Isto
é o mais sagrado,
Não
se esqueça:
Ascendendo
ao céu,
Ou
mergulhando nas profundezas do mar,
Dividindo
a alegria com os amigos,
Ou
enfrentando seus oponentes sozinho,
Você
é a Letônia.
–
O.Vācietis
Sentada em sua sala, rodeada de livros e
desenhos de crianças, uma senhora de grandes e expressivos olhos azuis recita,
com uma voz calma e pausada, poesia para seus netos. Assim como o livro de
poesia de Ojārs Vācietis, acomodado em seu colo, ela também havia sido
censurada. Suas mãos rudes – fruto do GULAG soviético – seguram-o com
terneza, quase como se abraçassem centenas de velhos amigos, perdidos pelo
totalitarismo.
Essa senhora de olhos azuis e voz calma é Lidija Doroņina-Lasmane.
Apesar de não gostar muito dos holofotes – prefere livros e netos – há poucos
na Letônia que não a conheçam. Foi a protagonista do documentário “Lidija”
(2017), de Andrejs Verhoustinskis.
A
Família e a Guerra
Lidija nasceu em 28 de julho de 1925 na
bucólica vila costeira de Ulmales. Sua família era batista, com três irmãos (um
veio a falecer cedo) e ela cresceu em uma atmosfera de amor, que moldaria seu
caminho pelo resto da vida. Lidija se batizou na igreja batista de Saka aos 13
anos, um ano antes da Segunda Guerra Mundial.
A região de Ulmales, Kurzeme, é igual a vila
descrita: plana, campestre, bucólica. Mas não seria assim por muito tempo. Em
1940, a Letónia foi ocupada pela União Soviética, que logo começou as
deportações em massa de elementos “contra-revolucionários”: políticos,
pastores, professores e quem mais pudesse desafiar a nova ordem.
A situação mudou novamente quando a Alemanha
nazista invadiu a União Soviética em 1941 – e com ela, a Letónia – trazendo
seus aparatos de censura, perseguição e execução.
“No outono, os nazistas vieram e abateram todos os judeus de Pavilosta quase
na frente dos nossos olhos. Havia também meus colegas de escola, a garota com
quem eu brincava. Eu percebi que [o totalitarismo] era uma insanidade tão
grande que se tinha que abandonar uma parte de si mesmo, sob nenhuma
circunstância deveria sucumbir a ela”,
relatou Lidija ao compartilhar suas memórias.
Em 1944, 200.000 tropas alemãs, recuando
após sucessivas derrotas no front, foram cercadas pelo Exército Vermelho em
Kurzeme. Sem ter para onde recuar, as tropas nazistas e o exército soviético
transformaram a região em uma zona de total desolação e destruição.
A
Ocupação
A jovem Lidija decidiu que faria de tudo
para salvar vidas. Em 1946 começou a estudar em uma escola de enfermagem em
Riga. Nessa época, a União Soviética, após ocupar novamente a Letônia,
continuou com a “limpeza” de opositores. Em novembro do mesmo ano, Lidija e sua
família foram presas por abrigarem e fornecerem curativos para um grupo de
letos que resistiam à ocupação.
“Eu cresci na velha Letónia, formada com meu
país e seu espírito. Eu não podia aceitar ocupação, era inteiramente contrária
a minha natureza. Esses grandes países não tinham o direito de nos conquistar.
Deus deu a cada um a sua terra onde morar e servi-lo.”
Lidija e sua família foram levadas pelo
serviço secreto soviético, a Tcheka MGB (precursora da KGB) para serem
interrogados na sede do serviço em Riga. A jovem de 21 anos foi condenada a, no
mínimo, 5 anos de prisão e mais 3 de retenção de direitos por “traição à
pátria”. Seu pai foi condenado a 10 anos e sua mãe, 3 anos em um hospital
psiquiátrico.
