domingo, outubro 02, 2016

As placas de trânsito: as paragens da esteira da morte

«Nós fomos, e então eu vi todo aquele horror... Blokhin colocou as suas roupas especiais: um boné de cabedal castanho, um longo avental de cabedal castanho, luvas de cabedal castanho acima dos cotovelos. Em mim isso fez uma enorme impressão – eu vi um carrasco!” (dos depoimentos do chefe da Direção do NKVD na região de Kalinin, Dmitri Tokarev).

Perto da cidade russa de Tver existe uma saída da auto-estrada federal à uma estrada local que leva a cidade de Likhoslavl, passando pela localidade de Mednoe, que se estendeu livremente nas ambas as margens do rio Tverets. Existe uma placa de trânsito de cor azul que assinala a cidade – Mednoe. E mais nada. Antigamente havia uma outra placa: “Mednoe. Complexo Memorial”, mas alguns anos atrás foi removida da autro-estrada federal. Fora da vista. Pois então, que Deus nos livre, estará de passagem, o chefe principal do Kremlin, indo para o seu local de origem, no burgo de São Pedro, irá reparar na tal placa e ficará entristecido. Para que estragar a disposição à um homem bom? Afinal, se o tal chefe chegasse ao poder uns vinte e cinco anos mais cedo, nem existiria a placa indicadora, nem, provavelmente, o próprio complexo memorial.
Pois existe Katyn, e parem sobre isso, tipo fecharemos o tema. Não foram eficientes, não esconderam tudo bem direitinho em Katyn. Os alemães maldosos desenterraram as valas comuns de mais de quatro mil pessoas em 1943, denunciaram à todo o mundo, quase nos levavam consigo juntos, ao banco dos réus em Nuremberga. Mas, deram de frouxos então os aliados. Deixaram tudo em águas de bacalhau. E os soviéticos eram capazes de mentir muitíssimo melhor do que a atuais televisões russas sobre os absurdos dos meninos crucificados. Tipo, foram os nazis que os assassinaram e final feliz. Pois as balas nas nucas eram alemãs.

O mito sobreviveria até o seu esquecimento na era Putin, se não fosse a consciência do Gorbachev que sofresse dos remorsos pós-comunistas e do Yeltsin, atormentado pela ressaca democrática crónica, não abrissem os arquivos e não revelassem o crime estalinista terrível, um crime contra a humanidade, ou seja, o assassinato brutal de pouco menos de 22.000 militares e policiais polacos, bem como vários administradores municipais, que sem lutar se renderam ao Exército Vermelho ou foram presos pelo NKVD na parte da Polónia ocupada pelos soviéticos em 1939 (a segunda metade, de acordo com o secreto Pacto Molotov – Ribbentrop, em combates, abocanhou a Alemanha de Hitler).
Mas em Katyn assassinaram e enterraram os 4.421 dos 21.857 mártires. Onde estão os outros? Mais de 6.300 estão sepultados em Mednoe. Mais alguns milhares foram fuzilados nas cadeias de Ucrânia e Belarus Ocidental, a localização destas sepulturas comuns até hoje não está totalmente esclarecida.

Significa que o maior “cemitério” da elite militar polaca, exterminada pelo Estaline  está localizado em Mednoe. Mais tarde, os polacos colocaram na tranquila floresta de pinheiros um enorme memorial em forma de Muro de Lamentações, feito de cobre com o nome de cada vítima, gravado nele. E em seu torno, como no desfile militar, colocaram as placas de cobre, em forma do quadrado de infantaria, com o nome, data de nascimento e ano da morte de cada um dos aqui deitados sob uma espessa camada de areia branca. Todos são homens de todas as idades, mas o ano de sua morte é único – 1940. Foram fuzilados, uns em abril, outros em maio do mesmo ano. Os assassinavam quase um mês e meio. Entre cem e quatro centenas de pessoas por dia. As pistolas do pelotão de fuzilamento aqueciam e encravavam, mas eles matavam e matavam. A esteira da morte funcionava sem paragens.
Todos os seis mil e trezentos e onze prisioneiros eram mantidos em um convento antigo e novamente em funcionamento (Nilostolobenskaja Pustyn) nas margens do pitoresco lago Seliger. Lá os prisioneiros passaram o outono, inverno e a primavera antes da sua morte. Depois os começaram “enviar para casa”. Em grupos de 100-400 pessoas por dia. Os restantes companheiros se alegraram, escreviam e entregavam aos companheiros as cartas aos parentes, todos os dias, com cada vez maior entusiasmo esperavam a sua própria viagem à Pátria.

