quarta-feira, fevereiro 28, 2018

Palácio dos Sovietes: a utopia arquitetónica comunista soviética

Nos anos 1930 a URSS planeou a construção do gigantesco Palácio dos Sovietes, que deveria simbolizar a vitória do socialismo num único país. Em 1931 as autoridades soviéticas dinamitaram, para libertar o espaço, a Igreja do Cristo Redentor, em 1932 começaram e em 1939 concluíram as alicerces. Após a II G.M. o projeto foi esquecido e abandonado.

A ideia foi anunciada em 1922 pelo líder bolchevique Serguei Kirov que disse no 1º Congresso dos Sovietes: “os sons da Internacional já não cabem em edifícios antigos, e no lugar dos palácios de banqueiros, proprietários rurais e czares, será preciso erguer o novo palácio de operários e camponeses”.
Naturalmente, Kirov omitia o facto de que o “palácio de operários e camponeses” será usado pela nova classe exploradora – nomenclatura soviética, mas não escondia os planos comunistas expansionistas — “a construção majestosa será o emblema do futuro poderio, do triunfo do comunismo não só aqui, mas também lá, no Ocidente!

02. A imprensa soviética publicava os artigos em que comparava o futuro Palácios dos Sovietes com arranha-céus nova-iorquinos, pirâmides egípcias ou a Torre Eiffel parisiense.

04. Foi lançado o concurso do projeto do futuro edifício. Exigia-se que este contenha dois salões, Pequeno e Grande, em cada um devendo caber alguns milhares de pessoas. No total foram recebidos cerca de 160 projetos, o vencedor foi do arquiteto nascido em Odessa, na Ucrânia, Boris Iofan, conhecido como “arquiteto estalinista”.
De acordo com o plano, o Palácio dos Sovietes se tornaria o prédio mais alto do mundo, o topo do edifício deveria ser coroado por uma gigante estátua de Lenine de 100 metros de altura – assim, o Palácio seria um edifício e um pedestal colossal do monumento. A massa da estátua completa de Lenine pesava cerca de 6.000 toneladas, e o comprimento do dedo indicador seria de 4 metros.

05. Para enquadrar o edifício também foi planeada a reconstrução completa do centro de Moscovo, destruindo os bairros antigos – ideia, mais tarde, realizada pelo ditador Ceausescu em Bucareste. Entre a Praça Vermelha e a então Praça Sverdlov (agora Teatralnaya) se pensavam construir uma ampla rodovia/avenida. Os autores do projeto acreditavam que “a ideia, baseada na solução arquitetónica das áreas do Palácio dos Sovietes é a ideia de áreas abertas e amplamente convidativas incorporam a democracia socialista”.
Aparência do Palácio em Moscovo atual, caso este seria construído.

06. Pouco se sabe sobre os interiores do palácio – estes deveriam receber os acabamentos de granito polido e decorados com as esculturas. Lugares dos espectadores no Grande Salão deveriam ser cobertos de couro, a altura do Grande Salão seria de 100 metros com um diâmetro de 140 metros. O Pequeno Salão deveria ter 32 metros de altura, e o vestíbulo do Palácio deveria ter sido chamado de “Salão de Constituição de Estaline”.
Vista planeada do interior do Grande Salão (imagem em cima):

07. Entrada: “Salão de Constituição de Estaline”

08. Em 1939 acabaram de construir as alicerces – o futuro palácio deveria ter um peso gigantesco – cerca de 1,5 milhão de toneladas. Ainda em 1937, foi preso e fuzilado o chefe da construção do Palácio, Vasiliy Michaylov. Com início da guerra nazi-soviética, em 1941 – as peças metálicas da fundação foram usadas no sistema da defesa antitanques de Moscovo e o resto do metal foi utilizado para a construção de diversas pontes para os caminhos-de-ferro.
Após 1945 o projeto foi consideravelmente “encolhido”, a altura do edifício passou de 415 aos 270 metros, foi bastante diminuída a área interior e simplificada a decoração. Em 1947, em Moscovo começaram a construir os famosos “arranha-céus de Estaline”, e o Palácio dos Sovietes foi definitivamente esquecido.

Fotos: russian7.ru | namednibook.ru | way2day.com | tehne.com | Texto: Maxim Mirovich

Lavrenti Béria: o Himmler preferido do Estaline

foto @FB do José Milhazes
O jornalista português José Milhazes prepara-se para o lançamento do seu novo livro “Lavrenti Béria, o Carrasco ao Serviço de Estaline” (Oficina do Livro), a biografia do Lavrenti Béria – o chefe da polícia secreta de Estaline, fiel instrumento de terror comunista.

Em 1940 mandou assassinar Trotsky e presidiu à execução sumária de 22 mil oficiais polacos no tristemente famoso Massacre de Katyn. Na chefia do sistema de GULAG, ordenou a deportação de centenas de milhares de vítimas, muitas logo mortas deliberadamente, ou quando iam a caminho do GULAG. Em 1949 roubou o segredo da bomba atómica aos americanos. Baseado em documentos oficiais, memórias e testemunhos de várias figuras soviéticas da época, cartas pessoais do biografado e na transcrição do interrogatório a que seria sujeito no fim da vida, só recentemente tornada público, o jornalista José Milhazes faz um retrato do homem que Estaline apresentou a Roosevelt durante a conferência de Yalta. “É o meu Himmler”. Este livro será vendido em Portugal à partir do dia 13 de Março (fonte).

