Ucrânia
está à apenas um passo de receber a autocefalia, a
independência absoluta da sua igreja ortodoxa, situação que o país almeja desde o final do século XVII, quando a Metrópole de Kyiv foi ilegalmente ocupada pelo
patriarcado de Moscovo.
Foto: Patriarquia Ecuménica de Constantinopla |
Apesar
dos enormes esforços da Igreja Ortodoxa Russa (IOR) e das ações, por vezes mesmo ilegais, da diplomacia russa (ler: Grécia
expulsa dois diplomatas russos por práticas ilegais), a última visita-relâmpago
do patriarca Cirilo ao Istambul, se revelou uma enorme derrota da diplomacia
russa, considera o jornal russo Novayagazeta.
Vladimir Gundiaev (futuro Cirilo de Moscovo) na década de 1970 |
No
dia 31 de agosto, e durante duas horas e meia, em Istambul e à porta fechada, prosseguiram
as negociações entre os dois líderes mais influentes do mundo ortodoxo:
patriarca Cirilo I de Moscovo (ex-agente
do KGB “Mikhaylov”) e o Patriarca Ecuménico (de Constantinopla) Bartolomeu. Decidia-se
o destino da Igreja Ortodoxa Ucraniana. A Constantinopla pretende conceder à
Ucrânia a autocefalia e Moscovo pretende reduzir, ainda mais, a autonomia do
seu braço ortodoxo na Ucrânia, lhe concedida em 1990.
O Patriarca Ecuménico Bartolomeu | foto: RIAN |
As
observações das partes após as conversas não deixam dúvida, Cirilo não conseguiu
influenciar a posição da Igreja Ecuménica, a autocefalia será concedida. Detalhe
eloquente: os moscovitas não ficaram para o jantar, e a refeição desempenha um
papel importante na vida da igreja ortodoxa. O Secretário do Sínodo do
Patriarcado de Constantinopla, Metropolita Emmanuel, falou sobre os resultados
da reunião de forma clara e concreta:
“A
decisão [da autocefalia da Igreja ucraniana] foi tomada em abril [de 2018], e
já estamos implementar a decisão, como o Patriarcado Ecuménico informou o
Patriarca Cirilo”.
Negociações
foram realizadas em Fener, na
residência dos Patriarcas de Constantinopla em Istambul. A parte russa estava representada pelo
Cirilo, pelo seu “ministro dos Negócios Estrangeiros / das Relações Exteriores”,
Metropolita Hilarion (Alfeev), e o seu vice, protoiereu Nikolai Balashov, além
das dezenas de agentes da segurança estatal russa (FSO). O Patriarcado Ecuménico
foi representado por 15 bispos, incluindo 2 ucranianos étnicos.
O
Patriarca Ecuménico é o “primeiro entre os iguais” no mundo Ortodoxo, ele não possui
a autoridade administrativa direta sobre as Igrejas Ortodoxas locais. O seu
status extraterritorial em Istambul, onde hoje não vivem mais que 2.000 crentes
ortodoxos, o coloca na posição de árbitro independente das autoridades do qualquer
país “ortodoxo”. Ao mesmo tempo, sob a jurisdição do Patriarcado Ecuménico estão
milhões de crentes ortodoxos, em primeiro lugar nas Américas e na Europa
Ocidental.
Segundo
as antigas regras dos Concílios Ecuménicos, Constantinopla possui o direito exclusivo
de conceder autocefalia (a independência absoluta) às novas Igrejas Ortodoxas.
Além disso, o Patriarcado Ecuménico considera ilegal a ocupação física e
espiritual que Patriarcado de Moscovo exerceu sobre a Metrópole de Kyiv no
final do século XVII.
A
última visita-relâmpago de Cirilo à Istambul tornou-se a sua tentativa
desesperada, mas muito tardia, de impedir o processo de separação da Igreja
Ortodoxa da Ucrânia de Moscovo. Este processo chegou à linha final em abril de
2018, como tinham informado, bastante oficialmente, Kyiv e Constantinopla.
Inicialmente, o Kremlin e a IOR, com o seu (e)snobismo pós-imperial agudo, não
levaram à sério essa afirmação. Embora já maio-junho de 2018, os representantes
da IOR de Moscovo visitaram as Igrejas gregas e eslavas, para os colocar, de
alguma forma, contra Constantinopla.
Somente
no final de julho de 2018, durante a celebração em Kyiv e em Moscovo dos 1030
anos do Baptismo da Rus de Kyiv, patriarca Cirilo percebeu toda a seriedade da
situação.
