sexta-feira, junho 07, 2019

Realismo socialista: entre sobrevivência e oportunismo político

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A arte na URSS era censurada e servil. Para sobreviver, os artistas, precisavam desenvolver o sexto sentido muito aguçado, acompanhando, e muito rapidamente, as tendências ideológicas do partido, para se “inclinar”, mas apenas segundo a mais recente orientação partidária. A realidade quotidiana da ditadura comunista.

Ano 1885, na região de Moscovo decorreu a famosa “greve de Morozov”, na fábrica do industrial capitalista Morozov, na cidade de Orekhovo-Zuyevo. Na URSS, que se declarava como “estado de operários e camponeses”, este evento histórico foi fortemente promovido. Abaixo temos dois quadros, ambos da época estalinista, dedicados ao mesmo evento. Sintam a diferença!

Georgi Savitsky. “Reunião dos operários antes da greve de Morozov”.
Reunião muito normal. Garrafão de vodca, copos. O homem à mesa à direita (com o punho cerrado) é o líder, sugere um plano, todos o escutam. O camarada atrás dele (último à direita) toma a sua branquinha. O velhote à esquerda (de camisa vermelha) está sentado com a expressão facial: “Mas que grande cagada!”

O segundo quadro.

Ivan Vladimirov. “Os tecelões de Morozov discutem as exigências na véspera da greve (1885)”.
A composição, em geral, é a mesma – o líder com a lista, os operários. Mas na mesa aparece apenas o chá! A luta de classes é uma luta contra os capitalistas e não conta com a vodca.

Os quadros do Alexander Deineka, o clássico do realismo socialista.

Aleksendr Deineka. “A Ducha”, 1937.
A ideia era mostrar os desportistas soviéticos após a competição – um está sentado, outros à tomar banho. Depois, o próprio artista cortou o homem à direita e ao quadro que restou deu um outro nome.

Aleksendr Deineka. “Após a Batalha”, 1944.
Ou seja, já não são desportistas soviéticos, são militares, 1944. Tomam a ducha quentinha com todas as comodidades após um combate vitorioso contra os nazis. A vida na linha da frente era assim mesmo (podem crer, amiguinhos socialistas)!

Outros pintores dedicavam os seus olhares às mulheres soviéticas, como realista socialista de Leninegrado, Aleksandr Samohvalov.

Aleksandr Samohvalov. “Operária de construção do metro com a broca”, 1937.
O quadro mostra um martelo pneumático e não a broca, mas o realismo socialista não fica agarrado aos pormenores burgueses.

Aleksandr Samohvalov. “Operária de construção do metro à carregar os ferros de armação”, 1932.

Aleksandr Samohvalov. “Mulher (operária) com a lima”, 1929.
O mesmo autor pintou as mulheres com outras ferramentas indispensáveis na construção do socialismo real: pá, guincho, betoneira, toda a gama de igualdade de género na União Soviética.

Um elemento importante do realismo socialista são retratos dos queridos líderes. Coisa bem gratificante (para o artista), mas é necessário ter um faro político muito aguçado, principalmente durante a era estalinista.

Konstantin Iuon. “Primeiro aparecimento do V. I. Lenine na reunião do Soviete no [palácio de] Smolny em 25 de outubro de 1917", 1927.
É o momento chave do golpe bolchevique de 1917, Lenine proclama o poder soviético. Atrás do Lenine os seus camaradas de luta. Em cima (da direita para esquerda) – Antonov-Ovseenko; Kamenev (com pince-nez/pincenê); o 4º à direita é Estaline/Stalin, feliz – ele bate as palmas; ao seu lado está Trotsky, com a barbicha típica; mais à esquerda, Rykov, se dobra para melhor ver Lenine. Praticamente os principais inimigos do povo todos juntos. Kamenev é esquerdista (fuzilado juntamente com a esposa), Rykov é direitista (também fuzilado e também juntamente com a esposa), Antonov-Ovseenko é trotskista e espião (fuzilado, ele e a esposa), Trotsky – todos sabem, assassinado pelo agente do NKVD com a picareta na cabeça no México.

O público da primeira linha, à escutar Lenine:
Após acabar com os trotskistas e com o povo (parcialmente), o artista achou, que se calhar, é melhor mudar a disposição:

Konstantin Iuon. “Discurso do V. I. Lenine em Smolny”, 1935.
Em apenas 8 anos mudou tudo! Dos camaradas fundadores no panteão comunista sobreviveram apenas 4 pessoas (da direita à esquerda): Molotov, Uritsky, Dzerzhinsky e Estaline/Stalin. Povo também foi corrigido – ficaram faces absolutamente russas. Até Lenine mudou um pouco, testa ficou mais alta, o corpo mais forte, tinha ido ao ginásio? O artista ganhou o Prémio Estaline/Stalin da 1ª categoria de literatura e artes de 1947.

A década estalinista era marcada pela presença, omnipresente, dos espiões (que, nota-se, nunca eram alemães)!

S. Svetlov. “Os pioneiros capturaram um espião britânico”, 1939.
Ou então:

M. Antonov. “Desmascaramento do inimigo do povo na unidade fabril”, 1938.

Apreciem os pormenores das faces!

N. Chebatkov. “Pavlik Morozov”, 1959 (o jovem que denunciou o próprio pai, o enviando ao GULAG e que foi assassinado pelos seus familiares).

Mas algum tempo depois, o próprio partido, saneou o camarada Estaline/Stalin, o principal lutador contra os inimigos do povo. E os camaradas artistas arregaçaram as mangas.

Vyacheslav Mariupolskiy. “A Guia dos Pioneiros”, 1949.

Vyacheslav Mariupolskiy. “A Guia dos Pioneiros”, fim da década de 1950.
O querido líder mudou. Mesmo o olhar da moça se humanizou...

Sergey Grigoryev. “Adesão ao Komsomol”, 1949.

O pessoal da juventude comunista Komsomol recebe uma nova camarada nas suas fileiras. Fazem perguntas politicamente motivadas e esperam as respostas politicamente certas. Atrás está sentado o camarada comunista, vestido à militar. Atrás dele – o querido líder Estaline/Stalin, em forma de uma pedra monumental.

Sergey Grigoryev. “Adesão ao Komsomol”, 1958.
Tudo ficou igual, apenas o querido líder foi saneado.

O artista Geliy Korzhev, um dos proeminentes representantes do realismo socialista.

Geliy Korzhev. “Aquele que levanta a bandeira”, 1963.
A parte central do tríptico chamado “Comunistas”.

O artista morreu em 2012, viu a queda da URSS em 1991, quando a bandeira vermelha caiu e foi colocada no caixote de lixo da história.

Geliy Korzhev. “Lixeira”, 2007.

Os dois últimos quadros, dado que foram pintados pelo mesmo autor (mas com a diferença de 47 anos), vale à pena ver lado ao lado. Ano 1963 (à esquerda) e ano 2007 (à direita).


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