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Os passaportes brasileiros falsos do Kim Jong-un e Kim Jong-il

O ditador e líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, tal como o seu pai e antecessor, Kim Jong-il, tiveram dois passaportes brasileiros falsos, possivelmente para terem acesso aos vistos para a Europa.

por: João de Almeida Dias, Observador (Portugal)

O ditador norte-coreano, Kim Jong-un, e o seu pai e antecessor, Kim Jong-il, tiveram passaportes brasileiros falsos para tentarem ter acesso a vistos para a Europa.

“Eles usaram estes passaportes brasileiros, que claramente contêm fotografias de Kim Jong-un e de Kim Jong-il, para tentar obter vistos de embaixadas estrangeiras”, disse uma fonte ligada à segurança fronteiriça de um país europeu à Reuters, que deu a notícia em primeira mão. “Isto demonstra o desejo de viajar e sugere que a família tentava montar uma rota para uma possível fuga.”

Ambos os passaportes aparecem como tendo sido emitidos a 26 de fevereiro de 1996, com uma validade de 10 anos, pela embaixada do Brasil em Praga, capital da República Checa. De acordo com o que uma fonte brasileira disse à Reuters, os dois passaportes eram, inicialmente, legítimos, uma vez que terão sido enviados em branco para consulados.

No seu passaporte, Kim Jong-un aparece com o nome de Josef Pwag e como sendo filho de Ricardo Pwag e Marcela Pwag Jodu. Já Kim Jong-il aparece como Lion Tchoi, sem menção à sua filiação. Os passaportes dizem que os dois nasceram em São Paulo.

Ambos aparecem com datas de nascimento falsas, mas que não diferem em muito dos verdadeiros aniversários do atual e antigo líderes da Coreia do Norte.

A embaixada do Brasil na Coreia do Norte recusou comentar o caso e o Ministério dos Negócios Estrangeiros brasileiro disse que está a investigar os dois passaportes.

domingo, fevereiro 25, 2018

O dia da queda do estalinismo soviético

No dia 25 de fevereiro de 1956, terminou o famoso XX congresso do PCUS em que Nikita Khrushev denunciou Estaline e o seu culto de personalidade. Khrushev interveio no último dia do congresso, após ser reeleito o secretário-geral do PC. Não foi realizado nenhum registo daquilo que foi dito, os detalhes do discurso são conhecidos somente nas palavras daqueles que estavam lá presentes.

Segundo as testemunhas, durante o discurso de Khrushev reinava um silêncio absoluto, e no seu fim não houve nenhum debate. De momento para outro colapsou, por completo, o conceito, erguido durante décadas, sobre o papel supostamente excepional de Estaline em todas as esferas da vida soviética, os mitos sobre “grande astrónomo e linguista” deixaram de existir imediatamente. Quase de imediato, ocorreram na URSS as grandes mudanças – muitos prisioneiros políticos foram liberados e reabilitados, a censura foi diminuída em muitas esferas da vida, as denúncias anónimas eram condenadas, surgiu uma relativa liberdade de movimento dentro do território soviético e até apareceram as oportunidades de viajar para o exterior como turista.

Poucos meses após a denúncia do culto à personalidade, começou a revolta anti-estalinista na Hungria – na foto principal podemos ver o monumento derrubado do Estaline em Budapeste – o monumento foi deitado abaixo pelas mesmas pessoas em cujo nome os estalinistas húngaros construíram este monumento como um “presente ao Estaline” alguns meses atrás (por Maxim Mirovich).

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O ex-diretor de campanha de Trump é suspeito de financiar grupos pro-Rússia

foto @Justin Lane/EPA
Paul Manafort – o ex-diretor de campanha de Trump – terá financiado políticos europeus influentes, pertencentes ao “Hapsburg Group” para tomarem posições pró-Governo pró-russo da Ucrânia, em 2012 e 2013, quando o país era dirigido por Viktor Yanukovych, um seguidor de Moscovo.

por: Pedro Raínho, Observador.pt

Paul Manafort foi o homem de confiança de Donald Trump na campanha que conduziu o atual presidente dos Estados Unidos à Casa Branca — e que é suspeito nas investigações sobre a ingerência russa no resultado das eleições presidenciais. No decurso dessa investigação, o procurador especial Robert Mueller terá chegado a informações que provam que, pouco antes de ser chamado para dirigir a campanha de Trump contra Hillary Clinton, Manafort financiou o “Hapsburg Group”, de que faziam parte influentes figuras da política europeia. Esses senadores terão sido pagos para assumir posições favoráveis a um líder ucraniano pró-Moscovo.

A informação é avançada este sábado pelo jornal britânico The Guardian e reforça o clima de suspeição que já pairava sobre o líder norte-americano e sobre a forma como alcançou a vitória a 8 de novembro de 2016. Os novos dados que chegaram às mãos de Mueller foram apresentados num tribunal do estado da Virginia esta sexta-feira e apontam para o facto de Manafort ter, alegadamente, “atuado com agente não registado de um Governo e de forças políticas estrangeiras”.

O ex-diretor de campanha de Trump é acusado de “representar o Governo da Ucrânia” e a força política pró-russa de Viktor Yanukovych, o Partido das Regiões. E, durante o período em que trabalhava a favor de interesses de Moscovo, entre 2012 e 2013, Manafort terá financiado o funcionamento do “Hapsburg Group”, um grupo que reuniu nomes de peso na política europeia. A acusação de Robert Mueller refere que o ex-braço direito de Donald Trump e um sócio seu, Rick Gates (que também teve responsabilidades na campanha do atual presidente dos EUA), “manteve de forma secreta um grupo de antigos políticos europeus para que assumissem posições favoráveis à [ao Governo pró-russo da] Ucrânia, incluindo fazendo lobbying nos Estados Unidos”.

