Após
quatro anos e cerca de 10.000 mortes (⅓ deles
civis), a guerra da Rússia
contra Ucrânia (tornando-a a mais sangrenta da Europa desde a guerra nos Balcãs
nos anos 1990 e uma das mais duradouras na Europa em quase um século), caiu no
esquecimento da agenda política do Ocidente.
por:
David Bond e Roman Olearchyk em Avdiivka na Ucrânia, 6/09/2018 (* versão curta)
[...]
As potências ocidentais culpam o presidente russo Vladimir Putin por ter
iniciado o conflito, anexando ilegalmente a Crimeia em 2014 – a primeira
apropriação do território europeu desde o fim da II G.M. – fornecendo o
catalisador para que os separatistas apoiados pela Rússia tomarem de assalto as
cidades ucranianas de Donetsk e Luhansk.
“Na
sua esperança de novamente recriar, o que eles vêem como a grande Rússia, eles
estão avançando ao oeste na Europa”, diz o tenente-general Serhiy Nayev,
comandante das forças conjuntas da Ucrânia. “A Rússia não tem interesse em
baixar a temperatura, nem com o mundo ocidental, nem com Ucrânia”.
Por
isso, embora a guerra chegou ao impasse, ainda continua a arder.
Soldado ucraniano Anton Akastyolov (23) in Avdiivka © Charlie Bibby/FT |
Em
conformidade com os termos dos acordos de cessar-fogo de Minsk de 2015, ambos
os lados são impedidos de usar força aérea, tanques e armamento pesado. Isso
criou as condições para uma guerra terrestre de “atrito” que marca o retrocesso
para outra era, onde soldados lutam em trincheiras com morteiros, granadas e
fogo de franco-atiradores. Consequentemente, o número de mortos continua a
aumentar. A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), que
monitora o conflito a guerra, disse em agosto [de 2018] que um total de 30
civis foram mortos em ambos os lados até agora neste ano. O exército ucraniano
informa que 80 dos seus militares morreram no mesmo período.
Não
há sinais de resolução à vista. A guerra estava praticamente fora da agenda do
encontro de Helsínquia entre o presidente dos EUA, Donald Trump, e Putin, em
julho de 2018. E apesar das tentativas dos EUA e dos seus aliados para modernizar
e armar as forças militares da Ucrânia, com 200.000 efetivos, as pessoas em
Avdiivka se sentem abandonadas pelo Ocidente.
Lyubov Kolesova segura o retrato de seu filho desaparecido Ihor Grizenko na sua casa em Avdiivka © Charlie Bibby / FT |
“Eles
não se importam”, diz Lyubov Kolesova, uma residente [local] cujo filho de 28
anos desapareceu nos primeiros dias da guerra. “Se você não mora aqui, você não
vai entender”.
A
auto-estrada/rodovia ucraniana № 20 corta os campos aparentemente infinitos de
girassóis, fazendo com que ela se pareça mais com o sul da França, do que com a
fronteira da Europa com a Rússia. Antes da guerra, esta estrada era um dos
símbolos do progresso económico ucraniano, construída principalmente para o Campeonato / para a Copa da Europa de Futebol de 2012.
Campos de girassóis ao longo da estrada auto-estrada № 20, que leva aos muros com cicatrizes causadas pelas munições em Avdiivka © Charlie Bibby / FT |
Agora
faz parte da linha de frente. Como a estrada se aproxima de Avdiivka, a cerca
de 20 km do reduto separatista de Donetsk, torna-se muito traiçoeira para
continuar. O acesso à cidade só pode ser feito através de estradas secundárias
esburacadas.
No
entanto, o dia em Avdiivka pode ser enganosamente calmo. Os pais passeiam pelas
ruas com crianças pequenas, enquanto um grupo de reformados/aposentados criou
um mercado improvisado no centro, vendendo leite e outros produtos.
Mas
a guerra nunca está longe.
Ao
longe, podem ser ouvidos disparos ocasionais, junto com uma explosão profunda [causada] pelos bombardeamentos. Na entrada de seu apartamento construído na era soviética
na rua Semashko, Galya [Galina], de 51 anos, pergunta: “Por quanto tempo [mais]
devemos suportar isso? Já faz cinco anos. Isso vai continuar por mais 20 anos?”
Grande
parte dos combates em Avdiivka ocorre numa área industrial nos arredores da
cidade, onde as forças de ambos os lados estão bem entrincheiradas. Pavló, um
soldado ucraniano barbudo de 45 anos, diz que a natureza da guerra mudou.
Pavló, um soldado ucraniano de 45 anos, diz que a natureza da guerra mudou © Charlie Bibby / FT |
“Em
vez do armamento pesado, temos franco-atiradores, o que pode ser ainda mais
perigoso porque você relaxa um pouco”, diz ele. “Então uma bala atinge a sua
cabeça”.
