sexta-feira, fevereiro 23, 2018

Jedwabne: viagem ao coração das trevas

Memorial O escritor português João Pinto Coelho visitou, em Jedwabne,
o monumento que assinala o massacre de 1941
foto: Diana Tinoco | @visao.pt
Em julho de 1941, centenas de judeus polacos foram trancados num celeiro e queimados vivos pelos seus vizinhos. O massacre de Jedwabne, símbolo do papel obscuro da Polónia na II Guerra Mundial, ilustra a incapacidade de enfrentar fantasmas e a vontade de criminalizar quem se atrever a pisar o gelo fino da memória. Percurso pelas encruzilhadas do país através da geografia perturbadora da História. Guiados por páginas incómodas e João Pinto Coelho, o escritor que se pôs a jeito.

por: Miguel Carvalho fotos: Diana Tinoco, revista “Visão” (Portugal), № 1303 de 22/2/2018

A Jedwabne não se chega por casualidade. Nem de forma inocente. A pequena cidade do Nordeste sempre foi um corpo estranho na Polónia que exalta o orgulho pátrio enquanto tenta domesticar as sombras do passado traumático. Para chegar à povoação de seis mil pessoas e 48 aldeias é forçoso sair da estrada que deixou Bialystok, lagos congelados e floresta densa para trás e seguir em direção à Avenida do Exército Polaco, marginada de mantos brancos a perder de vista.

São nove horas de um dia de fevereiro, amanheceu abaixo de zero e o vento fustiga a paisagem com fiapos de neve. Celeiros dominam o cenário campestre, algumas casas são de madeira velha e os tratores passam pachorrentos. Pequenos santuários cristãos compõem o trajeto e contam-se cinco salões de beleza até chegar ao coração da terra. No Parque João Paulo II, outrora Praça do Mercado, os nativos entreolham-se. Outros assomam, furtivos, às janelas com cortinas de crochê, desconfiados dos forasteiros. Vestem roupas simples, talvez mal agasalhados para o tempo que faz, enquanto entram e saem da mercearia ou da florista sem franquear palavra a estranhos. Para uma cidade cujo nome significa “seda”, a receção é agreste. Desafiados, os velhos ainda desenferrujam russo ou alemão, línguas francas da guerra, mas a rapariga do quiosque nem inglês arranha. Tropeça-se em garrafas de vodca abandonadas nos passeios e, do alto das torres, a Igreja de São Jacob contempla, imponente, o quotidiano da comuna de recorte aldeão.

O português João Pinto Coelho já esteve e não esteve aqui. Escavou as origens e memórias da cidade para escrever Os Loucos da Rua Mazur, arrecadando o mais importante galardão literário nacional (Prémio Leya) com a obra inspirada na matança de judeus em Jedwabne. Através de três personagens, o leitor é levado a refletir sobre a universalidade do mal e os perpetradores que vivem amansados dentro de nós. Ou ao lado.
Ler mais sobre o livro
Em versão literária, é um regresso. Mas, pela primeira vez, João calcorreia a Jedwabne real ao ponto de enregelar os ossos. “A primeira sensação foi de silêncio, quebrado pelo crocitar dos corvos que descrevi no romance sem saber que aqui existiam, muito menos nesta quantidade”, descreve, pesando as palavras. “Quando vou a sítios marcados por um sofrimento atroz, e tendo estado tanto tempo a escrever sobre isso, procuro lidar com as imagens que trago gravadas. Senti um vazio em Auschwitz e agora em Jedwabne. Se mudasse algo no livro, talvez falasse mais dos silêncios, seria essa a ‘personagem’ que acrescentaria.”

O INFERNO TAMBÉM FOI AQUI

Os corvos seguem agitados, como se anunciassem maus presságios. Terão eles agoirado, também, a 10 de julho de 1941? A invasão nazi ocorrera em finais de junho. As ordens eram para varrer a herança dos meses de ocupação soviética, não deixar vestígio judaico e incitar populações locais a tomar em mãos o “trabalho sujo”. Dias antes, a chacina de Radzilów, a 18 quilómetros, deitara por terra esperanças na bondade alemã ou no auxílio polaco.

