quarta-feira, junho 26, 2019

A tragédia de Chornobyl vista pela imprensa portuguesa

O desastre nuclear de 1986 chegou aos jornais portugueses com 3 dias de atraso. Ficou durante menos de um mês, em que Cavaco Silva admitiu uma central nuclear no país: o tema foi substituído pelo futebol.

por: Tânia Pereirinha, Observador.pt (versão curta)

O 4º reator da central nuclear de Chornobyl, no norte da Ucrânia, junto à fronteira com a Belarus e a cerca de 2 km da cidade de Pripyat, construída à medida como seu satélite na década de 1970 para albergar os trabalhadores e respetivas famílias, explodiu à 1h23 da madrugada de dia 26 de abril, um sábado. Mikhail Gorbachev, secretário-geral do Partido Comunista (PC) e presidente chefe do Estado da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), terá sido acordado poucas horas depois, com um telefonema por volta das 5 da manhã. Já as primeiras notícias demorariam um pouco mais: só surgiram nas primeiras páginas dos jornais de todo o mundo três dias depois, na terça-feira seguinte, dia 29. E apenas depois de o alerta ser dado por Suécia, Finlândia, Noruega e Dinamarca, que registaram “níveis de radiação anormais”, explicava o Diário de Notícias. “As primeiras indicações surgiram no domingo, quando peritos finlandeses detectaram níveis seis vezes superiores ao normal nas zonas de Tammarsfors, Karjana e Olkiluotot, e posteriormente registaram-se, também, valores invulgarmente altos na Dinamarca e em Oslo.”
As primeiras notícias sobre Chornobyl só aparecem na imprensa portuguesa
(tal como na internacional) a 29 de abril de 1986.
É o mesmo jornal (mas não só) quem o garantia: a assunção de responsabilidades por parte da URSS não foi imediata. Bem pelo contrário: “As autoridades soviéticas começaram por dizer que desconheciam qualquer acidente nuclear naquele país, ao surgirem as suspeitas de que a nuvem radioactiva provinha da URSS, mas, mais tarde, a agência TASS revelou que ocorrera um desastre na central de Chornobyl, a 130 quilómetros a norte de Kyiv, e que estava a ser prestada assistência às pessoas afectadas.”

A URSS reconheceu o acidente na noite de 28 de abril, quase 48 horas depois do desastre, em dois breves comunicados veiculados pela agência soviética de notícias TASS (e estranhamente replicados no dia seguinte por apenas um jornal soviético, o Izvestia, órgão oficial do regime).

Ao todo, contou na altura o The New York Times, foram impressas menos de 250 palavras para dar conta do sucedido — paradoxalmente, várias delas serviram para informar que já antes teriam sido registados “muitos acidentes nucleares, nos Estados Unidos e em outros países”.

Nas comunicações da TASS, sobre o caso concreto de Chornobyl, os jornalistas foram informados de que o acidente tinha provocado dois mortos e 197 feridos, 18 deles em estado grave, deixado um reator danificado e obrigado à evacuação de quatro “centros populacionais”. Nada mais.
A 30 de abril de 1986 a televisão soviética mostrou imagens de Chornobyl. A voz off
garantiu a inexistência de "destruição, fogos gigantescos ou milhares de vítimas" | GettyImages
Terá sido por isso que, nos jornais portugueses, as primeiras notícias sobre o acidente na União Soviética foram essencialmente compostas de informações sobre a nuvem radioativa que se deslocou de lá para a Escandinávia.

Ao contrário do que aconteceu na URSS onde, em vez de se mandar retirar as pessoas do local, a primeira medida tomada foi o corte das linhas telefónicas, para que a notícia não se espalhasse, na central nuclear de Forsmark, a norte de Estocolmo, assim que foi detetada uma “elevada concentração de radioactividade” nas roupas de um dos 600 funcionários, a fábrica foi imediatamente evacuada, relatou o Diário de Notícias.

No mesmo jornal, ainda na mesma notícia, a primeira publicada sobre o acidente, o facto de a URSS ter emitido um comunicado foi ainda assim saudado como um sinal da “abertura” de Moscovo: “Uma fonte diplomática ocidental, em Moscovo, considerou «um grande passo em frente» o facto de a União Soviética ter comunicado o acidente, indicando, inclusive, que pode querer dizer alguma coisa quanto ao grau de gravidade do mesmo. Outra fonte sugeriu que a notícia da TASS, dando conta do desastre, se insere aparentemente na linha da política de «maior abertura», defendida por Mikhail Gorbachev”. Alguns dias depois, a 4 de maio, também no DN, o “balanço oficial provisório do desastre” seria considerado “plausível” por especialistas do Comissariado Francês da Energia Atómica: “Numa conferência de imprensa em Paris, os especialistas disseram que os dois mortos foram certamente vitimados pelos efeitos mecânicos e térmicos do acidente, ou seja, projecção de peças metálicas ou jactos de vapor a alta temperatura. «No próprio momento, não pode haver morte por radiação», disse um especialista”.

Quando a notícia começou a correr mundo, a população de Pripyat já tinha sido retirada para longe da zona de risco das radiações. Mesmo assim, a ordem de evacuação foi dada demasiado tarde e só às 14h de domingo, dia 27 de abril, numa altura em que as radiações já tinham atingido máximos nunca antes vistos, é que os 49 mil habitantes começaram a deixar a cidade, em colunas de autocarros. Isto depois de serem avisadas, via rádio, com menos de uma hora de antecedência e sem que lhes tivesse sido comunicada qualquer informação sobre o risco que corriam.

