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Memorial O escritor português João Pinto Coelho visitou, em Jedwabne,
o monumento que assinala o massacre de 1941
foto: Diana Tinoco | @visao.pt |
Em julho de 1941,
centenas de judeus polacos foram trancados num celeiro e queimados vivos pelos
seus vizinhos. O massacre de Jedwabne, símbolo do papel
obscuro da Polónia na II Guerra Mundial, ilustra a incapacidade de enfrentar
fantasmas e a vontade de criminalizar quem se atrever a pisar o gelo fino da
memória. Percurso pelas encruzilhadas do país através da geografia perturbadora
da História. Guiados por páginas incómodas e João Pinto Coelho, o escritor que
se pôs a jeito.
por: Miguel Carvalho fotos:
Diana Tinoco, revista “Visão” (Portugal), № 1303 de 22/2/2018
A Jedwabne não se
chega por casualidade. Nem de forma inocente. A pequena cidade do Nordeste
sempre foi um corpo estranho na Polónia que exalta o orgulho pátrio enquanto
tenta domesticar as sombras do passado traumático. Para chegar à povoação de seis
mil pessoas e 48 aldeias é forçoso sair da estrada que deixou Bialystok, lagos
congelados e floresta densa para trás e seguir em direção à Avenida do Exército
Polaco, marginada de mantos brancos a perder de vista.
São nove horas de um
dia de fevereiro, amanheceu abaixo de zero e o vento fustiga a paisagem com
fiapos de neve. Celeiros dominam o cenário campestre, algumas casas são de
madeira velha e os tratores passam pachorrentos. Pequenos santuários cristãos
compõem o trajeto e contam-se cinco salões de beleza até chegar ao coração da
terra. No Parque João Paulo II, outrora Praça do Mercado, os nativos
entreolham-se. Outros assomam, furtivos, às janelas com cortinas de crochê,
desconfiados dos forasteiros. Vestem roupas simples, talvez mal agasalhados
para o tempo que faz, enquanto entram e saem da mercearia ou da florista sem
franquear palavra a estranhos. Para uma cidade cujo nome significa “seda”, a
receção é agreste. Desafiados, os velhos ainda desenferrujam russo ou alemão,
línguas francas da guerra, mas a rapariga do quiosque nem inglês arranha.
Tropeça-se em garrafas de vodca abandonadas nos passeios e, do alto das torres,
a Igreja de São Jacob contempla, imponente, o quotidiano da comuna de recorte
aldeão.
O português João Pinto
Coelho já esteve e não esteve aqui. Escavou as origens e memórias da cidade
para escrever Os Loucos da Rua Mazur, arrecadando o mais importante galardão
literário nacional (Prémio Leya) com a obra inspirada na matança de judeus em Jedwabne.
Através de três personagens, o leitor é levado a refletir sobre a
universalidade do mal e os perpetradores que vivem amansados dentro de nós. Ou
ao lado.
Em versão literária, é
um regresso. Mas, pela primeira vez, João calcorreia a Jedwabne real ao ponto
de enregelar os ossos. “A primeira sensação foi de silêncio, quebrado pelo
crocitar dos corvos que descrevi no romance sem saber que aqui existiam, muito
menos nesta quantidade”, descreve, pesando as palavras. “Quando vou a sítios
marcados por um sofrimento atroz, e tendo estado tanto tempo a escrever sobre
isso, procuro lidar com as imagens que trago gravadas. Senti um vazio em
Auschwitz e agora em Jedwabne. Se mudasse algo no livro, talvez falasse mais
dos silêncios, seria essa a ‘personagem’ que acrescentaria.”
O INFERNO TAMBÉM FOI
AQUI
Os corvos seguem
agitados, como se anunciassem maus presságios. Terão eles agoirado, também, a
10 de julho de 1941? A invasão nazi ocorrera em finais de junho. As ordens eram
para varrer a herança dos meses de ocupação soviética, não deixar vestígio
judaico e incitar populações locais a tomar em mãos o “trabalho sujo”. Dias
antes, a chacina de Radzilów, a 18 quilómetros, deitara por terra esperanças na
bondade alemã ou no auxílio polaco.