Na foto à esquerda: Lidija no final dos anos 1960. Na foto à direita: Lidija com a sua filha Ari no início dos anos 1950 | fotos: Laikmeta zīmes |
A
Traficante de Livros
Lidija
retornou a Letónia, mas não tinha lugar para morar; sua família havia perdido
tudo. Nos anos seguintes, começou a guardar e redistribuir livros que haviam
sido proibidos pela censura, o que a levou a ser presa novamente em 1970.
Passou dois anos na prisão feminina de Riga. “Quando fui presa, não tive medo,
pois defendia algo justo. Eu tinha certeza de que eles estavam errados. Mas
havia a sensação de que havia muito a se fazer, muito a planejar, mas eu estava
lá, sem sentido”.
Após sair da prisão, continuou seu trabalho
com fervor ardente, recolhendo não só músicas, livros e filmes proibidos, como
também memórias de outros prisioneiros políticos e exilados.
Sua resistência trouxe a polícia secreta
mais uma vez até sua porta na manhã de 6 de janeiro de 1983. Lidija reconta que
o jovem que a interrogou sobre o livro que havia distribuído, Piecas Dienas (Cinco
Dias, do escritor Anšlavs Eglītis), era também um letão: “O investigador me disse
‘Está escrito aqui, e você o leu e divulgou, como se a Letônia estivesse
ocupada, como se em 1941 tais e tais pessoas tivessem sido deportadas. O que
você pode dizer sobre isso?’ Eu digo a ele, ‘o que devo dizer sobre isso? Somos
dois letões. Você não nasceu ontem e sabe bem que a Letónia está ocupada.’ Mas
ele não tinha nada para dizer.”
Lidija detida pelo KGB em 1983 | foto: Latvijas Valsts arhīvs |
Em 1987, Lidija e outros prisioneiros foram
perdoados no Glasnost de Gorbachev. Lidija visitou a Suécia e viu centenas de
refugiados letãos cantando hinos proibidos e segurando fotos de prisioneiros
políticos, inclusive fotos suas.
A
Vitória
Depois da Independência, Lidija começou a
visitar antigos lugares da KGB e recolher documentos de assassinatos e
execuções. Ela conta que uma vez achou entre os documentos a foto do delator
que possibilitou sua prisão: “como pode fazer isso? Ele morreu e eu não pude
saber. Se pudéssemos falar, poderíamos nos reconciliar. É fácil perdoar na
mente, mas, para sentir isso no coração, foi necessário tempo”.
Lidija com alguns dos livros proibidos na URSS | foto: letoniabrasil.org |
Participou também do trabalho “Akcija dzīvībai”
(Ação pela Vida), em que atendia mulheres afligidas com gravidez indesejada,
muitas vezes sofrendo também de depressão e estigma social. Por sua luta contra
totalitarismo e seus trabalhos, Lidija é uma das indicadas para o prémio Nóbel
da Paz de 2018.
“Hoje posso cantar de coração: Dievs, svētī
Latviju! (Deus abençoe a Letônia!). Eu tenho uma filha e três netos, mas também
inúmeros outros ‘netos’ pelo mundo que buscam justiça. Eu tenho uma igreja
maravilhosa, e moro em um país livre, a Letônia. Espero que agora as pessoas
aprendam a amar uns ao outros, não importem as circunstâncias. E espero que
aqueles que estão no poder saibam usá-lo com sabedoria”.
Lidija em sua igreja em Riga, a Mateja Baptistu Draudze | foto: letoniabrasil.org |
Trechos retirados do periódico “Tikšanās” (Reunião),
de dezembro de 2001 a janeiro de 2009. Traduzidos livremente por Andreis Purim.
Bónus
Ler mais (em letão) | foto: letoniabrasil.org |
A
história da dissidente letã Lidija Doroņina-Lasmane: presa pelas autoridades
comunistas soviéticas em 1946, 1970 e 1983: ler
mais em letão.
Bónus
II
Ler mais | foto: Wikipédia |
Ler
mais sobre a famigerada “deportação de junho”, uma deportação em massa, executada pelas
autoridades comunistas da União Soviética de dezenas de milhares de pessoas dos
territórios ocupados em 1940-1941: Estados Bálticos, Belarus Ocidental, Moldova
e Ucrânia Ocidental.
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