A viagem de cada um destes grupos terminava numa cave húmida do departamento de NKVD de Tver, onde cada um destes viajantes levava uma bala na nuca. Nas mesmas noites, os camiões cobertos transportavam os corpos até a aldeia de férias dos funcionários do NKVD (!), perto de Mednoe, onde na floresta já eram preparadas as valas profundas. Na manhã o enterro estava terminado. Os coveiros poderiam descansar por algumas horas, antes de um novo turno noturno. E assim todos os dias. Sem os fins-de-semana.
Quando o mistério foi descoberto, em 1991 os polacos, juntamente com os voluntários ativistas russos de direitos humanos começaram a desenterrar os corpos para identificá-los um por um. Quase todos os corpos preservavam as suas roupas e sapatos, e até os documentos pessoais e cartas. Os médicos legistas presentes nas escavações acabaram por decidir encerrar o processo, pois, devido às propriedades do enterro na areia seca, apesar dos anos que se passaram, os restos mortais não ficaram totalmente decompostos e representavam um perigo grave para a saúde dos voluntários presentes na escavação.

A parte polaca parou as escavações e decidiu enterrar os corpos encontrados, naquele mesmo local e com a permissão das autoridades russas, transformar a vala comum em um cemitério memorial, o que foi feito. Além da estela gigante com um sino e uma enorme praça das lápides que cerca a área no local de cada vala comum, entre os enormes pinheiros estavam as cruzes católicos de cobre, do tamanho destes mesmos pinheiros.

Neste lugar o silêncio é sempre mais sonoro, daqueles que ocorrem na natureza, zumbindo nos ouvidos, como se fosse o gemido de milhares de vítimas do genocídio de Estaline, enterrados na areia.
Cada vez, no caminho às férias na Finlândia, eu paro por uma hora neste local, oiço o silêncio dos pinheiros, cruzes, areia e relva, sino e a parede de cobre... E nunca, durante mais de 20 anos encontrei aqui algum visitante. Parece que entras numa secreta rachadura do tempo. E, sim, na estreita estrada para Likhoslavl, junto ao desvio para o cemitério ainda está de pé a placa cinzenta simplória “Mednoe. Complexo Memorial”, com uma modesta, perdida no fundo geral, seta em baixo. Modestamente. Quase invisível. E uns quinhentos metros antes da entrada do cemitério o caminho é barrado com um portão de ferro com o sinal de “beco sem saída”. Depois é só à pé. Sem as placas...
"Mednoe. Complexo Memorial"
Se é impossível esconder o crime que escapou ao veredicto do tribunal internacional, sem qualquer penalização, pode silenciá-lo, pode esquecê-lo, não se lembrar. Como se não existisse. Pois não há nenhuma placa. Então não há para onde ir. Os polacos (parentes e funcionários) conhecem o caminho e vêm às vezes, uma vez por ano. E os russos, para que precisam de saber disso? Para que incomodar a sua consciência, incapaz de se tornar forte? De repente, essa tal consciência despertará miraculosamente, e eles deixarão de votar anos sem fim nos comunistas, NKVDistas, obscurantistas e reacionários ... votar na guerra. E depois então?

Este crime terrível, assassinato em massa, assim como milhares de outras atrocidades semelhantes e assassinatos em massa do regime comunista permaneceu sem uma sentença ou punição, sem o nosso próprio Nuremberga russo.

Embora a União Soviética quase ficou em apuros quando o seu representante em Nuremberga, propôs a inclusão de massacre de Katyn na lista de crimes dos alemães. Mas as provas acabaram por se revelar falsas. O caso ficou esquecido até 1951, quando a Comissão Congresso dos Estados Unidos conduziu a sua investigação e acusou a parte soviética. Em princípio, todos os aliados ocidentais sabiam desde o começo quem fuzilou os oficiais polacos, mas o assunto ficou abafado.
Depois começou a Guerra Fria, e os polacos foram esquecidos. Mas se houvesse, em tempo útil, um verdadeiro tribunal internacional sobre o caso, então, quem sabe, não haveria guerras na Chechénia, Karabakh, Transnístria, Geórgia, Ucrânia. Não haveria dezenas de assassinatos de jornalistas e políticos, atentados, ataques terroristas, fraude eleitoral, brigas com o mundo, as sanções de vergonha, o medo e desprezo mundial... Ou mesmo assim haveria? O destino da Rússia é mesmo assim? A sua maneira especial russa?

Em qualquer caso, não seria mau colocar a placa na auto-estrada M-10. Ou já não faz sentido? Depois de tudo que passamos... e antes de tudo que ainda iremos de passar...

Assim, com Mednoe e Katyn passamos. Será que com “Buk” em Snezhnoe ELES terão a mesma “sorte”? Nesta semana os investigadores internacionais finalmente colocaram uma placa para um novo processo de Nuremberga. Passaremos ao BECO desta vez? (Texto e fotos @Sergei Loiko).

P.S.: Os nomes de todos os criminosos são conhecidos, sobre alguns carrascos vocês podem ler AQUI. Segundo alguns cálculos, durante os anos de serviço no NKVD, Vasili Blokhin, fuzilou pessoalmente entre 10.000 à 15.000 pessoas.

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