A mortandade excitara ainda mais os ímpetos de camponeses, degredados da região e bandidagem de várias estirpes. Famílias de judeus desataram em fuga.

Em Jedwabne, tudo foi premeditado. Manhã cedo, pelo menos 40 habitantes, apoiados por fazendeiros e rufiões de aldeias próximas, bloquearam acessos à cidade e arrancaram os judeus aos seus lares e ofícios. Concentrados na Praça do Mercado, sob um sol escaldante, aí foram mantidos, sem água, todo o dia, enquanto eram esfaqueados ou espancados com forquilhas, pás e bastões. Outros foram perseguidos e assassinados. O festim de crueldade, atiçado e observado à distância por um punhado de soldados alemães, não poupou idosos, grávidas ou recém-nascidos. Séculos de convivência sangraram logo ali.
As vítimas. Fotos de arquivo | @visao.pt
A primeira comunidade de judeus mudara-se de Tycocin para Jedwabne em 1660 e tornara-se maioritária nos primórdios da guerra. Registaram-se vagas clericais de anti-semitismo ecoadas em sermões ou vertidas nas folhas paroquiais, mas cristãos e judeus tinham conseguido viver em paz, partilhando carteiras da escola, aniversários, casamentos e até frigoríficos.

O processo
Segundo a investigação judicial ao massacre de Jedwabne, concluída em 2002, foram os polacos da cidade e dos arredores os autores do massacre. Ouvidas mais de cem testemunhas, não foi possível encontrar vivos ou identificar os perpetradores, além daqueles que já tinham sido condenados no pós-guerra.
Jedwabne tem sido descrito como um lugar infeliz, atrasado, território do ‘Homo Jedwabicus’,
caricatura da espécie nacional que enterra a cabeça na areia e tem um medo histérico de verdades desagradáveis
foto: Diana Tinoco | @visao.pt
Pelo meio-dia, dezenas de judeus mais corpulentos foram obrigados a derrubar a estátua de Lenine que perdurara na praça e a carregar os pedaços até às imediações do cemitério judeu. Sujeitos a sórdidas humilhações, cavaram um buraco e acabaram enterrados com os destroços do monumento. As outras centenas seguiram ao entardecer, em procissão forçada e violenta, para a mesma zona. Aí, cercadas pela multidão engrossada e assanhada, foram trancadas num celeiro. Homens, mulheres e crianças arderam vivos, depois de regados com litros de querosene.

Os poucos alemães presentes limitaram-se a tirar fotografias. Os gritos escutaram-se a dois quilómetros e o fedor pairou como castigo sobre a cidade durante dias. Alguns judeus ainda escaparam. Sete sobreviveram durante a guerra escondidos num chiqueiro por uma família cristã, perseguida pelos conterrâneos após o conflito.

A comunidade foi extinta e os seus bens destruídos ou saqueados ainda os cadáveres fumegavam. Os criminosos assenhoraram-se de casas, ouro, peles e móveis. “Sim, houve polacos envolvidos”, confirmaram residentes à historiadora Marta Kurkowska-Budzan, aqui nascida, no final de conversas arrancadas a ferros. “O pior é que o fizeram de boa vontade e por dinheiro judeu”, acrescentaram. A “punição” ou a “vontade de Deus” sempre serviram de justificação para as histórias contadas em Jedwabne, através de gerações, escreveu ela. Para muitos, o assassínio em massa de 1941 foi apenas mais um dia em que “o Diabo se estabeleceu na cidade”.

Sebastian Grabowski, de 19 anos, vive a oito quilómetros do local do genocídio e a primeira vez que ouviu falar dele foi na TV, em criança. Encontramo-lo em Jedwabne, no supermercado, quando procurávamos um café e ele se preparava para pagar uns nacos de carne.