O objetivo era que, apesar de serem pagos, esses nomes influentes da cena política europeia assumissem como suas determinadas posições, quando na verdade estavam a ser pagos para defender esses pontos de vista, políticas e projetos favoráveis a Yanukovych — favoráveis à Rússia. Uma nota do próprio Manafort, de junho de 2012, a que o procurador responsável pela investigação teve acesso, deixava claro essa intenção.

Ler mais em português e inglês.

Notícias da frente: FAU atingem um blindado terrorista (vídeo)

Nos arredores da cidade de Dokuchaievsk uma unidade ucraniana do grupo tático “Mospino” atingiu blindado ligeiro BMP das forças russo-terroristas, usando, para o efeito o míssil já bastante antigo, “Fagot”.

Míssil “Fagot” é operado manualmente, usa sistema do fio. Por isso, a distância à que foi atingido o BMP russo-terrorista, cerca de 1.800 metros, é absolutamente fantástica. Em resultado do impacto a tripulação do blindado (3 pessoas) morreu, as forças russo-terroristas confirmaram a sua perda.
Faça click para ver vídeo
O inimigo simplesmente não esperava isso – no vídeo é visível que os terroristas disparam contra a rampa da vala mineira mais próxima, pensando que o lançamento foi feito a partir daquela posição. Na verdade o disparo foi à longa distância, efetuado por um militar ucraniano muito experiente, que já quatro anos defende Ucrânia, autor de centenas de lançamentos. Ele sonha com uma só coisa – receber o moderno míssil ucraniano Stugna/Skif com visor térmico. Recentemente os jornalistas da página ucraniana Censor.net.ua mandaram à sua unidade uma motosserra, agora estão reunir mais ajuda aos militares ucranianos.

As forças russo-terroristas se apressaram à dizer que míssil atingiu “viatura paramédica”, ferindo apenas um separatista. No entanto, nenhuma prova do dito foi apresentada, enquanto o vídeo ucraniano mostra que a a) BMP atingida ardeu por completo b) a ВMP atingida estava num campo de cultivo, local de difícil acesso às viaturas civis. Como resultado, podemos dizer que a viatura atingida realmente era um blindado que possivelmente efetuava o serviço de vigilância das posições ucranianas.

Bónus

Tudo indica que muito recentemente na área de  Dokuchaievsk as FAU conseguiram alguns progressos táticos. Os terroristas estão se queixar da perca das localidades e posições. Iremos informar sobre os pormenores logo que isso for oportuno.

Made in Ucrânia: brinquedos ucranianos – cossacos

A produtora ucraniana ArtNation começou a produção dos brinquedos, baseados nas personagens da série dos cartoons ucranianos “Cossacos”, produzidos pelo estúdio ucraniano Kievnauchfilm (1941-1990).
Preço: 120 UAH (4,44 USD)
A série “Cossacos” foi produzida entre 1967 à 1995, dirigida pelo realizador ucraniano Volodymyr Dakhno (1932-2006).
Preço: 124 UAH (4,59 USD)
Comprar os brinquedos: AQUI
Preço: 138 UAH (5,11 USD)
Ver um exemplo da série, “Como os cossacos jogaram futebol” (1970):

sábado, fevereiro 24, 2018

“Retaguarda”: a província russa que fornece os mercenários à Síria e Ucrânia

Oito moradores de uma aldeia russa na região de Sverdlovsk foram combater na Síria, assinando o contrato com uma EMP (possivelmente grupo Vagner), apenas um deles voltou vivo.

Todos eles, antes de sua viagem, “aderiram aos cossacos”, cerimónia que decorreu no clube da aldeia, gerido pela administração estatal local. “Adesão” foi presidida pelo padre ortodoxo de uma outra localidade. O padre local é claro: o mandamento “não matarás” é sagrado, apenas na necessidade de defender a sua própria terra, família, filhos, se pode prescindir deste.

Um dos mercenários chegou de férias vivo, outro telefonou à sua mãe no dia 9 de fevereiro e apenas disse: “Está tudo mau”; seis deles estão incontatáveis desde o dia 7 de fevereiro, quando uma coluna dos mercenários russos foi aniquilada, de uma forma superior, pelo exército e marinha dos EUA.
Os mercenários locais são homens dos 35 aos 55 anos, quase todos deixaram em casa famílias e filhos menores. A morte de um deles, Ruslan Gavrilov (na foto em cima), terrorista como passagem pela leste da Ucrânia, foi noticiada pela página russa e1.ru. Os familiares não receberam nenhuma informação oficial, os telefones do “grupo Vagner” não respondem, os locais sentem pena dos mercenários, mas em geral, não aprovam a sua decisão.

A vida no interior russo

Na aldeia não há trabalho. Nas cidades da região há bastante trabalho, mas os salários rondam os 10.000 rublos (177 dólares). Os serviços municipais (água, luz, renda de casa) no inverno (com aquecimento central) chegam aos 7.000 rublos (124 dólares). Mesmo assim, as dívidas salariais, para com os trabalhadores, chegam aos 60 dias de atraso. Como dizem os locais: “ou roubar ou ir à guerra”.

Mercenário Andrey (3 filhos menores): “Tenho que construir uma casa! Não vou conseguir ganhar o dinheiro [aqui]. Vou para a guerra e assim construirei a casa”.

Mercenário Igor contou aos seus pais que iria trabalhar na construção da ponte de Crimeia. Os seus conhecidos contam que ele e o seu grupo queriam participar na guerra contra Ucrânia na Donbas.

