A
história do programa português
“Verão Azul” de apoio às
crianças mais desfavorecidas da zona de Chornobyl — iniciativa 100% privada de
responsabilidade social da seguradora Liberty Seguros, com apoio dos particulares,
praticamente desconhecida pela sociedade.
por: Tânia Pereirinha,
Observador.pt (versão curta)
Vivem a 50 km da antiga central
nuclear e têm problemas de saúde por causa disso. Durante 5 semanas por ano, no
verão, fogem da radioatividade e mudam-se para as casas dos “pais” portugueses.
Há 33 anos, quando o maior
acidente nuclear alguma vez registado aconteceu, Tanya tinha 8 anos e Vasyl, o irmão mais velho, 10. Como todas as outras crianças
de Musiiky, uma pequena aldeia junto a Ivankiv, hoje a cidade
habitada mais próxima de Chornobyl, foram enfiados à pressa e sem grandes explicações
num autocarro com destino ao Mar Negro. Era normal, todos os anos iam para o
acampamento; em vez de ser no final das aulas, em 1986 ia ser antes, logo nos
últimos dias de abril.
Como de costume, os pais
ficaram para trás, a trabalhar, e as crianças seguiram viagem rumo a Odessa, na
Crimeia. Ficaram por lá durante três meses, à guarda de monitores, sem dramas e
com mergulhos, mais ou menos alheios à existência do reator destruído a apenas
50 quilómetros de casa e ao próprio estatuto de refugiados nucleares.
Quando regressaram, a cidade de
Pripyat já era fantasma mas em Musiiky a vida continuava, como de costume.
Ainda assim, nunca mais seria a mesma, conta agora ao Observador Anya Kot, 20
anos, a mais velha das duas filhas de Tanya [Tetiana] — hoje, aos 41, professora de Geografia, ainda a morar em Musiiky.
Anya Kot tinha 9 anos quando passou férias em Portugal pela primeira vez. Ganhou uma nova família em Peniche | Observador.pt |
Para escapar à radiação
libertada pela explosão de um dos quatro reatores nucleares de Chornobyl, Tanya foi enviada para a Crimeia. Em 2008, 22
anos depois do desastre e um após enviuvar (o pai de Anya morreu num acidente
de viação, tinha ela 8 anos e a irmã, Anastasiya, apenas 1), também ela meteu a
filha, então com 9 anos, num autocarro pelo mesmo motivo — a radioatividade da
central desativada desde dezembro de 2000 continua (e continuará) a contar
vítimas durante pelo menos mais algumas décadas.
O destino é que foi diferente:
primeiro aeroporto de Kyiv, depois Lisboa, a seguir Peniche, para a casa de Maria e Hernâni Leitão,
a família de acolhimento que a recebeu.
Hoje, onze anos e outras tantas
viagens para Portugal depois, Anya ostenta com orgulho a cidade piscatória da
zona Oeste no perfil de Facebook: é natural de Peniche e vive em Peniche. Ou
então não, mas está a trabalhar para isso: “Na Ucrânia é outra vida, há
problemas de guerra, problemas de política, problemas de radiação. Aqui uma
pessoa com 70 anos já viveu mais do que é normal. Estou a estudar Turismo, mas
não há turismo na Ucrânia. Trabalho num banco e vejo que há pessoas que ganham
100 euros por mês e nem o gás conseguem pagar. Não quero ficar aqui e viver
menos, quero juntar dinheiro para ir para Portugal. Vou ter uma vida mais
feliz, com certeza”.
É num português quase
irrepreensível que Anya Kot fala com o Observador, via Messenger, a partir da
casa onde vive com o namorado em Brovary, nos subúrbios de Kyiv. Durante um ano, chegou a ter aulas uma vez por
semana, com uma amiga de família, mas de resto tudo o que sabe aprendeu em
Portugal, a um ritmo de cinco semanas de férias por ano, entre os 9 e os 16
anos, a idade limite para integrar o programa Verão Azul da Liberty Seguros.
De pioneira do programa de
apoio às crianças mais desfavorecidas da zona de Chornobyl — fez parte do primeiro grupo de nove a viajar
para o País — passou a monitora. “Este ano só vou uma semana por causa do
trabalho. Chego no dia 14 de julho, volto a 21”.