“Venham comigo, dou-vos boleia até uma gasolineira.” Sebastian fala fluentemente inglês, estuda Direito e é um apaixonado por desportos motorizados. Quer saber ao que vimos. “Ah, o massacre... Ninguém te dirá isso aqui, é tabu, mas foram os polacos que mataram os judeus.”
“Achas?!”
“Não acho, sei!”, afirma, fitando nos olhos sem perder tino na estrada. “Quando tive idade para fazer perguntas, os meus pais contaram-me o que ouviram a quem assistiu a tudo.”

O extermínio dos judeus é segredo apenas sussurrado ou aflorado no recato do lar, entre parentes e amigos. Ou quando o álcool entorna conversas de taberna. “Na escola não aprendi nada”, atalha Sebastian. “A minha geração fala sobre o assunto, soube pela televisão e pela internet porque é um tema quente, mas os mais velhos culpam os nazis pelo crime. Não querem ouvir dizer que os polacos foram capazes de fazer tal coisa.”

A MALDIÇÃO DA MEMÓRIA

Sebastian era bebé quando, em 2000, o professor de História polaco-americano Jan T. Gross, recorrendo a documentos inéditos e processos judiciais do pós-guerra, publicou a primeira investigação detalhada sobre o reprimido massacre de Jedwabne. O livro Vizinhos desencadeou a ira de autoridades, da Igreja e da população, mas gerou o maior debate histórico desde a queda do comunismo na Polónia. Pela primeira vez, perguntou-se, em campo aberto: pode uma vítima ser, ao mesmo tempo, um cruel perpetrador? Gross perdeu a condecoração que recebera do Estado, mas Joanna Michlic, coordenadora de uma obra coletiva sobre o tema, e Anna Bikont, jornalista autora de O Crime e o Silêncio, foram duas das investigadoras que mantiveram a controvérsia acesa.
Ler trechos em inglês
No ano passado, também João Pinto Coelho, após falar à VISÃO sobre o seu livro, foi insultado na imprensa polaca sensacionalista. Comentários exaltados recordaram-lhe a cooperação de Salazar com os nazis, a Inquisição, o colonialismo e o comércio de escravos, desafiando o Estado polaco a levá-lo a tribunal.

Numa carta aberta, que mereceu réplica do escritor, Jacek Kisielewsk, embaixador em Lisboa, criticou as declarações “infundadas, fora do contexto histórico” e baseadas em “generalizações injustas” citadas no artigo.

Rejeição
A Polónia nega qualquer hostilidade à comunidade judaica. Segundo a embaixada em Lisboa, o país foi visitado por mais de 150 mil judeus de Israel e centenas de milhares que vivem na Diáspora. O Museu da História dos Judeus Polacos, em Varsóvia, é dos mais procurados

“Acredito no poder da literatura” assume João, com Jedwabne à flor da pele. “Artistas e criadores devem levantar a voz e usar as suas formas de expressão para fazer o trabalho que alguns possam ver dificultado dentro da Polónia ou noutros lugares.”

Jedwabne regressou às páginas da Imprensa mundial na sequência da decisão do governo do Partido Lei e Justiça de criminalizar quem sugerir a existência de “campos de extermínio polacos” ou referir-se “pública e falsamente” à cumplicidade polaca com os crimes do nazismo.
Jedwabne pogrom em 2011 | foto @Jendrzej Wojnar/Agencja Gazeta/Reuters
O Presidente Andrzej Duda ratificou a lei, mas remeteu-a ao Tribunal Constitucional para clarificação. Está aberto um conflito com a União Europeia, Israel e os EUA. Junta-se a indignação geral dos historiadores, boquiabertos com o facto de tal ter origem no país que conta seis milhões de cidadãos assassinados pelos nazis (metade judeus) e quase sete mil “Justos Entre as Nações”, liderando as distinções do instituto israelita Yad Vashem atribuídas a quem arriscou a vida pelos judeus na II Guerra Mundial. A Polónia é acusada de tentar neutralizar o escrutínio público do seu passado turbulento e rejeitar a “pedagogia da vergonha”.