Mercenário Sasha (Alexander), 3 filhos menores, o mais velho de 14 anos: foi o que ligou no dia 9 de fevereiro e disse: “Mãe, está tudo mal”. “Mas mal como?” – perguntou a mãe. “Quando venho – te conto”, – disse mercenário e nunca mais ligou ou veio. Ele costumava dizer à mãe que viajou à Síria para ver o mundo...

Mãe de um dos mercenários desaparecidos: “Gostaria de saber a verdade. Não sei porque nós abandonaram assim. País não reconhece. Putin não reconhece. Digam obrigado à ele [fecha a porta].

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No dia 21 de fevereiro, na cidade russa de Azov foi enterrado Kirill Stanevich, militar russo no ativo que morreu na Síria, alegadamente em 17 de fevereiro. Oficialmente, nada foi dito sobre as circunstâncias ou local da sua morte. O blogueiro russo el-murid está pressupondo que desta maneira as autoridades russas estão legalizando as mortes dos militares russos afetos às forças especiais (SSO) que foram aniquilados nos arredores de Deir ez-Zor pelas forças americanas durante a tentativa do ataque contra a fábrica de gás Conoco.

Das cadeias da “ldnr” à Síria

Da Síria chega a informação, por confirmar, sobre a morte nos hospitais sírios, na sequência dos ferimentos contraídos no dia 7 de fevereiro, de pelo menos dois terroristas russos: Ievgeni Barannikov (08.01.1978) e Eduard “Ryazan” Gilyazov.
Ambos participaram nas ações terroristas no leste da Ucrânia: Barannikov, até recentemente foi dado como morto na Donbas e Gilyazov desde 2015 estava tido como desaparecido: morto, detido pelos próprios terroristas ou desaparecido sem deixar o corpo.
Se a informação sobre a morte na Síria, dos terroristas que anteriormente eram considerados mortos ou desaparecidos no leste da Ucrânia for verdadeira, isso significa que eles receberam a proposta “irrecusável” dos seus curadores russos: apodrecer até a morte numa cadeia das “repúblicas populares” ou “apagar a sua culpa com a sangue” na Síria.

Recentemente, a Rádio Svoboda entrevistou um dos líderes regionais dos “cossacos russos”, chefe Ievgeni Shabaev, que contou sobre os recrutamentos compulsivos dos separatistas e mercenários russos que decorrem nos territórios da Ucrânia ocupada:
– Existem cadeias de detenção operativa (SIZO) em Donetsk e Luhansk, onde as pessoas, incluindo cidadãos russos, são mantidas por três ou mais anos. [...] Foram colocadas na prisão sem lhes comunicar a sua culpa. Lá não funciona nem advocacia, nem jurisprudência, tudo está de acordo com as “regras” [do crime]. Os rapazes estão presos por três anos. Vêm os recrutadores e dizem: ou você continua a apodrecer aqui, ou você vai à guerra, talvez até ganhará alguma coisa. Quando você vê esteja perante essa escolha, você irá à guerra – e não para [ganhar] os 150.000 rublos (2.660 dólares), como [recebem] certos membros das EMP´s, mas entra na [unidade] “Vesna” (ex-Karpaty), onde pagam cerca de 100.000 rublos (1.770 dólares), mesmo assim, nem sempre.

Pistola-metralhadora alemã Heckler & Koch MP5 no Afeganistão

As fotos mostram os militares soviéticos e resistência afegã na posse das pistolas-metralhadoras alemãs Heckler & Koch MP5, algures no Afeganistão na década de 1980.
A fonte mais provável do aparecimento de Heckler & Koch MP5 no Afeganistão é o vizinho Paquistão, onda a arma alemã era fabricada sob a licença. Nas mãos dos militares soviéticos essa arma, provavelmente, apareceu como o troféu, capturado pelas tropas soviéticas no decorrer da operação Shtorm-333 (Tempestade-333). Nesta operação os soviéticos atacaram o Palácio de Tajbeg e mataram, de forma traiçoeira, o presidente do Afeganistão Hafizullah Amin
O mais provável, a sua guarda pessoal estava armada com Heckler & Koch MP5 (fonte).

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Propaganda soviética no Afeganistão

sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Jedwabne: viagem ao coração das trevas

Memorial O escritor português João Pinto Coelho visitou, em Jedwabne,
o monumento que assinala o massacre de 1941
foto: Diana Tinoco | @visao.pt
Em julho de 1941, centenas de judeus polacos foram trancados num celeiro e queimados vivos pelos seus vizinhos. O massacre de Jedwabne, símbolo do papel obscuro da Polónia na II Guerra Mundial, ilustra a incapacidade de enfrentar fantasmas e a vontade de criminalizar quem se atrever a pisar o gelo fino da memória. Percurso pelas encruzilhadas do país através da geografia perturbadora da História. Guiados por páginas incómodas e João Pinto Coelho, o escritor que se pôs a jeito.

por: Miguel Carvalho fotos: Diana Tinoco, revista “Visão” (Portugal), № 1303 de 22/2/2018

A Jedwabne não se chega por casualidade. Nem de forma inocente. A pequena cidade do Nordeste sempre foi um corpo estranho na Polónia que exalta o orgulho pátrio enquanto tenta domesticar as sombras do passado traumático. Para chegar à povoação de seis mil pessoas e 48 aldeias é forçoso sair da estrada que deixou Bialystok, lagos congelados e floresta densa para trás e seguir em direção à Avenida do Exército Polaco, marginada de mantos brancos a perder de vista.

