sábado, dezembro 15, 2018

O mito soviético da URSS como país dos maiores hábitos da leitura

Um dos maiores mitos soviéticos era o mito de que a URSS era o país com maiores hábitos da leitura. Os fãs da URSS confundem as quantidades publicadas de livros da propaganda soviética e realmente bons livros, que sempre eram um grande défice, ao lado dos jeans, bananas ou papel higiénico.   

No país das editoras estatais

No “capitalismo putrificado”, funciona o mercado, o autor lido e comprado, publica muito e com boas tiragens, os autores que publicam salamaleques desinteressantes – publicam pouco e as vezes até recorrem às “edições do autor”. Bastante justo.
"As obras do V. I. Lenine" e outros autores comunistas
Na URSS todas as editoras eram estatais, e a publicação de um autor era determinada não pelo seu valor literário, profundidade de pensamento ou novidade intelectual – mas apenas por sua correspondência ao programa e ideologia estatal. Com tiragens enormes, literalmente às toneladas (entre 100.000 aos 1-2 milhões de exemplares), eram publicadas as “obras” absolutamente cinzentas do realismo socialista, que elogiavam a URSS, descrevendo diversas máquinas, mecanismos e operários socialistas, que funcionam “em prol e benefício do povo”. Na URSS também havia bons autores – mas na maioria das vezes eles não passavam a censura ideológica e não eram publicados, às vezes eram perseguidos e presos.

Livros como elementos da mobília e do design

Nos armários polidos nas casas dos fãs da URSS, até hoje você poderá encontrar os livros que foram comprados nos tempos soviéticos e que são cuidadosamente guardados. Veja os exemplares, muitas vezes estes livros nunca foram abertos, nem lidos, comprados para fazer parte do design dos interiores. Um hábito bastante soviético.
Eram filas intermináveis ​​de clássicos mortos da literatura russa em capas escuras cinza-marrom-carmim. Com temas seguros, cujos autores amaldiçoam a vida durante o “czarismo sangrento” e timidamente sugeriam que gostariam de viver em algo como o comunismo. Ninguém os lia, com a exceção de dois ou três contos de Pushkin ou Lermontov, como “A Filha do Capitão” ou “Herói do Nosso Tempo”, que eram lidos pelos estudantes da escola secundária devido ao currículo escolar.

Literatura dos escritores soviéticos profissionais, como Lev Kassil ou Arkady Gaidar, com contos e histórias, mentindo e omitindo sobre a “guerra civil russa” e Segunda Guerra Mundial, glorificando o poder comunista soviético, uma espécie de lixo militar-patriótico, sem nenhum valor ou utilidade.

Literatura estrangeira – principalmente os romances dos escritores marginais ocidentais de esquerda, que descreviam a vida de todos os marginalizados, desabrigados e os pobres urbanos do início do século XIX – as histórias eram apresentados aos cidadãos soviéticos como o espelho real no “Ocidente decadente”. Nestes romances as disputas familiares eram descritas como “opressão capitalista” e as brigas entre alcoólicos e polícias como “a luta do povo por seus direitos”.

Mesmo assim, alguns desses romances eram publicados na URSS na sua tradução, mas em forma de “recontagem”. Por exemplo, a personagem do The True History of a Little Ragamuffin (1866) do James Greenwood, acaba por viajar para Austrália e constrói lá uma nova vida feliz, já na “recontagem” soviética ele vai trabalhar numa fábrica. De facto, na URSS, os livros de autores estrangeiros eram reescritos, encaixando-os em ideologia comunista e apresentando-os como se fosse a “literatura estrangeira”.
A capa soviética do The True History of a Little Ragamuffin,
na recontagem de T. Bogdanovich e K. Chukovsky, Editora de Krasnoyarsk, 1961
Ainda eram produzidas as memórias de líderes e funcionários soviéticos, escritos pelos “escravos literários” e publicados às tiragens milionárias. Eram compilações dos mitos comunistas sobre a II G.M., o golpe comunista de outubro de 1917, planos quinquenais e assim por diante. Obras que eram lidos ou por fãs mais bestas do comunismo, ou pelos sovietologistas ocidentais.

Nas prateleiras comuns ainda podiam ser encontrados os contos de fadas dos povos do mundo – publicados na URSS com conotações políticas, para mostrar, por assim dizer, a cultura dos povos oprimidos – por exemplo, contos de fadas curdos, escoceses, africanos, e assim por diante. Sobrava ainda alguma literatura mais especial ou científica, como “Diário de Observações do Crescimento de Angiospermas”, “Macromicetes e sua distribuição fitocenótica na cidade de Surgut” ou “Guia prático do motorista da terceira classe”.
E mesmo estes livros desinteressantes, listados acima, eram comprados por cidadãos soviéticos, na maioria das vezes, como móveis e itens de interiores, simplesmente porque “deve haver livros numa casa educada e cultural”.

Praticamente é tudo. Os cidadãos soviéticos eram completamente isolados da literatura mundial, desconhecendo ou conhecendo pouco os autores como Camus e Sartre, Kafka e Bertrand Russell, e os burocratas soviéticos chiavam habitualmente contra todos os Prémios Nobel de literatura por estes não gostarem do comunismo.

O que realmente as pessoas liam?
A capa da revista samizdat ucraniana Huchnomovets,
dedicada à música rock, abril de 1988, Kyiv
Como vocês já entenderam, o mito da “nação com maiores hábitos da leitura” nasceu por causa do cálculo trivial das quantidades e de toneladas de livros publicados – eram os valores quantitativos, não qualitativos, que as autoridades soviéticas ostentavam pelo mundo fora. Ao mesmo tempo, literatura verdadeiramente de alta qualidade era publicada de forma muitíssimo limitada e compunha não mais do que 1-2% de resíduos propagandistas.
Samizdat judaico
Na URSS, como em vários outros países socialistas, as pessoas pensantes com um pensamento crítico liam a literatura chamada samizdat. Eram obras clandestinamente impressas e secretamente partilhadas, livros proibidas na União Soviética, que compunha os melhores escritores e pensadores do século XX. Não se sabe a percentagem real dos leitores da samizdat na URSS – talvez 1-2%. Na verdade, este era um indicador real dos hábitos da leitura – que eram bastante baixos, comparando com as nações ocidentais desenvolvidas, simplesmente devido ao fato de que este tipo de literatura era muito difícil de obter e perigosa de manter. As toneladas de papel publicado não significavam nada.

Fotos: arquivo | Texto: Maxim Mirovich

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