A mortandade excitara
ainda mais os ímpetos de camponeses, degredados da região e bandidagem de
várias estirpes. Famílias de judeus desataram em fuga.
Em Jedwabne, tudo foi
premeditado. Manhã cedo, pelo menos 40 habitantes, apoiados por fazendeiros e
rufiões de aldeias próximas, bloquearam acessos à cidade e arrancaram os judeus
aos seus lares e ofícios. Concentrados na Praça do Mercado, sob um sol
escaldante, aí foram mantidos, sem água, todo o dia, enquanto eram esfaqueados
ou espancados com forquilhas, pás e bastões. Outros foram perseguidos e
assassinados. O festim de crueldade, atiçado e observado à distância por um
punhado de soldados alemães, não poupou idosos, grávidas ou recém-nascidos.
Séculos de convivência sangraram logo ali.
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As vítimas. Fotos de arquivo | @visao.pt |
A primeira comunidade
de judeus mudara-se de Tycocin para Jedwabne em 1660 e tornara-se maioritária
nos primórdios da guerra. Registaram-se vagas clericais de anti-semitismo
ecoadas em sermões ou vertidas nas folhas paroquiais, mas cristãos e judeus
tinham conseguido viver em paz, partilhando carteiras da escola, aniversários,
casamentos e até frigoríficos.
O processo
Segundo a investigação
judicial ao massacre de Jedwabne, concluída em 2002, foram os polacos da cidade
e dos arredores os autores do massacre. Ouvidas mais de cem testemunhas, não
foi possível encontrar vivos ou identificar os perpetradores, além daqueles que
já tinham sido condenados no pós-guerra.
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Jedwabne tem sido descrito como um lugar infeliz, atrasado, território do ‘Homo Jedwabicus’,
caricatura da espécie nacional que enterra a cabeça na areia e tem um medo histérico de verdades desagradáveis
foto: Diana Tinoco | @visao.pt |
Pelo meio-dia, dezenas
de judeus mais corpulentos foram obrigados a derrubar a estátua de Lenine que
perdurara na praça e a carregar os pedaços até às imediações do cemitério
judeu. Sujeitos a sórdidas humilhações, cavaram um buraco e acabaram enterrados
com os destroços do monumento. As outras centenas seguiram ao entardecer, em procissão
forçada e violenta, para a mesma zona. Aí, cercadas pela multidão engrossada e
assanhada, foram trancadas num celeiro. Homens, mulheres e crianças arderam
vivos, depois de regados com litros de querosene.
Os poucos alemães
presentes limitaram-se a tirar fotografias. Os gritos escutaram-se a dois
quilómetros e o fedor pairou como castigo sobre a cidade durante dias. Alguns
judeus ainda escaparam. Sete sobreviveram durante a guerra escondidos num
chiqueiro por uma família cristã, perseguida pelos conterrâneos após o
conflito.
A comunidade foi
extinta e os seus bens destruídos ou saqueados ainda os cadáveres fumegavam. Os
criminosos assenhoraram-se de casas, ouro, peles e móveis. “Sim, houve polacos
envolvidos”, confirmaram residentes à historiadora Marta Kurkowska-Budzan, aqui
nascida, no final de conversas arrancadas a ferros. “O pior é que o fizeram de
boa vontade e por dinheiro judeu”, acrescentaram. A “punição” ou a “vontade de
Deus” sempre serviram de justificação para as histórias contadas em Jedwabne,
através de gerações, escreveu ela. Para muitos, o assassínio em massa de 1941
foi apenas mais um dia em que “o Diabo se estabeleceu na cidade”.
Sebastian Grabowski,
de 19 anos, vive a oito quilómetros do local do genocídio e a primeira vez que
ouviu falar dele foi na TV, em criança. Encontramo-lo em Jedwabne, no
supermercado, quando procurávamos um café e ele se preparava para pagar uns
nacos de carne.
“Venham comigo,
dou-vos boleia até uma gasolineira.” Sebastian fala fluentemente inglês, estuda
Direito e é um apaixonado por desportos motorizados. Quer saber ao que vimos.