O Patriarca Ecuménico (de Constantinopla) Bartolomeu na Ucrânia em 2018 |
Convidados
pela IOR à Moscovo, os líderes das Igrejas ortodoxas mundiais ignoraram o
convite (veio apenas o patriarca de Alexandria). Na Ucrânia, a delegação de
alto nível da Constantinopla praticamente não teve qualquer contato com os
representantes do Patriarcado de Moscovo, que teima em afirmar que “controla” a
maioria dos ortodoxos na Ucrânia. Ucrânia é um grande trunfo político e um
importante ativo económico da IOR: no país existem cerca de 12.000 paróquias da
Igreja Ortodoxa Ucraniana – Patriarcado de Moscou, cerca de um terço do seu
número total no espaço europeu.
O Patriarca da Ucrânia Filaret (Denysenko) |
A
IOR e o patriarca Cirilo tiveram a chance real de participar da separação
civilizada da Igreja ucraniana. No outono de 2017, o líder da Igreja Ortodoxa
Ucraniana – Patriarcado de Kyiv, o Patriarca Filaret (Denysenko),
que controla mais de 5.000 paróquias, apelou ao Moscovo, pedindo a
reconciliação e a sua delegação oficial foi recebida pelas estruturas oficiais
da IOR. O Conselho de Bispos da IOR (que em 1997 lhe aplicou a excomunhão), aceitou gentilmente
a carta do Patriarca Filaret e até formou uma comissão para o diálogo com os “cismáticos”.
No
entanto, alguns dias depois, e sob a influência de fatores políticos, IOR deu o
“dito por não dito”, a comissão nunca funcionou e a retórica da IOR contra os “cismáticos
ucranianos” foi reforçada. Neste momento o processo da autocefalia ucraniana
está em andamento e o mesmo Patriarca Filaret é o único candidato real para a liderança
da recém-criada Igreja Autocéfala ucraniana, reconhecida pela Constantinopla.
A
perca da Ucrânia como “território canónico” exclusivo da IOR será um grande
golpe na posição do patriarca Ciril, não só dentro da igreja mundial, mas
também no interior da Rússia. O secretário do Sínodo do Patriarcado de Kyiv, o
arcebispo Yevstratiy (Zorya),
chega a sugerir que a derrota de Cirilo em Istambul levará a sua renúncia da
posição patriarcal. O Kremlin até já tem um candidato pronto, com a reputação de
confessor pessoal do Putin – Tikhon
(Shevkunov), recentemente nomeado Metropolita de Pskov.
O
Metropolita Tikhon
é um adepto confesso da ideologia do “mundo russo” e do messianismo moscovita,
ao passo que passado do Cirilo está “manchado” pelas simpatias ecuménicas aos “hereges
ocidentais”. Além disso, nas condições de cada vez mais rígida “vertical de
poder” e controlo/e total sobre a vida religiosa na Rússia, por parte do
estado, Kremlin considera como absolutamente inaceitável qualquer reivindicação
de um líder religioso à um papel político independente.
Olhando
ao calendário do Patriarcado de Constantinopla, a data mais provável de adopção
da Tomos (decreto formal) de autocefalia calha aos 10-12 de outubro, a próxima
reunião do Sínodo. No inverno na Ucrânia começa o ciclo eleitoral, as eleições
presidenciais em março de 2019 e depois as legislativas. Não é do interesse da
jovem Igreja ucraniana e do venerável Constantinopla colocar o tema da
autocefalia na luta pré-eleitoral. De acordo com o ex-secretário do primaz da
Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo, hoje apoiante da autocefalia,
protoiereu Georgiy Kovalenko, “mesmo que em outubro não haverá a decisão final,
será feito o próximo passo [...] o Tomos
da autocefalia não é o objetivo final, mas apenas um mecanismo que pode
acelerar a construção de uma Igreja Ortodoxa independente na Ucrânia”.
As
ameaças e insultos eclesiásticos russos
No
seu comunicado oficial, publicado
na página do patriarcado de Moscovo, a liderança (sínodo) da IOR acusa o
Patriarcado Ecuménico de “levar à um impasse entre as igrejas, russa e de Constantinopla,
criando uma ameaça real à unidade de todo o mundo ortodoxo”.
O
Sínodo da IOR também declara que “toda a responsabilidade por esses atos anticanónicos
recai sobre o Patriarca Bartolomeu e sobre as pessoas da Igreja de
Constantinopla que as apoiam” e promete “as ações em resposta [...] muito em
breve”.
No
entanto, o chefe do Departamento de Relações Externas da IOR, o metropolita
Hilarion de Volokolamsk foi mais longe nas ameaças e mesmo nos insultos contra
o Patriarca Bartolomeu e contra o Patriarcado Ecuménico.