São nove horas de um dia de fevereiro, amanheceu abaixo de zero e o vento fustiga a paisagem com fiapos de neve. Celeiros dominam o cenário campestre, algumas casas são de madeira velha e os tratores passam pachorrentos. Pequenos santuários cristãos compõem o trajeto e contam-se cinco salões de beleza até chegar ao coração da terra. No Parque João Paulo II, outrora Praça do Mercado, os nativos entreolham-se. Outros assomam, furtivos, às janelas com cortinas de crochê, desconfiados dos forasteiros. Vestem roupas simples, talvez mal agasalhados para o tempo que faz, enquanto entram e saem da mercearia ou da florista sem franquear palavra a estranhos. Para uma cidade cujo nome significa “seda”, a receção é agreste. Desafiados, os velhos ainda desenferrujam russo ou alemão, línguas francas da guerra, mas a rapariga do quiosque nem inglês arranha. Tropeça-se em garrafas de vodca abandonadas nos passeios e, do alto das torres, a Igreja de São Jacob contempla, imponente, o quotidiano da comuna de recorte aldeão.

O português João Pinto Coelho já esteve e não esteve aqui. Escavou as origens e memórias da cidade para escrever Os Loucos da Rua Mazur, arrecadando o mais importante galardão literário nacional (Prémio Leya) com a obra inspirada na matança de judeus em Jedwabne. Através de três personagens, o leitor é levado a refletir sobre a universalidade do mal e os perpetradores que vivem amansados dentro de nós. Ou ao lado.
Ler mais sobre o livro
Em versão literária, é um regresso. Mas, pela primeira vez, João calcorreia a Jedwabne real ao ponto de enregelar os ossos. “A primeira sensação foi de silêncio, quebrado pelo crocitar dos corvos que descrevi no romance sem saber que aqui existiam, muito menos nesta quantidade”, descreve, pesando as palavras. “Quando vou a sítios marcados por um sofrimento atroz, e tendo estado tanto tempo a escrever sobre isso, procuro lidar com as imagens que trago gravadas. Senti um vazio em Auschwitz e agora em Jedwabne. Se mudasse algo no livro, talvez falasse mais dos silêncios, seria essa a ‘personagem’ que acrescentaria.”

O INFERNO TAMBÉM FOI AQUI

Os corvos seguem agitados, como se anunciassem maus presságios. Terão eles agoirado, também, a 10 de julho de 1941? A invasão nazi ocorrera em finais de junho. As ordens eram para varrer a herança dos meses de ocupação soviética, não deixar vestígio judaico e incitar populações locais a tomar em mãos o “trabalho sujo”. Dias antes, a chacina de Radzilów, a 18 quilómetros, deitara por terra esperanças na bondade alemã ou no auxílio polaco.

A mortandade excitara ainda mais os ímpetos de camponeses, degredados da região e bandidagem de várias estirpes. Famílias de judeus desataram em fuga.

Em Jedwabne, tudo foi premeditado. Manhã cedo, pelo menos 40 habitantes, apoiados por fazendeiros e rufiões de aldeias próximas, bloquearam acessos à cidade e arrancaram os judeus aos seus lares e ofícios. Concentrados na Praça do Mercado, sob um sol escaldante, aí foram mantidos, sem água, todo o dia, enquanto eram esfaqueados ou espancados com forquilhas, pás e bastões. Outros foram perseguidos e assassinados. O festim de crueldade, atiçado e observado à distância por um punhado de soldados alemães, não poupou idosos, grávidas ou recém-nascidos. Séculos de convivência sangraram logo ali.
As vítimas. Fotos de arquivo | @visao.pt
A primeira comunidade de judeus mudara-se de Tycocin para Jedwabne em 1660 e tornara-se maioritária nos primórdios da guerra. Registaram-se vagas clericais de anti-semitismo ecoadas em sermões ou vertidas nas folhas paroquiais, mas cristãos e judeus tinham conseguido viver em paz, partilhando carteiras da escola, aniversários, casamentos e até frigoríficos.

O processo
Segundo a investigação judicial ao massacre de Jedwabne, concluída em 2002, foram os polacos da cidade e dos arredores os autores do massacre. Ouvidas mais de cem testemunhas, não foi possível encontrar vivos ou identificar os perpetradores, além daqueles que já tinham sido condenados no pós-guerra.
Jedwabne tem sido descrito como um lugar infeliz, atrasado, território do ‘Homo Jedwabicus’,
caricatura da espécie nacional que enterra a cabeça na areia e tem um medo histérico de verdades desagradáveis
foto: Diana Tinoco | @visao.pt
Pelo meio-dia, dezenas de judeus mais corpulentos foram obrigados a derrubar a estátua de Lenine que perdurara na praça e a carregar os pedaços até às imediações do cemitério judeu. Sujeitos a sórdidas humilhações, cavaram um buraco e acabaram enterrados com os destroços do monumento. As outras centenas seguiram ao entardecer, em procissão forçada e violenta, para a mesma zona. Aí, cercadas pela multidão engrossada e assanhada, foram trancadas num celeiro. Homens, mulheres e crianças arderam vivos, depois de regados com litros de querosene.

Os poucos alemães presentes limitaram-se a tirar fotografias. Os gritos escutaram-se a dois quilómetros e o fedor pairou como castigo sobre a cidade durante dias. Alguns judeus ainda escaparam. Sete sobreviveram durante a guerra escondidos num chiqueiro por uma família cristã, perseguida pelos conterrâneos após o conflito.