A edição de dia 30 de abril de 1986 de A Capital dá conta de “evacuações em massa” de “mais de 25 mil pessoas” e do “incêndio incontrolável” ainda ativo na central nuclear ucraniana e questiona, em manchete, o número de vítimas reportado por Moscovo: “Quantos Mortos em Chernobyl? Dois ou dois mil”. “«Oitenta pessoas morreram imediatamente e cerca de duas mil a caminho dos hospitais», disse uma [cidadã] soviética, que [a agência americana United Press International] UPI afirma ter contactos com os serviços hospitalares e de socorro, em conversa telefónica a partir de Moscovo”, citava o artigo, imediatamente antes de referir a “breve nota oficial”, segundo a qual “o acidente causou dois mortos e os níveis de radiação na área estabilizaram”.
A URSS demorou a informar a comunidade internacional sobre Chornobyl.
Quando o fez, foi criticada por dar tão poucas informações.
No Diário de Notícias, seis dias mais tarde, já o assunto não tinha honras de primeira página — a zona estava isolada num raio de 30 quilómetros e o partido comunista até já tinha admitido que o acidente “fora causado por uma falha humana” mas o incêndio continuava por controlar –, a notícia era a de que “Boris Yeltsin, do PC de Moscovo” tinha garantido que “desde que as informações sobre a catástrofe foram reunidas, os países ocidentais foram imediatamente avisados”. Pelo caminho, contava também o DN, o comunista tinha ainda tinha feito questão de dar uma alfinetada aos meios de comunicação dos países não alinhados com Moscovo.

“Troçou da Imprensa ocidental, pelos seus «exageros», afirmando que os refugiados de Chornobyl «consomem leite e legumes, não se passeiam com guarda-chuvas e se lavam todos os dias os seus filhos é porque já o faziam antes». O Pravda, aliás, acusou a imprensa norte-americana de «fomentar o medo» e salienta que nenhuma das 151 avarias ocorridas de 1971 a 1984 em centrais de 14 países provocou semelhante reacção em Washington”, podia ler-se na edição de 6 de maio de 1986 do DN.

Hoje, 33 anos depois, sabe-se que apesar de a explosão do reator 4 de Chornobyl ter provocado apenas dois mortos, de forma direta, foram pelo menos 29 as pessoas que morreram nos três meses seguintes com síndrome de radiação aguda. O resto é difícil de contabilizar: de acordo com as várias agências das Nações Unidas, poderão ser atribuídas 4 mil mortes ao desastre, outras fontes, como a Greenpeace, dizem que terão sido 90 mil as vítimas de Chornobyl (ler mais sobre o custo real do Chornobyl).
As vítimas de Chornobyl foram transferidas para o Hospital número 6 do Ministério da Saúde,
em Moscovo | GettyImages
Factos incontornáveis: na Ucrânia, nos primeiros cinco anos após o acidente, os casos de cancros infantis aumentaram 90%; nas duas décadas seguintes, na Rússia, na Ucrânia e na Belarus, foram registados 5 mil casos de cancros de tiróide em pacientes que na altura da explosão tinham menos de 18 anos; 485 aldeias foram abandonadas por causa dos perigos da contaminação radioativa, sendo que ainda hoje, apesar de ter havido um grande trabalho de descontaminação e de até já lá existir algum turismo, a zona de Chornobyl ainda é radioativa.

Greves, canções e futebol

Quando o desastre de Chornobyl aconteceu, ainda faltavam [...] cinco para a queda do Muro de Berlim e sete para a dissolução da URSS. [...] No dia exato em que a explosão de Chornobyl fez um mês, a notícia principal em Portugal era a de que os “Infantes” [seleção masculina portuguesa de futebol sénior] tinham entrado em greve.

A partir de então, são cada vez mais raras as informações sobre o acidente. Para trás ficaram, além de inúmeras notícias sobre Chornobyl e suas vítimas, várias reportagens sobre o “caso português”.

No dia 9 de maio [de 1986], A Capital informava que a radioatividade tinha chegado ao território nacional: “Rastos de iodo na relva e de césio no leite foram detectados em Portugal, na sequência do acidente na central soviética de Chornobyl — disse ontem uma fonte do Ministério da Indústria. O mesmo informador referiu que os níveis daquelas substâncias, detectadas em vários pontos do País, eram muito baixos, sem significado, e acrescentou que não constituem qualquer ameaça para a saúde”. E um dia antes, o Diário de Notícias tinha noticiado que vários passageiros da Aeroflot — companhia aérea russa soviética com quatro ligações semanais entre Moscovo e Lisboa que 15 dias depois do acidente começou a anunciar regularmente na primeira página do jornal — “emanavam radioactividade” à chegada a Lisboa, na segunda-feira anterior.
Cavaco Silva chocou o País ao admitir, dias após o desastre de Chornobyl, construir uma central nuclear em Portugal
[...] Foi neste contexto que, de visita a Inglaterra, juntamente com Mário Soares, para celebrar o aniversário do Tratado de Windsor, o então primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva chocou o país ao admitir em entrevista à BBC estar a estudar a possibilidade de instalar uma central nuclear em Portugal. “Nuclear português para inglês ouvir”, foi a manchete do Diário de Lisboa no dia 12 de maio de 1986. No programa “It’s your world”, Cavaco Silva respondeu a perguntas de 13 ouvintes a partir de 8 países: “Ainda a propósito da central nuclear, Cavaco justificou a possibilidade de lhe ceder pelo facto de importarmos 80 por cento da nossa energia, particularmente sob a forma de petróleo”, explicou o Diário de Lisboa.

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