O agente do KGB “Mikhailov” (futuro patriarca da IOR Cirilo), a vidente soviética Eugenia Davitashvili (“Juna”; 1949-2015) e alegada amante (oficialmente a irmã) de Vladimir Gundyaev – Lydia Leonova. |
Na
entrevista ao canal televisivo russo Rossiya24, o metropolita Hilarion afirmou
que caso Constantinopla conceder a autocefalia à igreja ucraniana, IOR “romperá
e cessará a comunicação com Constantinopla”. Na sua comunicação pública,
agressiva e mesmo messiânica, o religioso russo usava os termos bastante
queridos à propaganda estatal soviética de era comunista: “uma maneira
descarada e cínica”; “plano traiçoeiro”; “acto desprezível e traiçoeiro”, etc.
Autocefalia
da Ucrânia em dados técnicos (por Meduza.io):
Números:
neste momento a Igreja Ortodoxa da Ucrânia – Patriarcado de Moscovo controla
12.000 paróquias; a Igreja Ortodoxa da Ucrânia – Patriarcado de Kyiv – cerca de
5.000 e a Igreja Ortodoxa Aucocéfala da Ucrânia – cerca de 1.000. As duas
últimas não possuem o reconhecimento oficial das outras 15 igrejas ortodoxas,
consideradas “canónicas”. Caso Ucrânia receber a sua independência e o
reconhecimento do status canónico, país terá a sua própria igreja local,
independente de Moscovo e reconhecida pelo Patriarca ecuménico.
As
datas: é provável que tudo acontecerá muito em breve. No dia 7 de setembro o
Patriarcado de Constantinopla oficialmente nomeou para Ucrânia dois bispos
Exarcas (representantes legais), ambos ucranianos étnicos [Arcebispo Daniel da
Panfília (EUA) e o bispo Hilarion de Edmonton (Canada)].
Em
outubro de 2018, o Sínodo se reunirá em Istambul e é muito possível que será
tomada a decisão formal de publicar Tomos
(decreto oficial) da autocefalia da nova Igreja Ortodoxa Ucraniana. Depois irá
decorrer uma reunião magna de unificação, com a presença de representantes de
todas as Igrejas Ortodoxas na Ucrânia – incluindo dos bispos da Igreja Ortodoxa
Ucraniana – Patriarcado de Moscovo, que apoiam autocefalia (em minoria dentro
da sua igreja). Depois, a nova igreja escolherá o patriarca e receberá Tomos de Constantinopla. Espera-se que a
reunião será realizada em setembro-outubro de 2018, mas ainda sem uma data
exata.
As
ameaças russas: a IOR
já ameaçou “romper as comunicações” com Constantinopla. Isso
já aconteceu na história recente das relações entre Moscovo e Constantinopla.
Em 20 de fevereiro de 1996, o Patriarca Bartolomeu declarou que aceitava sob a
sua jurisdição a Igreja Ortodoxa Apostólica da Estónia. Três dias depois, o
patriarca Alexis II anunciou o fim da comunhão eucarística e deixou de mencionar
o Patriarca Bartolomeu nas orações patriarcais. Após as negociações em maio do
mesmo ano, a comunicação foi restaurada. Na Estónia, desde então, existem duas
igrejas ortodoxas – uma com autonomia assegurada pelo Moscovo, a outra – por
Constantinopla. Na vida dos paroquianos comuns, isso não se reflete de uma forma
particularmente importante.
As
razões das reações russas: se Ucrânia tiver a sua própria igreja local canónica
independente, muitas paróquias e dioceses inteiras da Igreja Ortodoxa Ucraniana
– Patriarcado de Moscovo irão mudar de jurisdição. E então Moscovo perderá na
Ucrânia a sua posição dominante da principal jurisdição ortodoxa.
A
posição dos fiéis: desde 2014, cerca de uma dúzia de paróquias do Patriarcado
de Moscovo se filiaram no Patriarcado de Kyiv, IOR de Moscovo trata o processo
como “apropriação dos cismáticos”.
De
acordo com a pesquisa realizada no verão de 2017 pelo grupo sociológico
ucraniano “Rating”, 42% dos paroquianos do Patriarcado de Moscovo não querem a
criação de uma nova igreja local; 23% são ao favor e 36% não se importam, não
sabem ou não quiseram responder.
Apoios internacionais na questão da Ucrânia: de acordo
com a imprensa/mídia estatal russa, “quase todas as igrejas locais no conflito
em torno da Ucrânia apoiam a IOR”. Na sua maioria essas afirmações não contêm as
citações concretas. Ainda não sabemos quem e quando reconhecerá a nova igreja autocéfala
da Ucrânia, certamente esse processo levará o seu devido tempo.
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