sábado, setembro 08, 2018

Ucrânia: na linha de frente da guerra esquecida da Europa *

Após quatro anos e cerca de 10.000 mortes (⅓ deles civis), a guerra da Rússia contra Ucrânia (tornando-a a mais sangrenta da Europa desde a guerra nos Balcãs nos anos 1990 e uma das mais duradouras na Europa em quase um século), caiu no esquecimento da agenda política do Ocidente.

por: David Bond e Roman Olearchyk em Avdiivka na Ucrânia, 6/09/2018 (* versão curta)

[...] As potências ocidentais culpam o presidente russo Vladimir Putin por ter iniciado o conflito, anexando ilegalmente a Crimeia em 2014 – a primeira apropriação do território europeu desde o fim da II G.M. – fornecendo o catalisador para que os separatistas apoiados pela Rússia tomarem de assalto as cidades ucranianas de Donetsk e Luhansk.
“Na sua esperança de novamente recriar, o que eles vêem como a grande Rússia, eles estão avançando ao oeste na Europa”, diz o tenente-general Serhiy Nayev, comandante das forças conjuntas da Ucrânia. “A Rússia não tem interesse em baixar a temperatura, nem com o mundo ocidental, nem com Ucrânia”.

Por isso, embora a guerra chegou ao impasse, ainda continua a arder.
Soldado ucraniano Anton Akastyolov (23) in Avdiivka © Charlie Bibby/FT
Em conformidade com os termos dos acordos de cessar-fogo de Minsk de 2015, ambos os lados são impedidos de usar força aérea, tanques e armamento pesado. Isso criou as condições para uma guerra terrestre de “atrito” que marca o retrocesso para outra era, onde soldados lutam em trincheiras com morteiros, granadas e fogo de franco-atiradores. Consequentemente, o número de mortos continua a aumentar. A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), que monitora o conflito a guerra, disse em agosto [de 2018] que um total de 30 civis foram mortos em ambos os lados até agora neste ano. O exército ucraniano informa que 80 dos seus militares morreram no mesmo período.
Não há sinais de resolução à vista. A guerra estava praticamente fora da agenda do encontro de Helsínquia entre o presidente dos EUA, Donald Trump, e Putin, em julho de 2018. E apesar das tentativas dos EUA e dos seus aliados para modernizar e armar as forças militares da Ucrânia, com 200.000 efetivos, as pessoas em Avdiivka se sentem abandonadas pelo Ocidente.
Lyubov Kolesova segura o retrato de seu filho desaparecido Ihor Grizenko
na sua casa em Avdiivka © Charlie Bibby / FT
“Eles não se importam”, diz Lyubov Kolesova, uma residente [local] cujo filho de 28 anos desapareceu nos primeiros dias da guerra. “Se você não mora aqui, você não vai entender”.

A auto-estrada/rodovia ucraniana № 20 corta os campos aparentemente infinitos de girassóis, fazendo com que ela se pareça mais com o sul da França, do que com a fronteira da Europa com a Rússia. Antes da guerra, esta estrada era um dos símbolos do progresso económico ucraniano, construída principalmente para o Campeonato / para a Copa da Europa de Futebol de 2012.
Campos de girassóis ao longo da estrada auto-estrada № 20, que leva aos muros com cicatrizes causadas pelas munições em Avdiivka © Charlie Bibby / FT
Agora faz parte da linha de frente. Como a estrada se aproxima de Avdiivka, a cerca de 20 km do reduto separatista de Donetsk, torna-se muito traiçoeira para continuar. O acesso à cidade só pode ser feito através de estradas secundárias esburacadas.

No entanto, o dia em Avdiivka pode ser enganosamente calmo. Os pais passeiam pelas ruas com crianças pequenas, enquanto um grupo de reformados/aposentados criou um mercado improvisado no centro, vendendo leite e outros produtos.

Mas a guerra nunca está longe.

Ao longe, podem ser ouvidos disparos ocasionais, junto com uma explosão profunda [causada] pelos bombardeamentos. Na entrada de seu apartamento construído na era soviética na rua Semashko, Galya [Galina], de 51 anos, pergunta: “Por quanto tempo [mais] devemos suportar isso? Já faz cinco anos. Isso vai continuar por mais 20 anos?”

Grande parte dos combates em Avdiivka ocorre numa área industrial nos arredores da cidade, onde as forças de ambos os lados estão bem entrincheiradas. Pavló, um soldado ucraniano barbudo de 45 anos, diz que a natureza da guerra mudou.
Pavló, um soldado ucraniano de 45 anos, diz que a natureza da guerra mudou © Charlie Bibby / FT
“Em vez do armamento pesado, temos franco-atiradores, o que pode ser ainda mais perigoso porque você relaxa um pouco”, diz ele. “Então uma bala atinge a sua cabeça”.