De Ivankiv para Portugal
Terá sido em 2006 ou 2007,
depois de um almoço com amigos espanhóis no entretanto falido Gemelli, que o
CEO da Liberty resolveu seguir-lhes o exemplo e fazer alguma coisa pelas
crianças vítimas da radioatividade na Ucrânia. “Não consegui dormir nessa
noite, a minha cabeça tinha-se transformado num verdadeiro turbilhão de
sentimentos desencontrados e conflituantes com o que me tinha sido contado ao
almoço. Acordei rebentado e com umas olheiras gigantes de choro e falta de
sono, mas com uma firme e inabalável decisão”, recordou José António Sousa em 2017
num livro sobre o programa de intervenção social da seguradora.
“A conversa com os meus amigos
espanhóis foi a pedra basilar para a Liberty Seguros começar a contribuir para
trazer a Portugal, no verão de cada ano, um grupo de crianças de uma cidade chamada
Ivankiv, próxima de Chornobyl, permitindo-lhes assim passar um verão saudável, alimentando-se
apropriadamente, vivendo no seio de famílias portuguesas [...]”, continuou a explicar o gestor, no mesmo
texto.
O programa Verão Azul admite crianças entre os 6 e os 16 anos | Observador.pt |
No início, as famílias de
acolhimento eram apenas as dos funcionários da empresa; com o passar dos anos e
a divulgação do projeto, qualquer residente em solo nacional passou a poder
candidatar-se para receber uma (ou mais) crianças de Chernobyl em casa.
- 1000 euros por criança é o valor médio gasto pela Liberty Seguros em
viagens e seguros
- Em 2019 serão 29 as crianças a viajar para Portugal
- Os gastos com a estadia, alimentação e atividades de cada uma das
crianças ficam a cargo das respetivas famílias de acolhimento
- 36 foi o número máximo de crianças trazidas para Portugal num só ano
- Podem candidatar-se crianças entre os 6 e os 16 anos. “Mas em Portugal
não é habitual quererem receber crianças com menos de 8 ou 9 anos”, diz
Paulo Guerra Pires
Como Anya foi das primeiras
crianças a viajar de Ivankiv para Portugal, Paulo Guerra Pires foi também dos
primeiros mas a fazer o percurso inverso. Gestor de sinistros da Liberty, faz
parte do grupo restrito de funcionários encarregues de eleger, com a ajuda do
Centro Social e Psicológico Doviria, criado na cidade menos de 10 anos depois
do desastre, as crianças que seguem para as cinco semanas de férias em
Portugal. “Todos podem candidatar-se, quando lá vou visito todas as casas,
conheço os pais, e falo com os miúdos, para ver se têm o mínimo interesse em
vir. Queremos que não venham apenas para comer e melhorar a saúde, mas também
para aproveitarem qualquer coisa.”
[...]
Depois [...] só o advento das novas tecnologias e da
internet veio, nos últimos anos, dar alguma contemporaneidade: “Eu e a minha
família recebemos a Alina, durante seis anos, e a Karolina, por outros três. A
Karolina, por exemplo, tem 10 irmãos e irmãs, que foi ela que ajudou a criar. É
das mais velhas, tem 19 anos, e a mais nova tem uns 3 ou 4. A casa é pequena,
têm um quarto para os pais, outro para os meninos e outro para as meninas, e
cada um tem tarefas definidas: um trata dos coelhos, outro dos porcos, outro
vai buscar água… São uma família pobre mas estruturada, têm eletricidade, um
poço, o pai tem um empregozeco, salgam carne para o inverno, fazem compotas
para aproveitar a fruta… A vida gira muito à volta disto, não há cinemas, uma
vez por outra fazem um teatro, mas de resto não se passa nada. A grande
revolução para estas pessoas foi a internet. Agora têm noção do que se passa no
exterior mas há 11 anos, quando lá fui pela primeira vez, nem isso, só havia
televisão”.
Das primeiras vezes que viajou
para a zona de Ivankiv, conta o gestor de seguros, ainda teve medo das
radiações e por várias vezes perguntou às pessoas por que motivo não tinham
fugido dali depois do acidente nuclear. “Respondiam-me sempre a mesma coisa:
«Tenho aqui a minha casa, que eu próprio construí, tenho amigos e família, o
que vou fazer para outro lado qualquer da Ucrânia?!». Com a passagem do tempo,
o perigo deixou de ser tão direto, pelo menos para quem, como eu, vai lá
durante dois ou três dias e depois se vem embora. Agora, quando há um surto de
gripe, as escolas fecham, porque as crianças não têm defesas e ficam todas
doentes. Também há muitas alergias e a incidência de cancro da tiróide é muito
alta. [...]”