“O governo não sabe lidar com a grande política”, reconhece Sebastian Grabowski, andando na direção do memorial construído em Jedwabne no sítio do celeiro infame. Até março de 2001, a inscrição na pedra dizia que os nazis ali tinham assassinado 1600 judeus. Em julho seguinte, o então Presidente Kwasniewski deslocou-se ao local para pedir desculpa pelo genocídio em nome da nação polaca. População, autoridades locais e eclesiásticas boicotaram a cerimónia. Houve gestos obscenos, insultos e música alta para abafar os discursos, mas a nova inscrição foi inaugurada.

E perdura, mesmo tendo sido vandalizada:
foto: Diana Tinoco | @visao.pt
“À memória dos judeus de Jedwabne e da área circundante, homens, mulheres e crianças, coabitantes desta terra, que foram assassinados e queimados vivos neste lugar em 10 de julho de 1941”, lê-se.

A referência aos nazis foi apagada. Já não existem alusões a perpetradores nem ao número de mortos, matérias inflamáveis. “Não acredito em mais de 300 mortos, como caberiam no celeiro?”, questiona Sebastian, enquanto olha as pedras e ramos de flores, cobertos de neve, junto ao monumento. “Dos irmãos judeus para os irmãos polacos”, lê-se, numa das faixas, com o vermelho e branco da bandeira da Polónia.

A exumação superficial levada a cabo em 2001 no âmbito da investigação do Instituto da Memória Nacional, suspensa por razões religiosas a pedido da comunidade judaica, revelou duas valas comuns com restos de 340 corpos. As autoridades retiraram-se, admitindo a impossibilidade de verificar a existência de outras sepulturas no cemitério judeu, o que impede conclusões sobre o número total de vítimas.

ESTATÍSTICAS ASSASSINAS
Um quarto dos 219 massacres de comunidades judaicas em cidades e pequenas localidades do leste da Polónia, após a invasão alemã no verão de 1941, terá sido cometido por cidadãos polacos, encorajados ou não pelos nazis a fazer o “trabalho sujo”. Estes dados, apurados pelos investigadores Jeffrey C. Kopstein (Universidade de Toronto) e Jason Wittenberg (Universidade da Califórnia), serão publicados com mais pormenor em junho quando for lançada a obra Intimate Violence: Anti-Jewish Pogroms on the Eve of the Holocaust
Encomendar o livro (publicação em 15 de junho de 2018)
Além de relógios, jóias, moedas, dentes de crianças, utensílios de sapateiros e alfaiates, encontrou-se um número inusitado de chaves e cadeados. Terão as vítimas acreditado num gesto de misericórdia? A descoberta de balas alemãs nas fundações do celeiro parecia ser a prova definitiva da culpa nazi, mas as munições eram da I Guerra Mundial ou posteriores a 1942.

“Há ainda muitos equívocos”, admite Sebastian Grabowski, conhecedor dos mitos e conspirações que rondam a terra. “Não consigo julgar estas pessoas”, admite o jovem, interrogando-se em voz alta: “Porque o fizeram? Tinham medo, odiavam judeus? Os judeus fizeram-lhes mal? A realidade nunca é a preto e branco. Não sabemos as razões, embora seja injustificável”, reconhece, pedindo respostas. “Os jovens têm outra educação, sabem mais sobre tudo. Não posso falar por todos, mas a minha geração é mais aberta à verdade, sobretudo à verdade histórica.”

QUEM PRECISA DE LIVROS?

Mas que espécie de verdade é aceitável para o povo de Jedwabne? Duas pedras são o que sobra da secular presença judaica: o memorial e o cemitério, onde as silvas e a terra revolvida dão uma imagem desoladora. Os locais não estão sinalizados, mas, a poucos metros, destacam-se o cemitério cristão, de campas majestosas, e o monumento que assinala a morte de 180 pessoas “e dois sacerdotes” pelos soviéticos e nazis. Na praça onde os judeus aguardaram o trágico destino, uma escultura presta tributo aos polacos deportados para a Sibéria e o Cazaquistão.