“Ah, o massacre... Ninguém te dirá isso aqui, é tabu, mas foram os polacos que
mataram os judeus.”
“Achas?!”
“Não acho, sei!”,
afirma, fitando nos olhos sem perder tino na estrada. “Quando tive idade para
fazer perguntas, os meus pais contaram-me o que ouviram a quem assistiu a
tudo.”
O extermínio dos
judeus é segredo apenas sussurrado ou aflorado no recato do lar, entre parentes
e amigos. Ou quando o álcool entorna conversas de taberna. “Na escola não
aprendi nada”, atalha Sebastian. “A minha geração fala sobre o assunto, soube
pela televisão e pela internet porque é um tema quente, mas os mais velhos
culpam os nazis pelo crime. Não querem ouvir dizer que os polacos foram capazes
de fazer tal coisa.”
A MALDIÇÃO DA MEMÓRIA
Sebastian era bebé
quando, em 2000, o professor de História polaco-americano Jan T. Gross, recorrendo
a documentos inéditos e processos judiciais do pós-guerra, publicou a primeira
investigação detalhada sobre o reprimido massacre de Jedwabne. O livro Vizinhos
desencadeou a ira de autoridades, da Igreja e da população, mas gerou o maior
debate histórico desde a queda do comunismo na Polónia. Pela primeira vez,
perguntou-se, em campo aberto: pode uma vítima ser, ao mesmo tempo, um cruel
perpetrador? Gross perdeu a condecoração que recebera do Estado, mas Joanna
Michlic, coordenadora de uma obra coletiva sobre o tema, e Anna Bikont,
jornalista autora de O Crime e o Silêncio, foram duas das investigadoras que
mantiveram a controvérsia acesa.
No ano passado, também
João Pinto Coelho, após falar à VISÃO sobre o seu livro, foi insultado na imprensa polaca sensacionalista. Comentários exaltados recordaram-lhe a
cooperação de Salazar com os nazis, a Inquisição, o colonialismo e o comércio
de escravos, desafiando o Estado polaco a levá-lo a tribunal.
Numa carta aberta, que
mereceu réplica do escritor, Jacek Kisielewsk, embaixador em Lisboa, criticou
as declarações “infundadas, fora do contexto histórico” e baseadas em
“generalizações injustas” citadas no artigo.
Rejeição
A Polónia nega qualquer hostilidade à comunidade judaica. Segundo a embaixada em Lisboa, o país foi visitado por mais de 150 mil judeus de Israel e centenas de milhares que vivem na Diáspora. O Museu da História dos Judeus Polacos, em Varsóvia, é dos mais procurados
“Acredito no poder da
literatura” assume João, com Jedwabne à flor da pele. “Artistas e criadores
devem levantar a voz e usar as suas formas de expressão para fazer o trabalho
que alguns possam ver dificultado dentro da Polónia ou noutros lugares.”
Jedwabne regressou às
páginas da Imprensa mundial na sequência da decisão do governo do Partido Lei e
Justiça de criminalizar quem sugerir a existência de “campos de extermínio
polacos” ou referir-se “pública e falsamente” à cumplicidade polaca com os
crimes do nazismo.
O Presidente Andrzej
Duda ratificou a lei, mas remeteu-a ao Tribunal Constitucional para
clarificação. Está aberto um conflito com a União Europeia, Israel e os EUA.
Junta-se a indignação geral dos historiadores, boquiabertos com o facto de tal
ter origem no país que conta seis milhões de cidadãos assassinados pelos nazis
(metade judeus) e quase sete mil “Justos Entre as Nações”, liderando as distinções
do instituto israelita Yad Vashem atribuídas a quem arriscou a vida pelos
judeus na II Guerra Mundial. A Polónia é acusada de tentar neutralizar o
escrutínio público do seu passado turbulento e rejeitar a “pedagogia da
vergonha”.
