Um
dos maiores mitos soviéticos era o mito de que a URSS era o país com maiores
hábitos da leitura. Os fãs da URSS confundem as quantidades publicadas de livros
da propaganda soviética e realmente bons livros, que sempre eram um grande
défice, ao lado dos jeans, bananas ou papel higiénico.
No
país das editoras estatais
No
“capitalismo putrificado”, funciona o mercado, o autor lido e comprado, publica
muito e com boas tiragens, os autores que publicam salamaleques
desinteressantes – publicam pouco e as vezes até recorrem às “edições do autor”.
Bastante justo.
"As obras do V. I. Lenine" e outros autores comunistas |
Na
URSS todas as editoras eram estatais, e a publicação de um autor era
determinada não pelo seu valor literário, profundidade de pensamento ou
novidade intelectual – mas apenas por sua correspondência ao programa e
ideologia estatal. Com tiragens enormes, literalmente às toneladas (entre
100.000 aos 1-2 milhões de exemplares), eram publicadas as “obras” absolutamente
cinzentas do realismo socialista, que elogiavam a URSS, descrevendo diversas
máquinas, mecanismos e operários socialistas, que funcionam “em prol e benefício
do povo”. Na URSS também havia bons autores – mas na maioria das vezes eles não
passavam a censura ideológica e não eram publicados, às vezes eram perseguidos
e presos.
Livros
como elementos da mobília e do design
Nos
armários polidos nas casas dos fãs da URSS, até hoje você poderá encontrar os
livros que foram comprados nos tempos soviéticos e que são cuidadosamente
guardados. Veja os exemplares, muitas vezes estes livros nunca foram abertos, nem
lidos, comprados para fazer parte do design dos interiores. Um hábito bastante
soviético.
Eram
filas intermináveis de clássicos mortos da literatura russa em capas escuras
cinza-marrom-carmim. Com temas seguros, cujos autores amaldiçoam a vida durante
o “czarismo sangrento” e timidamente sugeriam que gostariam de viver em algo
como o comunismo. Ninguém os lia, com a exceção de dois ou três contos de
Pushkin ou Lermontov, como “A Filha do Capitão” ou “Herói do Nosso Tempo”, que eram
lidos pelos estudantes da escola secundária devido ao currículo escolar.
Literatura
dos escritores soviéticos profissionais, como Lev Kassil ou Arkady Gaidar, com
contos e histórias, mentindo e omitindo sobre a “guerra civil russa” e Segunda
Guerra Mundial, glorificando o poder comunista soviético, uma espécie de lixo militar-patriótico,
sem nenhum valor ou utilidade.
Literatura
estrangeira – principalmente os romances dos escritores marginais ocidentais de
esquerda, que descreviam a vida de todos os marginalizados, desabrigados e os
pobres urbanos do início do século XIX – as histórias eram apresentados aos
cidadãos soviéticos como o espelho real no “Ocidente decadente”. Nestes
romances as disputas familiares eram descritas como “opressão capitalista” e as
brigas entre alcoólicos e polícias como “a luta do povo por seus direitos”.
Mesmo
assim, alguns desses romances eram publicados na URSS na sua tradução, mas em forma
de “recontagem”. Por exemplo, a personagem do The True History
of a Little Ragamuffin (1866) do James Greenwood, acaba por viajar para Austrália
e constrói lá uma nova vida feliz, já na “recontagem” soviética ele vai
trabalhar numa fábrica. De facto, na URSS, os livros de autores estrangeiros eram
reescritos, encaixando-os em ideologia comunista e apresentando-os como se
fosse a “literatura estrangeira”.
A capa soviética do The True History of a Little Ragamuffin, na recontagem de T. Bogdanovich e K. Chukovsky, Editora de Krasnoyarsk, 1961 |
Ainda
eram produzidas as memórias de líderes e funcionários soviéticos, escritos
pelos “escravos literários” e publicados às tiragens milionárias. Eram
compilações dos mitos comunistas sobre a II G.M., o golpe comunista de outubro
de 1917, planos quinquenais e assim por diante. Obras que eram lidos ou por fãs
mais bestas do comunismo, ou pelos sovietologistas ocidentais.
Nas
prateleiras comuns ainda podiam ser encontrados os contos de fadas dos povos do
mundo – publicados na URSS com conotações políticas, para mostrar, por assim
dizer, a cultura dos povos oprimidos – por exemplo, contos de fadas curdos, escoceses,
africanos, e assim por diante. Sobrava ainda alguma literatura mais especial ou
científica, como “Diário de Observações do Crescimento de Angiospermas”, “Macromicetes
e sua distribuição fitocenótica na cidade de Surgut” ou “Guia prático do
motorista da terceira classe”.
E
mesmo estes livros desinteressantes, listados acima, eram comprados por
cidadãos soviéticos, na maioria das vezes, como móveis e itens de interiores,
simplesmente porque “deve haver livros numa casa educada e cultural”.
Praticamente
é tudo. Os cidadãos soviéticos eram completamente isolados da literatura mundial,
desconhecendo ou conhecendo pouco os autores como Camus e Sartre, Kafka e
Bertrand Russell, e os burocratas soviéticos chiavam habitualmente contra todos
os Prémios Nobel de literatura por estes não gostarem do comunismo.
O
que realmente as pessoas liam?
A capa da revista samizdat ucraniana Huchnomovets, dedicada à música rock, abril de 1988, Kyiv |
Como
vocês já entenderam, o mito da “nação com maiores hábitos da leitura” nasceu
por causa do cálculo trivial das quantidades e de toneladas de livros
publicados – eram os valores quantitativos, não qualitativos, que as
autoridades soviéticas ostentavam pelo mundo fora. Ao mesmo tempo, literatura verdadeiramente
de alta qualidade era publicada de forma muitíssimo limitada e compunha não
mais do que 1-2% de resíduos propagandistas.
Samizdat judaico |
Na
URSS, como em vários outros países socialistas, as pessoas pensantes com um pensamento
crítico liam a literatura chamada samizdat.
Eram obras clandestinamente impressas e secretamente partilhadas, livros
proibidas na União Soviética, que compunha os melhores escritores e pensadores
do século XX. Não se sabe a percentagem real dos leitores da samizdat na URSS – talvez 1-2%. Na
verdade, este era um indicador real dos hábitos da leitura – que eram bastante baixos,
comparando com as nações ocidentais desenvolvidas, simplesmente devido ao fato
de que este tipo de literatura era muito difícil de obter e perigosa de manter.
As toneladas de papel publicado não significavam nada.
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