A comunidade foi extinta e os seus bens destruídos ou saqueados ainda os cadáveres fumegavam. Os criminosos assenhoraram-se de casas, ouro, peles e móveis. “Sim, houve polacos envolvidos”, confirmaram residentes à historiadora Marta Kurkowska-Budzan, aqui nascida, no final de conversas arrancadas a ferros. “O pior é que o fizeram de boa vontade e por dinheiro judeu”, acrescentaram. A “punição” ou a “vontade de Deus” sempre serviram de justificação para as histórias contadas em Jedwabne, através de gerações, escreveu ela. Para muitos, o assassínio em massa de 1941 foi apenas mais um dia em que “o Diabo se estabeleceu na cidade”.

Sebastian Grabowski, de 19 anos, vive a oito quilómetros do local do genocídio e a primeira vez que ouviu falar dele foi na TV, em criança. Encontramo-lo em Jedwabne, no supermercado, quando procurávamos um café e ele se preparava para pagar uns nacos de carne.

“Venham comigo, dou-vos boleia até uma gasolineira.” Sebastian fala fluentemente inglês, estuda Direito e é um apaixonado por desportos motorizados. Quer saber ao que vimos. “Ah, o massacre... Ninguém te dirá isso aqui, é tabu, mas foram os polacos que mataram os judeus.”
“Achas?!”
“Não acho, sei!”, afirma, fitando nos olhos sem perder tino na estrada. “Quando tive idade para fazer perguntas, os meus pais contaram-me o que ouviram a quem assistiu a tudo.”

O extermínio dos judeus é segredo apenas sussurrado ou aflorado no recato do lar, entre parentes e amigos. Ou quando o álcool entorna conversas de taberna. “Na escola não aprendi nada”, atalha Sebastian. “A minha geração fala sobre o assunto, soube pela televisão e pela internet porque é um tema quente, mas os mais velhos culpam os nazis pelo crime. Não querem ouvir dizer que os polacos foram capazes de fazer tal coisa.”

A MALDIÇÃO DA MEMÓRIA

Sebastian era bebé quando, em 2000, o professor de História polaco-americano Jan T. Gross, recorrendo a documentos inéditos e processos judiciais do pós-guerra, publicou a primeira investigação detalhada sobre o reprimido massacre de Jedwabne. O livro Vizinhos desencadeou a ira de autoridades, da Igreja e da população, mas gerou o maior debate histórico desde a queda do comunismo na Polónia. Pela primeira vez, perguntou-se, em campo aberto: pode uma vítima ser, ao mesmo tempo, um cruel perpetrador? Gross perdeu a condecoração que recebera do Estado, mas Joanna Michlic, coordenadora de uma obra coletiva sobre o tema, e Anna Bikont, jornalista autora de O Crime e o Silêncio, foram duas das investigadoras que mantiveram a controvérsia acesa.
Ler trechos em inglês
No ano passado, também João Pinto Coelho, após falar à VISÃO sobre o seu livro, foi insultado na imprensa polaca sensacionalista. Comentários exaltados recordaram-lhe a cooperação de Salazar com os nazis, a Inquisição, o colonialismo e o comércio de escravos, desafiando o Estado polaco a levá-lo a tribunal.

Numa carta aberta, que mereceu réplica do escritor, Jacek Kisielewsk, embaixador em Lisboa, criticou as declarações “infundadas, fora do contexto histórico” e baseadas em “generalizações injustas” citadas no artigo.

Rejeição
A Polónia nega qualquer hostilidade à comunidade judaica. Segundo a embaixada em Lisboa, o país foi visitado por mais de 150 mil judeus de Israel e centenas de milhares que vivem na Diáspora. O Museu da História dos Judeus Polacos, em Varsóvia, é dos mais procurados

“Acredito no poder da literatura” assume João, com Jedwabne à flor da pele. “Artistas e criadores devem levantar a voz e usar as suas formas de expressão para fazer o trabalho que alguns possam ver dificultado dentro da Polónia ou noutros lugares.”

Jedwabne regressou às páginas da Imprensa mundial na sequência da decisão do governo do Partido Lei e Justiça de criminalizar quem sugerir a existência de “campos de extermínio polacos” ou referir-se “pública e falsamente” à cumplicidade polaca com os crimes do nazismo.
Jedwabne pogrom em 2011 | foto @Jendrzej Wojnar/Agencja Gazeta/Reuters
O Presidente Andrzej Duda ratificou a lei, mas remeteu-a ao Tribunal Constitucional para clarificação. Está aberto um conflito com a União Europeia, Israel e os EUA. Junta-se a indignação geral dos historiadores, boquiabertos com o facto de tal ter origem no país que conta seis milhões de cidadãos assassinados pelos nazis (metade judeus) e quase sete mil “Justos Entre as Nações”, liderando as distinções do instituto israelita Yad Vashem atribuídas a quem arriscou a vida pelos judeus na II Guerra Mundial. A Polónia é acusada de tentar neutralizar o escrutínio público do seu passado turbulento e rejeitar a “pedagogia da vergonha”.

“O governo não sabe lidar com a grande política”, reconhece Sebastian Grabowski, andando na direção do memorial construído em Jedwabne no sítio do celeiro infame. Até março de 2001, a inscrição na pedra dizia que os nazis ali tinham assassinado 1600 judeus. Em julho seguinte, o então Presidente Kwasniewski deslocou-se ao local para pedir desculpa pelo genocídio em nome da nação polaca. População, autoridades locais e eclesiásticas boicotaram a cerimónia. Houve gestos obscenos, insultos e música alta para abafar os discursos, mas a nova inscrição foi inaugurada.

E perdura, mesmo tendo sido vandalizada:
foto: Diana Tinoco | @visao.pt
“À memória dos judeus de Jedwabne e da área circundante, homens, mulheres e crianças, coabitantes desta terra, que foram assassinados e queimados vivos neste lugar em 10 de julho de 1941”, lê-se.