“O governo não sabe
lidar com a grande política”, reconhece Sebastian Grabowski, andando na direção do
memorial construído em Jedwabne no sítio do celeiro infame. Até março de 2001, a
inscrição na pedra dizia que os nazis ali tinham assassinado 1600 judeus. Em
julho seguinte, o então Presidente Kwasniewski deslocou-se ao local para pedir
desculpa pelo genocídio em nome da nação polaca. População, autoridades locais
e eclesiásticas boicotaram a cerimónia. Houve gestos obscenos, insultos e
música alta para abafar os discursos, mas a nova inscrição foi inaugurada.
E perdura, mesmo tendo
sido vandalizada:
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foto: Diana Tinoco | @visao.pt |
“À memória dos judeus
de Jedwabne e da área circundante, homens, mulheres e crianças, coabitantes
desta terra, que foram assassinados e queimados vivos neste lugar em 10 de
julho de 1941”, lê-se.
A referência aos nazis
foi apagada. Já não existem alusões a perpetradores nem ao número de mortos,
matérias inflamáveis. “Não acredito em mais de 300 mortos, como caberiam no
celeiro?”, questiona Sebastian, enquanto olha as pedras e ramos de flores,
cobertos de neve, junto ao monumento. “Dos irmãos judeus para os irmãos
polacos”, lê-se, numa das faixas, com o vermelho e branco da bandeira da
Polónia.
A exumação superficial
levada a cabo em 2001 no âmbito da investigação do Instituto da Memória
Nacional, suspensa por razões religiosas a pedido da comunidade judaica,
revelou duas valas comuns com restos de 340 corpos. As autoridades
retiraram-se, admitindo a impossibilidade de verificar a existência de outras
sepulturas no cemitério judeu, o que impede conclusões sobre o número total de
vítimas.
ESTATÍSTICAS ASSASSINAS
Um quarto dos 219 massacres de comunidades judaicas em cidades e pequenas localidades do leste da Polónia, após a invasão alemã no verão de 1941, terá sido cometido por cidadãos polacos, encorajados ou não pelos nazis a fazer o “trabalho sujo”. Estes dados, apurados pelos investigadores Jeffrey C. Kopstein (Universidade de Toronto) e Jason Wittenberg (Universidade da Califórnia), serão publicados com mais pormenor em junho quando for lançada a obra Intimate Violence: Anti-Jewish Pogroms on the Eve of the Holocaust
Além de relógios, jóias,
moedas, dentes de crianças, utensílios de sapateiros e alfaiates, encontrou-se
um número inusitado de chaves e cadeados. Terão as vítimas acreditado num gesto
de misericórdia? A descoberta de balas alemãs nas fundações do celeiro parecia
ser a prova definitiva da culpa nazi, mas as munições eram da I Guerra Mundial
ou posteriores a 1942.
“Há ainda muitos
equívocos”, admite Sebastian Grabowski, conhecedor dos mitos e conspirações que
rondam a terra. “Não consigo julgar estas pessoas”, admite o jovem,
interrogando-se em voz alta: “Porque o fizeram? Tinham medo, odiavam judeus? Os
judeus fizeram-lhes mal? A realidade nunca é a preto e branco. Não sabemos as
razões, embora seja injustificável”, reconhece, pedindo respostas. “Os jovens têm outra
educação, sabem mais sobre tudo. Não posso falar por todos, mas a minha geração
é mais aberta à verdade, sobretudo à verdade histórica.”
QUEM PRECISA DE
LIVROS?
Mas que espécie de
verdade é aceitável para o povo de Jedwabne? Duas pedras são o que sobra da
secular presença judaica: o memorial e o cemitério, onde as silvas e a terra
revolvida dão uma imagem desoladora. Os locais não estão sinalizados, mas, a
poucos metros, destacam-se o cemitério cristão, de campas majestosas, e o
monumento que assinala a morte de 180 pessoas “e dois sacerdotes” pelos
soviéticos e nazis. Na praça onde os judeus aguardaram o trágico destino, uma
escultura presta tributo aos polacos deportados para a Sibéria e o Cazaquistão.