Agarrando o seu AK Kalashnikov, que parece uma relíquia dos anos 1970, o seu colega Artur diz: “Quanto mais rápido você se move, mais tempo você vive. A menor distância entre as nossas posições é de 70 à 80 metros, você pode ver com os seus olhos”.

Às vezes, ele diz, eles estão tão perto do inimigo, que se pode ouvir os distintos sotaques dos oponentes: “da Rússia, Ossétia do Sul e Chechénia”.

Sua experiência apoia as reivindicações – negadas por Moscovo – de que exército ucraniano enfrenta uma força híbrida de militares russos e militantes separatistas locais sob o comando do Kremlin. “Eles criaram as forças militares. . . [Não] se engane sobre isso, as forças no leste [da Ucrânia] são 100% comandadas pela Rússia”, diz Kurt Volker, o enviado especial dos EUA para Ucrânia.
[...] Obter uma imagem clara da vida do outro lado da guerra é difícil. As autoridades da “república popular” de Donetsk, apoiada pela Rússia e não reconhecida internacionalmente – recusaram o acesso ao Financial Times para reportar do seu território, mas as pessoas da “dnr” cruzam a linha de frente regularmente.

Num ponto de passagem civil em Maiorske, perto da cidade separatista de Horlivka, uma dúzia de carros faz fila para entrar na “dnr”. O Comité Internacional da Cruz Vermelha disse que 1 milhão de pessoas cruzam o território em locais como este todos os meses, que se fecham periodicamente quando os combates acentuam.

Esperando no carro, a residente de Horlivka, Svitlana, explicou que muitas vezes faz a viagem ao lado controlado pela Ucrânia com seu pai, Nikolay, para receber sua pensão e comprar produtos, alguns dos quais são mais baratos [na Ucrânia].

“Todos os daquele lado também querem que essa guerra termine”, diz Svitlana, apontando para os territórios apoiados pelos russos. Seu pai acrescenta: “Vivíamos em paz e compreensão antes. Tudo estava bem”.

[...] Alexander Hug, vice-chefe da missão da OSCE na Ucrânia, que visitou Donetsk no início de agosto, diz: “Se você vai aos distritos em Donetsk, perto da linha de contato ou do aeroporto [de Donetsk] destruído, a vida é muito difícil. Os padrões de vida são maus/ruins, a infra-estrutura está muito danificada. Gás, eletricidade e água são difíceis de encontrar.

[...] Em áreas controladas pela Ucrânia, as autoridades não estão apenas tentando repelir um inimigo apoiado pela Rússia, mas também estão conquistando os corações e as mentes dos falantes de russo. Com isso em mente, o exército e outras instituições do Estado bloquearam a televisão russa e visitam creches e escolas para promover ensinamentos patrióticos.
Militares ucranianos visitam um jardim-de-infância perto da vila de Ivanivske © Charlie Bibby / FT 
“Lutar contra a Rússia é difícil, porque objetivamente é um país maior, com mais poder militar”, diz o major-general Oleksandr Holodnyuk, visitando um jardim-de-infância na vila de Ivanivske. “Mas ganhar as mentes do nosso povo é uma batalha ao nosso alcance que deve ser vencida”.
Soldados ucranianos são submetidos aos exercícios de treino © Charlie Bibby / FT
Nas fases iniciais da guerra as forças ucranianas foram prejudicadas pela falta de treino/treinamento de combate e equipamentos soviéticos enferrujados. Eles também ficaram paralisados ​​por outro retrocesso da era da guerra fria: uma estrutura de comando de cima para baixo que fez as fileiras do meio do exército congelarem quando seus oponentes usaram guerra eletrónica para interferir nas comunicações [ou quando os proxies russos usaram os civis como escudos humanos].

Desde então, os EUA e outras potências ocidentais têm trabalhado para modernizar as forças da Ucrânia – incluindo mais de 1 bilhão de dólares em apoio financeiro e a decisão da administração do [Donald] Trump em março [de 2018] em fornecer [à Ucrânia] 210 mísseis Javelin.