A referência aos nazis foi apagada. Já não existem alusões a perpetradores nem ao número de mortos, matérias inflamáveis. “Não acredito em mais de 300 mortos, como caberiam no celeiro?”, questiona Sebastian, enquanto olha as pedras e ramos de flores, cobertos de neve, junto ao monumento. “Dos irmãos judeus para os irmãos polacos”, lê-se, numa das faixas, com o vermelho e branco da bandeira da Polónia.

A exumação superficial levada a cabo em 2001 no âmbito da investigação do Instituto da Memória Nacional, suspensa por razões religiosas a pedido da comunidade judaica, revelou duas valas comuns com restos de 340 corpos. As autoridades retiraram-se, admitindo a impossibilidade de verificar a existência de outras sepulturas no cemitério judeu, o que impede conclusões sobre o número total de vítimas.

ESTATÍSTICAS ASSASSINAS
Um quarto dos 219 massacres de comunidades judaicas em cidades e pequenas localidades do leste da Polónia, após a invasão alemã no verão de 1941, terá sido cometido por cidadãos polacos, encorajados ou não pelos nazis a fazer o “trabalho sujo”. Estes dados, apurados pelos investigadores Jeffrey C. Kopstein (Universidade de Toronto) e Jason Wittenberg (Universidade da Califórnia), serão publicados com mais pormenor em junho quando for lançada a obra Intimate Violence: Anti-Jewish Pogroms on the Eve of the Holocaust
Encomendar o livro (publicação em 15 de junho de 2018)
Além de relógios, jóias, moedas, dentes de crianças, utensílios de sapateiros e alfaiates, encontrou-se um número inusitado de chaves e cadeados. Terão as vítimas acreditado num gesto de misericórdia? A descoberta de balas alemãs nas fundações do celeiro parecia ser a prova definitiva da culpa nazi, mas as munições eram da I Guerra Mundial ou posteriores a 1942.

“Há ainda muitos equívocos”, admite Sebastian Grabowski, conhecedor dos mitos e conspirações que rondam a terra. “Não consigo julgar estas pessoas”, admite o jovem, interrogando-se em voz alta: “Porque o fizeram? Tinham medo, odiavam judeus? Os judeus fizeram-lhes mal? A realidade nunca é a preto e branco. Não sabemos as razões, embora seja injustificável”, reconhece, pedindo respostas. “Os jovens têm outra educação, sabem mais sobre tudo. Não posso falar por todos, mas a minha geração é mais aberta à verdade, sobretudo à verdade histórica.”

QUEM PRECISA DE LIVROS?

Mas que espécie de verdade é aceitável para o povo de Jedwabne? Duas pedras são o que sobra da secular presença judaica: o memorial e o cemitério, onde as silvas e a terra revolvida dão uma imagem desoladora. Os locais não estão sinalizados, mas, a poucos metros, destacam-se o cemitério cristão, de campas majestosas, e o monumento que assinala a morte de 180 pessoas “e dois sacerdotes” pelos soviéticos e nazis. Na praça onde os judeus aguardaram o trágico destino, uma escultura presta tributo aos polacos deportados para a Sibéria e o Cazaquistão.

Num livro luxuoso sobre a região, o massacre ocupa cinco linhas na página de Jedwabne e é atribuído aos nazis. Na biblioteca não existem livros sobre o Holocausto, falha que um animador cultural quer colmatar. Kamil Mrozowicz, 31 anos, teve a ideia de criar uma pequena biblioteca de autores mundiais sobre o tema. Estamos em Kucze Wielkie, sua aldeia natal, ainda Jedwabne. O edifício tem um ar degradado, o telhado ameaça ruína e a sala de convívio reclama reforma, mas Kamil não precisa de luxos. Sonha levar conhecimento aos conterrâneos, promover debates com escritores e sobreviventes, falar sobre o massacre e preservar a memória dos judeus de Jedwabne, “nomes, profissões, ruas onde viveram, para que não fiquem anónimos”.

Reuniu uma volumosa e contrastada coleção e recebeu das mãos de João Pinto Coelho os seus romances, incluindo Perguntem a Sarah Gross. “Espero humildemente que um dia se torne uma grande biblioteca dedicada ao Holocausto”, assume Kamil. “Jedwabne iniciou uma discussão nacional e foi estigmatizada como a “cidade do mal”. Porque não falamos sobre isso então? Porque não enviamos uma mensagem positiva a partir daqui?”, desafia.

Acontece que a presença de câmaras tem, em Jedwabne, o efeito de um pano vermelho para o touro e há “razões para tal”, admite Kamil. Os residentes sempre souberam quem liderou ou colaborou no massacre e enriqueceu à custa dos judeus espoliados. Sentem-se interrogados em permanência. Toda a gente se conhece e a carga psicológica é demasiado pesada para a maioria da população (75 por cento) que chegou depois da guerra. Os preconceitos também medraram. Jedwabne foi ilustrada como lugar infeliz, atrasado, sem infra-estruturas, nem emprego, território do Homo Jedwabicus, caricatura da espécie nacional que enterra a cabeça na areia e tem um medo histérico de verdades desagradáveis.

“Vivemos tempos difíceis. É fácil perdermo-nos entre a verdade e a mentira, mas nenhum de nós é responsável pelo que aconteceu”, explica Kamil, que, entretanto, é surpreendido por três vizinhos mal-humorados: duas mulheres (a líder da aldeia e a responsável pela gestão do edifício) e um velho de cara redonda e aspeto rude.