Os pais das crianças no momento da despedida, em Ivankiv, a 50 quilómetros de Chornobyl | Observador.pt |
Anya Kot recorda-se bem de,
pelo menos nos primeiros anos em que viajou para Portugal, passar o início das
férias de médico em médico, a fazer check-ups gerais. “Tinha alguns problemas
de coração e de nariz — adenóides acho que se diz assim –, custava-me a
respirar. Como não comia bem, tinha muitas dores de barriga. E também tinha
problemas com os olhos, compraram-me uns óculos. É muito triste, muitas das
pessoas que ficaram nesta terra morreram por causa da radiação, outras têm
cancro e problemas de pele. O ar é tapado, faz muito mal. Comemos comida que
está na terra com radiação, bebemos água com radiação, tomamos banho com
radiação. Lembro-me, quando era pequena, de que quando chovia o chão ficava com
umas coisinhas amarelas…”
A irmã de Anya, Nastya (Anastasiya), costuma ficar com uma família de Vila do Conde. Há uns anos, visitaram o Buçaco juntas | Observador.pt |
Um dos objetivos do programa
Verão Azul é esse mesmo: interromper, através do ar, do sol, do mar e da
alimentação, o ciclo de radioatividade a que estas crianças, filhas dos filhos
de Chornobyl, estão sujeitas. Apesar de ser apenas durante algumas semanas,
garante Paulo Guerra Pires, faz toda a diferença: “Os estudos dizem que o sol e
a praia são bastante benéficos para eles. Um mês em Portugal permite-lhes
baixar muito os níveis de radiação e recuperar um pouco. Ao mesmo tempo,
aproveitam para comer melhor, viver melhor e ver um pouco o mundo, queremos
abrir perspetivas de vida também. A maior parte destas crianças vive a 90
quilómetros de Kyiv e nunca lá foi”.
O regresso a Chornobyl
Os casos de Alina, que hoje tem
22 anos e está a fazer um mestrado em Kiev, na área do Direito Internacional;
de Anya, de 20, que trabalha e estuda com o objetivo de se mudar para Portugal;
e de Karolina, de 19, que está a tirar enfermagem, estão bem longe de ser a
regra na zona de Ivankiv. Mas é exatamente por isso que têm meios e capacidade
para conversar com o Observador sobre como é nascer e viver num dos sítios mais
tétricos do mundo.
Via sms, com a ajuda de um
tradutor online, Karolina Vasyanovytch explica que também os pais, ele condutor
de tratores, ela doméstica, foram levados para a Crimeia três dias depois do
acidente nuclear de 26 de abril de 1986. Uma vez regressados a Musiiky, não
voltaram a sair.
A roda-gigante é o símbolo mais reconhecível da cidade-fantasma de Prypiat GettyImages | Observador.pt |
Nos últimos 23 anos, tiveram
onze filhos: Petró,
de 23, Maksym,
de 22, Karolina, de 19, Yuri, de 18, Cristina, de 17, Veronica, de 16, Darya,
de 14, Roman, de 13, Nastya, de 11, Sofia, de 10, e Mariana, de 4. Só Sofia já
não vive na aldeia: “As pessoas já estão habituadas a isto e já não têm medo,
mas há muitos problemas de saúde, doenças cardíacas, cancros de tiróide… A
minha irmã Sofia teve problemas nas pernas, tinha muitas dores, fomos ao
hospital e os médicos disseram-nos que não percebiam o que se passava, que
estava tudo bem. Por causa disso, passou a morar em Espanha. Está lá já há um
ano”, conta Karolina, que entre os 12 e os 17 anos passou os verões em
Portugal, primeiro com Luís e Margarida Leite, em Espinho, mais tarde com Paulo
Guerra Pires e Paula Mourão, em Paço de Arcos. “Passaram a ser da minha família
e sinto muito a falta deles. Gosto muito de Portugal, das pessoas, da
arquitetura, da comida e das estradas — são muito mais bonitas e largas do que
na Ucrânia”, diz, num português traduzido automaticamente e nem sempre muito
percetível.