Num livro luxuoso sobre a região, o massacre ocupa cinco linhas na página de Jedwabne e é atribuído aos nazis. Na biblioteca não existem livros sobre o Holocausto, falha que um animador cultural quer colmatar. Kamil Mrozowicz, 31 anos, teve a ideia de criar uma pequena biblioteca de autores mundiais sobre o tema. Estamos em Kucze Wielkie, sua aldeia natal, ainda Jedwabne. O edifício tem um ar degradado, o telhado ameaça ruína e a sala de convívio reclama reforma, mas Kamil não precisa de luxos. Sonha levar conhecimento aos conterrâneos, promover debates com escritores e sobreviventes, falar sobre o massacre e preservar a memória dos judeus de Jedwabne, “nomes, profissões, ruas onde viveram, para que não fiquem anónimos”.

Reuniu uma volumosa e contrastada coleção e recebeu das mãos de João Pinto Coelho os seus romances, incluindo Perguntem a Sarah Gross. “Espero humildemente que um dia se torne uma grande biblioteca dedicada ao Holocausto”, assume Kamil. “Jedwabne iniciou uma discussão nacional e foi estigmatizada como a “cidade do mal”. Porque não falamos sobre isso então? Porque não enviamos uma mensagem positiva a partir daqui?”, desafia.

Acontece que a presença de câmaras tem, em Jedwabne, o efeito de um pano vermelho para o touro e há “razões para tal”, admite Kamil. Os residentes sempre souberam quem liderou ou colaborou no massacre e enriqueceu à custa dos judeus espoliados. Sentem-se interrogados em permanência. Toda a gente se conhece e a carga psicológica é demasiado pesada para a maioria da população (75 por cento) que chegou depois da guerra. Os preconceitos também medraram. Jedwabne foi ilustrada como lugar infeliz, atrasado, sem infra-estruturas, nem emprego, território do Homo Jedwabicus, caricatura da espécie nacional que enterra a cabeça na areia e tem um medo histérico de verdades desagradáveis.

“Vivemos tempos difíceis. É fácil perdermo-nos entre a verdade e a mentira, mas nenhum de nós é responsável pelo que aconteceu”, explica Kamil, que, entretanto, é surpreendido por três vizinhos mal-humorados: duas mulheres (a líder da aldeia e a responsável pela gestão do edifício) e um velho de cara redonda e aspeto rude.

Cai a tarde, estão oito graus negativos, mas a conversa aquece. Querem saber quem deu autorização para Kamil entrar com os seus “amigos”, qual o tema da conversa – “aqui não queremos nada sobre política” – e se o presidente da câmara está a par do que foi dito ou gravado. Kamil nasceu ali, mas é tratado como um mero domingueiro de visita. “Estou a falar sobre literatura do Holocausto e promovo o tema em várias cidades, incluindo as pequenas”, responde ele, apaziguador.

“E o que temos que ver com isso?!”, reage o homem, brusco. “Não falaste sobre os judeus que mandaram polacos para a Sibéria”, questiona. “Procuras amigos da Polónia lá fora? São apenas bandidos e ladrões.”

O aspeto frágil, o gorro com pompom vermelho e a barbicha loura acentuam o ar inofensivo de Kamil. “Quero mostrar que, mesmo em condições precárias, podemos educar as pessoas, que não somos atrasados.” “Eu sei mais do que tu!”, interrompe o homem, de novo. “Sabes alguma coisa sobre os judeus? Diz aos teus amigos que eles enviaram pessoas para a Sibéria. Podes falar com o meu irmão, ele conta-te.”
“Vivemos tempos difíceis. É fácil perdermo-nos entre a verdade e a mentira”, explica Kamil,
apostado em divulgar livros sobre o Holocausto foto: Diana Tinoco | @visao.pt
“Não sou historiador, sou um ativista que apenas quer que as pessoas tenham acesso a livros”, insiste Kamil. “Quem é que ainda lê livros hoje?!”, interroga, em tom de desprezo, uma das mulheres. Nos dias seguintes, tudo se complicaria. A aldeia assustou-se, a família de Kamil recebeu olhares censórios na rua e insultos pelo telefone. Ele foi informado de que teria de encontrar outro sítio para montar a pequena biblioteca. “Não desisto. Vou procurar um novo lugar para os livros. Talvez em Lomza”, a vinte quilómetros.