Agarrando
o seu AK Kalashnikov, que parece uma relíquia dos anos 1970, o seu colega Artur
diz: “Quanto mais rápido você se move, mais tempo você vive. A menor distância
entre as nossas posições é de 70 à 80 metros, você pode ver com os seus olhos”.
Às
vezes, ele diz, eles estão tão perto do inimigo, que se pode ouvir os distintos
sotaques dos oponentes: “da Rússia, Ossétia do Sul e Chechénia”.
Sua
experiência apoia as reivindicações – negadas por Moscovo – de que exército
ucraniano enfrenta uma força híbrida de militares russos e militantes
separatistas locais sob o comando do Kremlin. “Eles criaram as forças
militares. . . [Não] se engane sobre isso, as forças no leste [da Ucrânia] são
100% comandadas pela Rússia”, diz Kurt Volker, o enviado especial dos EUA para Ucrânia.
[...]
Obter uma imagem clara da vida do outro lado da guerra é difícil. As
autoridades da “república popular” de Donetsk, apoiada pela Rússia e não
reconhecida internacionalmente – recusaram o acesso ao Financial Times para
reportar do seu território, mas as pessoas da “dnr” cruzam a linha de frente
regularmente.
Num
ponto de passagem civil em Maiorske, perto da cidade separatista de Horlivka,
uma dúzia de carros faz fila para entrar na “dnr”. O Comité Internacional da
Cruz Vermelha disse que 1 milhão de pessoas cruzam o território em locais como
este todos os meses, que se fecham periodicamente quando os combates acentuam.
Esperando
no carro, a residente de Horlivka, Svitlana, explicou que muitas vezes faz a
viagem ao lado controlado pela Ucrânia com seu pai, Nikolay, para receber sua
pensão e comprar produtos, alguns dos quais são mais baratos [na Ucrânia].
“Todos
os daquele lado também querem que essa guerra termine”, diz Svitlana, apontando
para os territórios apoiados pelos russos. Seu pai acrescenta: “Vivíamos em paz
e compreensão antes. Tudo estava bem”.
[...]
Alexander Hug, vice-chefe da missão da OSCE na Ucrânia, que visitou Donetsk no
início de agosto, diz: “Se você vai aos distritos em Donetsk, perto da linha de
contato ou do aeroporto [de Donetsk] destruído, a vida é muito difícil. Os
padrões de vida são maus/ruins, a infra-estrutura está muito danificada. Gás,
eletricidade e água são difíceis de encontrar.
[...]
Em áreas controladas pela Ucrânia, as autoridades não estão apenas tentando
repelir um inimigo apoiado pela Rússia, mas também estão conquistando os
corações e as mentes dos falantes de russo. Com isso em mente, o exército e
outras instituições do Estado bloquearam a televisão russa e visitam creches e
escolas para promover ensinamentos patrióticos.
Militares ucranianos visitam um jardim-de-infância perto da vila de Ivanivske © Charlie Bibby / FT |
“Lutar
contra a Rússia é difícil, porque objetivamente é um país maior, com mais poder
militar”, diz o major-general Oleksandr Holodnyuk, visitando um jardim-de-infância
na vila de Ivanivske. “Mas ganhar as mentes do nosso povo é uma batalha ao
nosso alcance que deve ser vencida”.
Soldados ucranianos são submetidos aos exercícios de treino © Charlie Bibby / FT |
Nas
fases iniciais da guerra as forças ucranianas foram prejudicadas pela falta de
treino/treinamento de combate e equipamentos soviéticos enferrujados. Eles
também ficaram paralisados por outro retrocesso da era da guerra fria: uma estrutura
de comando de cima para baixo que fez as fileiras do meio do exército
congelarem quando seus oponentes usaram guerra eletrónica para interferir nas
comunicações [ou quando os proxies russos usaram os civis como escudos humanos].
Desde
então, os EUA e outras potências ocidentais têm trabalhado para modernizar as forças
da Ucrânia – incluindo mais de 1 bilhão de dólares em apoio financeiro e a decisão
da administração do [Donald] Trump em março [de 2018] em fornecer [à Ucrânia] 210 mísseis
Javelin.
As
armas são vistas por analistas militares como um fator de mudança no caso de um
ataque total das forças apoiadas pela Rússia. O tenente-general Nayev disse que
o apoio ocidental é necessário para que a Ucrânia resista à ameaça russa nas
portas da Europa, mas acrescentou que suas próprias tropas já foram
transformadas.
