza militarista, exortando o poder do exército israelita».
 |
Informe do KGB sobre os «postais de caráter militarista» com anexo de 18 postais |
 |
Um dos postais, retirados, ilegalmente, pelo KGB do correio |
A maioria delas são fotos a cores de desfiles militares e de soldados das Tsahal/FDI na Velha Jerusalém, de que Israel assumiu o controlo muito recentemente — durante a Guerra
dos Seis Dias, em 1967. O conjunto incluía ainda um postal americano com a inscrição impressa: «Dos judeus dos EUA para os judeus da URSS. Não nos esquecemos de vós e não vos
esqueceremos.» No verso, há sobretudo saudações escritas à mão por familiares, histórias sobre a vida em Israel e comentários sobre as fotos. Os originais destes postais
estão armazenados no arquivo do SBU — o que significa que, na altura, não chegaram aos seus destinatários.
 |
«Querida Anna, Syoma e Khayechka!» |
5. O judaísmo não foi formalmente proibido na URSS, mas os fiéis e o clero estavam constantemente sob pressão das autoridades. A propaganda soviética rotulou
a religião judaica de «base ideológica do sionismo».
«O judaísmo, tal como o sionismo, é uma ideologia reaccionária e nacionalista, imbuída de misticismo e dirigida contra as tarefas revolucionárias internacionais
do proletariado», escreveu o publicista e candidato a ciências filosóficas Trokhym Kichko no seu livro «Judaísmo sem adornos» (1963).
Na mesma obra, o autor queixa-se de que «a imprensa burguesa está a fazer alarido sobre o anti-semitismo fabricado e o encerramento 'administrativo' de sinagogas na União
Soviética».
Embora, foi precisamente este encerramento administrativo da sinagoga que ocorreu na cidade ucraniana de Mykolaiv em 1962. Era a única sinagoga em funcionamento em toda a região. O comité executivo regional
cancelou o registo da comunidade religiosa.
 |
Informe do KGB sobre cancelamento do registo da comunidade judaica de Mykolaiv |
O relatório do KGB enfatizou que os membros da comunidade «apoiavam os fundamentos reacionários do judaísmo e incitavam tendências nacionalistas entre uma certa
parte da população judaica». Durante vários anos consecutivos, os judeus de Mykolaiv tentaram devolver o registo da comunidade e retomar o funcionamento da sinagoga, mas tudo em vão. Depois,
começam a reunir-se para orações nas casas dos representantes da comunidade.
Tais reuniões (no judaísmo são designadas por minyans, e nos documentos do KGB eram designadas pelo termo pejorativo de «encontrões») eram, obviamente,
proibidas na URSS. Além disso, como observam os chekistas, alguns dos participantes dos «encontrões» comentavam a política soviética no Médio Oriente sob «posições
ideologicamente prejudiciais».
Um dia, em 1968, a polícia e as autoridades locais organizam uma rusga numa «sinagoga ilegal». Estavam no local 35 pessoas. O ficheiro do SBU contém imagens das filmagens
operacionais da rusga.
 |
Minyan na sinagoga de Mykolaiv |
Os autores do documento realçam dois pontos. Primeiro, a comunidade recolheu donativos, que foram gastos (sem qualquer controlo estatal) para ajudar aos judeus necessitados. A criação
de um fundo de caridade deste tipo, como consta no documento, supostamente enfatizava a separação dos judeus e «incitava neles tendências nacionalistas». Em segundo lugar, alguns dos participantes
nos «encontrões» não eram crentes, pelo que a «sinagoga clandestina» era, ao mesmo tempo, uma espécie de «clube nacional».
 |
Informe do KGB sobre a «sinagoga clandestina» |
Quatro organizadores dos «encontrões» (todos anciões com idades superiores aos 70 anos) foram responsabilizados administrativamente por «violar a legislação soviética
sobre a separação entre a Igreja e o Estado».
Como esclarece o investigador Viktor Voynalovych no seu artigo «Pressão às comunidades judaicas na Ucrânia nas décadas de 1950 e 1960», todos os quatro receberam
multas de 50 rublos cada (valor equivalente aos 84,74 dólares americanos ao câmbio oficial soviético). O dinheiro e os bens apreendidos foram confiscados. A imprensa local escreveu sobre a exposição do «grupo de elementos clericais».
O historiador Volodymyr Shchukin escreve que, no início da década de 1970, o minyan continuaram sendo organizados durante algum tempo, apesar da perseguição. Entretanto,
devido à pressão e intimidação das autoridades por parte de familiares dos seus membros activos, as reuniões para orações conjuntas foram gradualmente cessando por completo.
A sinagoga de Mykolaiv retomou as suas atividades em 1992, já após a proclamação da Independência da Ucrânia.