Ao telefone, via Messenger,
Anya Kot é mais eloquente. Recorda a birra que fez da primeira vez que a “mãe
Maria” lhe pôs um prato de polvo cozido à frente — “Chorei tanto, tanto quando
vi aquilo na mesa, não queria comer, nunca tinha visto polvo antes. Não gostei
nada, queria vomitar! Agora adoro polvo, é tão bom!” –, e garante que a
alimentação portuguesa não só sabe bem como faz bem à saúde — “Nos primeiros
anos em que vim para Portugal e comi peixe de mar, batatas e outras
frutas fiquei melhor”.
Apesar de não ter visto ainda a
série da HBO que voltou a colocar Chornobyl na ordem do dia, a estudante de Turismo não é
alheia à moda mais ou menos recente que incluiu a cidade abandonada de Pripyat
e a velha central nuclear nos roteiros turísticos e até já obrigou o
argumentista da série a pedir contenção nas selfies e afins. “Agora em Pripyat
há um hotel e há sempre muita gente a chegar em autocarros. Para mim não é
normal, isto não é uma zona para fazer excursões e passeios.”
Apesar disso, ela própria já
visitou Chornobyl. [...] Já lá fui umas três
vezes, a primeira vez quando tinha 12 anos, com a minha mãe, o meu padrasto e a
minha mana, Nastya. Lembro-me de que havia muita polícia, abriram as portas do
nosso carro, saímos e fomos revistados. Depois deram-nos um papel que tínhamos
de devolver à saída.”
Nessa visita, recorda Anya, a
primeira coisa que fizeram foi procurar a casa de uma tia, que em abril de 1986
deixou Pripyat apenas com a roupa que tinha vestida e os documentos de
identificação para nunca mais voltar — hoje vive com a família na zona de
Donetsk, a mais de 850 quilómetros de distância. “Havia muitas árvores, tudo
era verde. Entrámos na casa da minha tia e estava tudo igual: havia água na
garrafa, colheres em cima da mesa, a cama estava aberta e os jogos das crianças
espalhados pelo chão. Pripyat era uma grande cidade, tinha tudo — até coisas
que não existiam em Kyiv [Sic!]. Tinha hotéis [na verdade só 1], restaurantes [3], um grande rio, parques, escolas [5],
universidade. Se não tivesse acontecido o que aconteceu, se calhar hoje era a
capital da Ucrânia.”
Anya em Musiiky, com a mãe, Tanya, e a irmã, Anastasyia | Observador.pt |
Numa altura em que turistas
posam com máscaras de gás e compram canecas, ímanes e até preservativos que
brilham no escuro, acredita Anya Kot, é necessária uma chamada à realidade: ali
morreram pessoas. “Foi impressionante, os meus tios não trabalhavam em Chornobyl, mas todas as pessoas que trabalhavam e que
morreram na altura fizeram tudo por nós, para que pudéssemos agora viver nesta
zona. Todos os anos, no dia de Chornobyl, passam filmes e notícias na televisão. É um dia
muito difícil, é uma história muito triste e emocional.”
Paulo Guerra Pires, que desde o
divórcio deixou de acolher crianças mas continua empenhado no programa que
durante cinco semanas por ano resgata crianças à radioatividade de Chornobyl, bate na mesma tecla: “Com a passagem do tempo,
percebemos que alguns miúdos morreram. Lembro-me de perguntar à minha miúda e
de ela me dizer que um amigo nunca mais tinha aparecido, que nunca mais tinha
ido à escola. Nunca se sabe bem o que aconteceu, não fazem propaganda sobre o assunto,
é um pouco tabu, mas Chornobyl continua a provocar vítimas”.
Blogueiro: um texto bastante interessante, pois quase toda
a gente conhece o programa estatal cubano de recepção das crianças ucranianas e
quase ninguém conheçe o propgrama privado português. Um certo senão é a
personagem Anna Kot, que tem alguns problemas com a lógica e com a memória. A
estudante de Turismo ora diz que “não
há turismo na Ucrânia”,
para logo à seguir confirmar que “Agora
em Pripyat há um hotel e há sempre muita gente a chegar em autocarros”. Embora a frase mais risível é essa: “Pripyat era uma grande cidade, tinha tudo — até coisas que não existiam em Kyiv.
Tinha hotéis, restaurantes, um grande rio, parques, escolas, universidade.” Na realidade em 1986 em Pripyat existiam apenas 3
restaurantes e 1 hotel (para a população local de 47.500 pessoas), naturalmente
na cidade nunca existiu qualquer universidade (mas apenas 15 estabelecimentos pré-escolares
para 4.980 crianças, 5 escolas completas para 6.786 crianças e 1 escola
técnico-profissional para 600 alunos).
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