As armas são vistas por analistas militares como um fator de mudança no caso de um ataque total das forças apoiadas pela Rússia. O tenente-general Nayev disse que o apoio ocidental é necessário para que a Ucrânia resista à ameaça russa nas portas da Europa, mas acrescentou que suas próprias tropas já foram transformadas.
O tenente-general Serhiy Nayev chega ao centro de treino em Pokrovsk, no leste da Ucrânia © Charlie Bibby / FT
O general, uma figura imponente que comandou tropas na sangrenta batalha pelo aeroporto de Donetsk [DAP] em 2014, chegou a um campo de treino/treinamento militar perto da cidade de Pokrovsk, no leste [da Ucrânia], para assistir os militares testarem a resposta caseira da Ucrânia ao Javelin – os [mísseis] Stugna-P.

Ele diz que as forças da Ucrânia não estão “apenas capazes, mas prontas” para repelir os separatistas apoiados pelos russos, que ele afirma ter 400 tanques – mais do que o Reino Unido. Antes de testar os Stugnas, as tropas lançaram uma série de armas da era soviética, incluindo mísseis Shturm e Fagot, demonstrando claramente as desvantagens que enfrentavam nos estágios iniciais do conflito. [...] Por outro lado, os Stugnas atingiram o alvo quatro vezes em quatro lançamentos, provocando um grito de alegria do general Nayev: “Sim! Veja . . . são Made in Ucrânia”.

[...] Para ajudar Ucrânia a conseguir [que as suas forças armadas cheguem aos padrões na NATO/OTAN] um grupo de mais de 200 instrutores americanos está baseado em Yavoriv, ​​um vasto complexo militar perto da fronteira da Ucrânia com a Polónia. Aqui, soldados seniores dos EUA, como o sargento Jamah Figaro, instruem os oficiais ucranianos sobre como treinar suas tropas. “Eles são muito motivados”, diz o sargento Figaro. “É o país deles. Eles estão tentando recuperar as suas terras”.
Jamah Figaro, sargento dos EUA, treina ucranianos no Centro Internacional
de Treino de Yavoriv © Charlie Bibby / FT
Sargento Figaro diz que os EUA também estão aprendendo com seus colegas ucranianos: “O exército dos EUA estava [acostumado a] operar em contingências como no Iraque e no Afeganistão, diz ele, referindo-se às guerras ofensivas em que os EUA dominavam o espaço aéreo. “Não é nada parecido com o que os ucranianos estão enfrentando, essa guerra de trincheiras é como uma luta mais próxima que eles estão lutando. Não vemos algo assim desde a segunda guerra mundial”, acrescenta.

Em Kyiv, a mais de 700 quilómetros da zona de guerra oriental, Stanislav Fedorchuk ergue a mão e coloca-a com ternura sobre a foto de seu amigo Yuriy Matushcak. Apelidado de “Vento”, Matushcak morreu na batalha de Ilovaysk, uma pesada derrota das forças ucranianas, em agosto de 2014.
Stanislav Fedorchuk junto ao muro do mosteiro de São Miguel em Kiev, dedicado aos ucranianos
que morreram na guerra © Charlie Bibby / © Charlie FT Bibby / FT
Seu rosto agora está entre centenas de outros na parede externa do mosteiro de São Miguel, em Kyiv, um lembrete para aqueles que passam em uma agradável noite de domingo que este é um país em guerra.

“Estávamos esperando um ano para saber se ele tinha morrido ou não. Não tínhamos corpo”, diz Fedorchuk, acrescentando que seus restos mortais foram depois encontrados e enterrados com outros soldados mortos. Fedorchuk saiu de Donetsk em 2014 e é uma das cerca de 1,5 milhão de pessoas deslocadas devido ao conflito à guerra.

À medida que a guerra chega ao quinto ano, a perspectiva de uma solução militar ou diplomática parece remota. Os EUA e outras potências ocidentais querem que as forças russas deixem Ucrânia, mas Putin não mostra sinais de mudar a sua abordagem. O conselheiro de segurança nacional dos EUA, John Bolton, declarou recentemente que, quando se trata da Ucrânia, Washington e Moscovo vão “ter que concordar em discordar”.
Um casal se despede na plataforma de comboio/trem em Kyiv,
quando o militar parte ao leste da Ucrânia © Charlie Bibby / FT
Os EUA intensificaram as sanções e o Reino Unido está pressionando por mais ações diplomáticas. Ainda assim, o tenente-general Nayev exorta Ocidente a despertar para a ameaça da Rússia e até faz comparações com o apaziguamento [do Ocidente perante Hitler e Estaline] na década 1930. “Vimos como esse apaziguamento vergonhoso trouxe a segunda guerra mundial”, diz ele.

Este artigo foi emendado para corrigir o número de mortes contadas pela OSCE.

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Este artigo foi emendado para corrigir alguns poucos termos politicamente corretos, usados pelo The Financial Times Limited 2018.

Tradução portuguesa: @Ucrânia em África.

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