Num livro luxuoso
sobre a região, o massacre ocupa cinco linhas na página de Jedwabne e é
atribuído aos nazis. Na biblioteca não existem livros sobre o Holocausto, falha
que um animador cultural quer colmatar. Kamil Mrozowicz, 31 anos, teve a ideia
de criar uma pequena biblioteca de autores mundiais sobre o tema. Estamos em
Kucze Wielkie, sua aldeia natal, ainda Jedwabne. O edifício tem um ar
degradado, o telhado ameaça ruína e a sala de convívio reclama reforma, mas
Kamil não precisa de luxos. Sonha levar conhecimento aos conterrâneos, promover
debates com escritores e sobreviventes, falar sobre o massacre e preservar a
memória dos judeus de Jedwabne, “nomes, profissões, ruas onde viveram, para que
não fiquem anónimos”.
Reuniu uma volumosa e
contrastada coleção e recebeu das mãos de João Pinto Coelho os seus romances,
incluindo Perguntem a Sarah Gross. “Espero humildemente que um dia se torne uma
grande biblioteca dedicada ao Holocausto”, assume Kamil. “Jedwabne iniciou uma
discussão nacional e foi estigmatizada como a “cidade do mal”. Porque não
falamos sobre isso então? Porque não enviamos uma mensagem positiva a partir
daqui?”, desafia.
Acontece que a
presença de câmaras tem, em Jedwabne, o efeito de um pano vermelho para o touro
e há “razões para tal”, admite Kamil. Os residentes sempre souberam quem
liderou ou colaborou no massacre e enriqueceu à custa dos judeus espoliados.
Sentem-se interrogados em permanência. Toda a gente se conhece e a carga
psicológica é demasiado pesada para a maioria da população (75 por cento) que
chegou depois da guerra. Os preconceitos também medraram. Jedwabne foi ilustrada
como lugar infeliz, atrasado, sem infra-estruturas, nem emprego, território do
Homo Jedwabicus, caricatura da espécie nacional que enterra a cabeça na areia e
tem um medo histérico de verdades desagradáveis.
“Vivemos tempos
difíceis. É fácil perdermo-nos entre a verdade e a mentira, mas nenhum de nós é
responsável pelo que aconteceu”, explica Kamil, que, entretanto, é surpreendido
por três vizinhos mal-humorados: duas mulheres (a líder da aldeia e a
responsável pela gestão do edifício) e um velho de cara redonda e aspeto rude.
Cai a tarde, estão
oito graus negativos, mas a conversa aquece. Querem saber quem deu autorização
para Kamil entrar com os seus “amigos”, qual o tema da conversa – “aqui não
queremos nada sobre política” – e se o presidente da câmara está a par do que
foi dito ou gravado. Kamil nasceu ali, mas é tratado como um mero domingueiro
de visita. “Estou a falar sobre literatura do Holocausto e promovo o tema em
várias cidades, incluindo as pequenas”, responde ele, apaziguador.
“E o que temos que ver
com isso?!”, reage o homem, brusco. “Não falaste sobre os judeus que mandaram
polacos para a Sibéria”, questiona. “Procuras amigos da Polónia lá fora? São
apenas bandidos e ladrões.”
O aspeto frágil, o
gorro com pompom vermelho e a barbicha loura acentuam o ar inofensivo de Kamil.
“Quero mostrar que, mesmo em condições precárias, podemos educar as pessoas,
que não somos atrasados.” “Eu sei mais do que tu!”, interrompe o homem, de
novo. “Sabes alguma coisa sobre os judeus? Diz aos teus amigos que eles
enviaram pessoas para a Sibéria. Podes falar com o meu irmão, ele conta-te.”
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“Vivemos tempos difíceis. É fácil perdermo-nos entre a verdade e a mentira”, explica Kamil,
apostado em divulgar livros sobre o Holocausto foto: Diana Tinoco | @visao.pt |
“Não sou historiador,
sou um ativista que apenas quer que as pessoas tenham acesso a livros”, insiste
Kamil. “Quem é que ainda lê livros hoje?!”, interroga, em tom de desprezo, uma
das mulheres. Nos dias seguintes, tudo se complicaria. A aldeia assustou-se, a
família de Kamil recebeu olhares censórios na rua e insultos pelo telefone. Ele
foi informado de que teria de encontrar outro sítio para montar a pequena
biblioteca. “Não desisto. Vou procurar um novo lugar para os livros. Talvez em
Lomza”, a vinte quilómetros.