VERDADE, MODO DE USAR

A função do veterinário Michal Chajewski, 59 anos, é zelar pelo “bom nome da cidade”. Isso significa não embarcar em “propaganda” e destacar “os numerosos exemplos de heroísmo” da terra durante a II Guerra Mundial, sobretudo contra o opressor soviético.

Rosto fechado, o presidente da comuna de Jedwabne, eleito pelo partido do governo, recebe os jornalistas e o escritor João Pinto Coelho num gabinete sem luxos, no qual se destacam alguns troféus, o crucifixo na parede e a fotografia com um dos gémeos Kaczynski, que governaram o país. O autarca já passou pelo cargo em 2001, depois de o antecessor, Krzystof Godlewski, ter sido forçado a resignar por organizar a cerimónia sobre o massacre de judeus. “As pessoas recompensaram-me”, disse então Chajewski, originário do Sul. “Sou firme e expressivo, não estou sujeito à propaganda judaica, não me ajoelho, nem abuso da palavra ‘desculpe’”, garantiu, prometendo nunca pôr os pés no memorial, o que, de resto, cumpriu.

A região onde se inclui Jedwabne é, desde tempos longínquos, uma fortaleza da ultra-direita. O autarca sempre namorou setores mais radicais da sociedade polaca, entre os quais figura Leszek Bubel, político marginal da extrema-direita nacionalista e um dos líderes do Comité para a Defesa do Bom Nome de Jedwabne, criado em 2001, “a versão polaca do Ku Klux Klan”, segundo o dramaturgo Tadeusz Slobodzianek. O tal Bubel é autor de brochuras anti-semitas distribuídas, em tempos, na região. Para o homem que manda em Jedwabne, a cidade é apenas “um dos muitos sítios onde houve massacres de judeus pelos nazis”. A atual inscrição no memorial é, por isso, “um ato de propaganda contra os polacos” e, como tal, nada se comemora no local.

“É preciso iluminar a verdade”, pede Chajewski. Isso implica retomar a exumação dos corpos em Jedwabne. “É uma acusação injusta dizer que os polacos estiveram envolvidos no assassínio sistemático de uma nação, judaica ou qualquer outra. Uma afirmação dessas deve ser tratada por aquilo que é: um crime.”

Pode ser apenas um sintoma de que o país precisa deitar-se no divã e enfrentar, de vez, a sua alma negra, mas quando se visita o palpitante Museu da História dos Judeus Polacos, em Varsóvia, as palavras do presidente de Jedwabne e as referências do primeiro-ministro polaco ao “colaboracionismo judeu” no Holocausto soam algo esquizofrénicas.

“Aqui só nos interessa a verdade”, garante Marta Dziewulska, diretora de comunicação do labiríntico museu financiado pelo Estado polaco e capitais alemães, israelitas e britânicos, entre outros. Jedwabne tem direito a um canto especial no edifício visitado por mais de 2,5 milhões de pessoas desde 2013. Numa vitrina estão as chaves recuperadas nas imediações do celeiro e há fotos sépia de vítimas.

Os polacos desempenharam “um papel fundamental” no crime. Os alemães encorajaram e observaram, “mas não estiveram diretamente envolvidos”. Lê-se. O dia é de entrada livre, acotovelam-se excursionistas, mas não neste setor. Ainda a digerir a passagem pela “cidade dividida entre aqueles que lidam com o passado e aqueles que o negam”, João Pinto Coelho teme pelas vozes “que possam ser abafadas”, mas emociona-se com “o exemplo corajoso” de Kamil e do seu projeto de biblioteca.

“Este lugar contraria a história que querem impor-nos, por isso podemos ter esperança.” Ou estará a verdade, na Polónia, condenada a ser uma peça de museu? @visao.pt

1 comentário:

francisco júnior disse...

Junta religião mais a ignorância humana da nisso .