O tenente-general Serhiy Nayev chega ao centro de treino em Pokrovsk, no leste da Ucrânia © Charlie Bibby / FT |
O
general, uma figura imponente que comandou tropas na sangrenta batalha pelo
aeroporto de Donetsk [DAP] em 2014, chegou a um campo de treino/treinamento militar
perto da cidade de Pokrovsk, no leste [da Ucrânia], para assistir os militares testarem
a resposta caseira da Ucrânia ao Javelin – os [mísseis] Stugna-P.
Ele
diz que as forças da Ucrânia não estão “apenas capazes, mas prontas” para
repelir os separatistas apoiados pelos russos, que ele afirma ter 400 tanques –
mais do que o Reino Unido. Antes de testar os Stugnas, as tropas lançaram uma
série de armas da era soviética, incluindo mísseis Shturm e Fagot, demonstrando
claramente as desvantagens que enfrentavam nos estágios iniciais do conflito. [...]
Por outro lado, os Stugnas atingiram o alvo quatro vezes em quatro lançamentos,
provocando um grito de alegria do general Nayev: “Sim! Veja . . . são Made in
Ucrânia”.
[...]
Para ajudar Ucrânia a conseguir [que as suas forças armadas cheguem aos padrões
na NATO/OTAN] um grupo de mais de 200 instrutores americanos está baseado em
Yavoriv, um vasto complexo militar perto da fronteira da Ucrânia com a Polónia.
Aqui, soldados seniores dos EUA, como o sargento Jamah Figaro, instruem os
oficiais ucranianos sobre como treinar suas tropas. “Eles são muito motivados”,
diz o sargento Figaro. “É o país deles. Eles estão tentando recuperar as suas
terras”.
Jamah Figaro, sargento dos EUA, treina ucranianos no Centro Internacional de Treino de Yavoriv © Charlie Bibby / FT |
Sargento Figaro diz que os EUA também estão aprendendo com seus colegas ucranianos: “O
exército dos EUA estava [acostumado a] operar em contingências como no Iraque e
no Afeganistão, diz ele, referindo-se às guerras ofensivas em que os EUA
dominavam o espaço aéreo. “Não é nada parecido com o que os ucranianos estão
enfrentando, essa guerra de trincheiras é como uma luta mais próxima que eles
estão lutando. Não vemos algo assim desde a segunda guerra mundial”,
acrescenta.
Em
Kyiv, a mais de 700 quilómetros da zona de guerra oriental, Stanislav Fedorchuk
ergue a mão e coloca-a com ternura sobre a foto de seu amigo Yuriy Matushcak.
Apelidado de “Vento”, Matushcak morreu na batalha de Ilovaysk,
uma pesada derrota das forças ucranianas, em agosto de 2014.
Stanislav Fedorchuk junto ao muro do mosteiro de São Miguel em Kiev, dedicado aos ucranianos que morreram na guerra © Charlie Bibby / © Charlie FT Bibby / FT |
Seu
rosto agora está entre centenas de outros na parede externa do mosteiro de São
Miguel, em Kyiv, um lembrete para aqueles que passam em uma agradável noite de
domingo que este é um país em guerra.
“Estávamos
esperando um ano para saber se ele tinha morrido ou não. Não tínhamos corpo”,
diz Fedorchuk, acrescentando que seus restos mortais foram depois encontrados e
enterrados com outros soldados mortos. Fedorchuk saiu de Donetsk em 2014 e é
uma das cerca de 1,5 milhão de pessoas deslocadas devido ao conflito à guerra.
À
medida que a guerra chega ao quinto ano, a perspectiva de uma solução militar
ou diplomática parece remota. Os EUA e outras potências ocidentais querem que
as forças russas deixem Ucrânia, mas Putin não mostra sinais de mudar a sua
abordagem. O conselheiro de segurança nacional dos EUA, John Bolton, declarou
recentemente que, quando se trata da Ucrânia, Washington e Moscovo vão “ter que
concordar em discordar”.
Um casal se despede na plataforma de comboio/trem em Kyiv, quando o militar parte ao leste da Ucrânia © Charlie Bibby / FT |
Os
EUA intensificaram as sanções e o Reino Unido está pressionando por mais ações diplomáticas.
Ainda assim, o tenente-general Nayev exorta Ocidente a despertar para a
ameaça da Rússia e até faz comparações com o apaziguamento [do Ocidente perante
Hitler e Estaline] na década 1930. “Vimos como esse apaziguamento vergonhoso
trouxe a segunda guerra mundial”, diz ele.
Este
artigo foi emendado para corrigir o número de mortes contadas pela OSCE.
@The
Financial Times Limited 2018. Todos os direitos reservados.
Este
artigo foi emendado para corrigir alguns poucos termos politicamente corretos, usados
pelo The Financial Times Limited 2018.
Tradução
portuguesa: @Ucrânia em África.
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