VERDADE, MODO DE USAR
A função do
veterinário Michal Chajewski, 59 anos, é zelar pelo “bom nome da cidade”. Isso
significa não embarcar em “propaganda” e destacar “os numerosos exemplos de
heroísmo” da terra durante a II Guerra Mundial, sobretudo contra o opressor
soviético.
Rosto fechado, o
presidente da comuna de Jedwabne, eleito pelo partido do governo, recebe os
jornalistas e o escritor João Pinto Coelho num gabinete sem luxos, no qual se
destacam alguns troféus, o crucifixo na parede e a fotografia com um dos gémeos
Kaczynski, que governaram o país. O autarca já passou pelo cargo em 2001,
depois de o antecessor, Krzystof Godlewski, ter sido forçado a resignar por
organizar a cerimónia sobre o massacre de judeus. “As pessoas
recompensaram-me”, disse então Chajewski, originário do Sul. “Sou firme e
expressivo, não estou sujeito à propaganda judaica, não me ajoelho, nem abuso
da palavra ‘desculpe’”, garantiu, prometendo nunca pôr os pés no memorial, o
que, de resto, cumpriu.
A região onde se inclui
Jedwabne é, desde tempos longínquos, uma fortaleza da ultra-direita. O autarca
sempre namorou setores mais radicais da sociedade polaca, entre os quais figura
Leszek Bubel, político marginal da extrema-direita nacionalista e um dos
líderes do Comité para a Defesa do Bom Nome de Jedwabne, criado em 2001, “a
versão polaca do Ku Klux Klan”, segundo o dramaturgo Tadeusz Slobodzianek. O
tal Bubel é autor de brochuras anti-semitas distribuídas, em tempos, na região.
Para o homem que manda em Jedwabne, a cidade é apenas “um dos muitos sítios
onde houve massacres de judeus pelos nazis”. A atual inscrição no memorial é,
por isso, “um ato de propaganda contra os polacos” e, como tal, nada se
comemora no local.
“É preciso iluminar a
verdade”, pede Chajewski. Isso implica retomar a exumação dos corpos em
Jedwabne. “É uma acusação injusta dizer que os polacos estiveram envolvidos no
assassínio sistemático de uma nação, judaica ou qualquer outra. Uma afirmação
dessas deve ser tratada por aquilo que é: um crime.”
Pode ser apenas um
sintoma de que o país precisa deitar-se no divã e enfrentar, de vez, a sua alma
negra, mas quando se visita o palpitante Museu da História dos Judeus Polacos,
em Varsóvia, as palavras do presidente de Jedwabne e as referências do
primeiro-ministro polaco ao “colaboracionismo judeu” no Holocausto soam algo
esquizofrénicas.
“Aqui só nos interessa
a verdade”, garante Marta Dziewulska, diretora de comunicação do labiríntico
museu financiado pelo Estado polaco e capitais alemães, israelitas e
britânicos, entre outros. Jedwabne tem direito a um canto especial no edifício
visitado por mais de 2,5 milhões de pessoas desde 2013. Numa vitrina estão as
chaves recuperadas nas imediações do celeiro e há fotos sépia de vítimas.
Os polacos
desempenharam “um papel fundamental” no crime. Os alemães encorajaram e
observaram, “mas não estiveram diretamente envolvidos”. Lê-se. O dia é de
entrada livre, acotovelam-se excursionistas, mas não neste setor. Ainda a
digerir a passagem pela “cidade dividida entre aqueles que lidam com o passado e
aqueles que o negam”, João Pinto Coelho teme pelas vozes “que possam ser
abafadas”, mas emociona-se com “o exemplo corajoso” de Kamil e do seu projeto
de biblioteca.
“Este lugar contraria
a história que querem impor-nos, por isso podemos ter esperança.” Ou estará a
verdade, na Polónia, condenada a ser uma peça de museu? @visao.pt