Cai a tarde, estão oito graus negativos, mas a conversa aquece. Querem saber quem deu autorização para Kamil entrar com os seus “amigos”, qual o tema da conversa – “aqui não queremos nada sobre política” – e se o presidente da câmara está a par do que foi dito ou gravado. Kamil nasceu ali, mas é tratado como um mero domingueiro de visita. “Estou a falar sobre literatura do Holocausto e promovo o tema em várias cidades, incluindo as pequenas”, responde ele, apaziguador.

“E o que temos que ver com isso?!”, reage o homem, brusco. “Não falaste sobre os judeus que mandaram polacos para a Sibéria”, questiona. “Procuras amigos da Polónia lá fora? São apenas bandidos e ladrões.”

O aspeto frágil, o gorro com pompom vermelho e a barbicha loura acentuam o ar inofensivo de Kamil. “Quero mostrar que, mesmo em condições precárias, podemos educar as pessoas, que não somos atrasados.” “Eu sei mais do que tu!”, interrompe o homem, de novo. “Sabes alguma coisa sobre os judeus? Diz aos teus amigos que eles enviaram pessoas para a Sibéria. Podes falar com o meu irmão, ele conta-te.”
“Vivemos tempos difíceis. É fácil perdermo-nos entre a verdade e a mentira”, explica Kamil,
apostado em divulgar livros sobre o Holocausto foto: Diana Tinoco | @visao.pt
“Não sou historiador, sou um ativista que apenas quer que as pessoas tenham acesso a livros”, insiste Kamil. “Quem é que ainda lê livros hoje?!”, interroga, em tom de desprezo, uma das mulheres. Nos dias seguintes, tudo se complicaria. A aldeia assustou-se, a família de Kamil recebeu olhares censórios na rua e insultos pelo telefone. Ele foi informado de que teria de encontrar outro sítio para montar a pequena biblioteca. “Não desisto. Vou procurar um novo lugar para os livros. Talvez em Lomza”, a vinte quilómetros.

VERDADE, MODO DE USAR

A função do veterinário Michal Chajewski, 59 anos, é zelar pelo “bom nome da cidade”. Isso significa não embarcar em “propaganda” e destacar “os numerosos exemplos de heroísmo” da terra durante a II Guerra Mundial, sobretudo contra o opressor soviético.

Rosto fechado, o presidente da comuna de Jedwabne, eleito pelo partido do governo, recebe os jornalistas e o escritor João Pinto Coelho num gabinete sem luxos, no qual se destacam alguns troféus, o crucifixo na parede e a fotografia com um dos gémeos Kaczynski, que governaram o país. O autarca já passou pelo cargo em 2001, depois de o antecessor, Krzystof Godlewski, ter sido forçado a resignar por organizar a cerimónia sobre o massacre de judeus. “As pessoas recompensaram-me”, disse então Chajewski, originário do Sul. “Sou firme e expressivo, não estou sujeito à propaganda judaica, não me ajoelho, nem abuso da palavra ‘desculpe’”, garantiu, prometendo nunca pôr os pés no memorial, o que, de resto, cumpriu.

A região onde se inclui Jedwabne é, desde tempos longínquos, uma fortaleza da ultra-direita. O autarca sempre namorou setores mais radicais da sociedade polaca, entre os quais figura Leszek Bubel, político marginal da extrema-direita nacionalista e um dos líderes do Comité para a Defesa do Bom Nome de Jedwabne, criado em 2001, “a versão polaca do Ku Klux Klan”, segundo o dramaturgo Tadeusz Slobodzianek. O tal Bubel é autor de brochuras anti-semitas distribuídas, em tempos, na região. Para o homem que manda em Jedwabne, a cidade é apenas “um dos muitos sítios onde houve massacres de judeus pelos nazis”. A atual inscrição no memorial é, por isso, “um ato de propaganda contra os polacos” e, como tal, nada se comemora no local.

“É preciso iluminar a verdade”, pede Chajewski. Isso implica retomar a exumação dos corpos em Jedwabne. “É uma acusação injusta dizer que os polacos estiveram envolvidos no assassínio sistemático de uma nação, judaica ou qualquer outra. Uma afirmação dessas deve ser tratada por aquilo que é: um crime.”

Pode ser apenas um sintoma de que o país precisa deitar-se no divã e enfrentar, de vez, a sua alma negra, mas quando se visita o palpitante Museu da História dos Judeus Polacos, em Varsóvia, as palavras do presidente de Jedwabne e as referências do primeiro-ministro polaco ao “colaboracionismo judeu” no Holocausto soam algo esquizofrénicas.

“Aqui só nos interessa a verdade”, garante Marta Dziewulska, diretora de comunicação do labiríntico museu financiado pelo Estado polaco e capitais alemães, israelitas e britânicos, entre outros. Jedwabne tem direito a um canto especial no edifício visitado por mais de 2,5 milhões de pessoas desde 2013. Numa vitrina estão as chaves recuperadas nas imediações do celeiro e há fotos sépia de vítimas.

Os polacos desempenharam “um papel fundamental” no crime. Os alemães encorajaram e observaram, “mas não estiveram diretamente envolvidos”. Lê-se. O dia é de entrada livre, acotovelam-se excursionistas, mas não neste setor. Ainda a digerir a passagem pela “cidade dividida entre aqueles que lidam com o passado e aqueles que o negam”, João Pinto Coelho teme pelas vozes “que possam ser abafadas”, mas emociona-se com “o exemplo corajoso” de Kamil e do seu projeto de biblioteca.

“Este lugar contraria a história que querem impor-nos, por isso podemos ter esperança.” Ou estará a verdade, na Polónia, condenada a ser uma peça de museu? @visao.pt