Diversas
distopias tenham sido escritas antes e depois de “1984” do George Orwell – mas foi a
sua obra que, de uma forma fundamental e com muita precisão registou os
horrores do totalitarismo de esquerda, apoiados pela propaganda estatal sem
limites.
A
luta contra totalitarismo
Em
dezembro de 1936, George Orwell chegou à Espanha – para participar na guerra
civil nas fileiras do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista), partido oposto
à influência de Estaline e em luta contra os nacionalistas. Na Espanha, Orwell
passou cerca de seis meses até ser ferido por um atirador alemão. O tiro
atingiu o pescoço do escritor e, de acordo com suas memórias, muitos disseram que,
após essa lesão, apenas os sortudos sobrevivem. Embora o próprio Orwell tivesse
uma opinião ligeiramente diferente, e acreditava que, se ele realmente fosse um
homem de sorte, simplesmente seria capaz de evitar o tal ferimento. Em julho de
1937, o escritor retornou à Grã-Bretanha e, após a recuperação no sanatório do
condado de Kent, começou a trabalhar na novela “Em memória da Catalunha”, na
qual ele descreveu sua experiência de luta armada contra o totalitarismo nazi.
Orwell na BBC |
Com
o início da Segunda Guerra Mundial, Orwell novamente tentou ir à frente, mas em
1938 ele foi diagnosticado com tuberculose – não conseguindo passar pela comissão
médica. No entanto, ele lutou contra os nazis na guerra de propaganda: durante dois
anos ele estava conduzindo o seu próprio programa na BBC.
O
romance “1984” nasceu de uma parábola sobre o golpe bolchevique russo de 1917
A capa da edição britânica da “A Revolução dos Bichos” | “A Quinta dos Animais” |
Em
1946 Orwell publicou um ensaio intitulado “Por que eu escrevo”, no qual ele disse
que quase todas as suas obras, ele direta ou indiretamente queria prejudicar o
totalitarismo. Uma das suas obras mais conhecidas é a sua distopia “A Revolução
dos Bichos” (no Brasil) ou “A Quinta dos Animais” (em Portugal): no exemplo de
uma farma/fazenda – onde os animais domésticos se revoltaram e expulsaram o seu
mestre – o autor descreveu a forma como as ideias de igualdade universal se
transformam numa ditadura brutal. Orwell trabalhou na obra entre novembro 1943
à dezembro de 1944 e não escondia o facto de que seu conto é uma sátira sobre
os acontecimentos da Rússia bolchevique de 1917.
"Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros" - uma das principais frases da obra |
A
tradução ucraniana da distopia “A Revolução dos Bichos” (sob o nome Kolkhoze
dos animais) foi a primeira tradução estrangeira da obra, publicada em 1947.
Ao pedido dos refugiados políticos ucranianos, George Orwell deu a sua
autorização para a tradução, prescindiu dos honorários e até suportou
financeiramente a edição ucraniana. O tradutor ucraniano, Ihor Shevchenko (mais
tarde se tornou o professor em Harvard), que na altura usava o pseudónimo Ivan
Chernyatynskiy, optou pela palavra kolkhoze,
para melhor situar os seus leitores contemporâneos.
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Quase
45 anos após a publicação original do livro, na URSS, foi publicada a sua
tradução russa, nas páginas da revista letã “Rodnik”, já após o início da
Perestroika, em 1988.
Absurdo
lendário “2 + 2 = 5” como tributo aos planos quinquenais soviéticos
“Assignment in Utopia” com autógrafo do Eugene Lyons |
No
romance há um interessante reflexo do personagem principal sobre o poder do
partido e do Big Brother, que não precisa muito para obrigar todos acreditarem
que dois mais dois são cinco. Este absurdo aritmético – simples e terrível –
foi visto pelo Orwell, de acordo como os estudiosos da sua obra no livro “Assignment
in Utopia” (1937), do jornalista norte-americano Eugene Lyons, que descreveu
a sua estadia na União Soviética (1928-1934). No livro essa equação foi
mencionada no capítulo dedicado aos planos quinquenais soviéticos, quando o
plano quinquenal alegadamente era cumprido em quatro anos.
"Aritmética do contra plano industrial financeiro, mais entusiasmo dos operários" Cartaz de 1931 da autoria de Yakov Guminer, que morreu de fome em Leninegrado em 1942. |
Orwell
usou esse absurdo aritmético no seu trabalho “Recordando a Guerra na Espanha”
(1943):
«A
teoria nazista simplesmente nega que existe a própria noção de “verdade”. Este
é o caminho direto para um mundo horrível, onde o líder ou o partido controla
não apenas o futuro, mas também o passado. Se o líder disser que algo nunca
aconteceu – então não aconteceu. Se o líder quiser que dois mais dois sejam
iguais a cinco – será igual ao cinco. E isso me assusta muito mais do que as bombas».
Romance poderia ter outro título
"Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força": três pilares do duplo pensamento |
No
processo da escrita o livro mudou seu nome por várias vezes. O primeiro título
de trabalho foi “O último homem na Europa”, que mais tarde mudou para “Os vivos
e os mortos”. Em algum momento, Orwell decide usar no título o ano em que se
desenvolve o trama do livro. Primeiro era 1980, que passou para 1982 e, no
final, ele escolheu 1984. A editora não ficou satisfeita com essa ideia e
insistia para que o autor escolhesse um título que desse aos leitores pelo
menos uma vaga ideia sobre o que era o livro. Mas Orwell foi inflexível e conseguiu
defender a sua posição.
A obra do artista francês Guillaume Morellec, 2016 |
Até
hoje não está muito claro por que o autor escolheu 1984 como o tempo da ação do
seu romance. A versão mais comum diz que “1984” é uma espécie de “data-espelhada”:
Orwell terminou o romance em 1948.
«1984»
é apenas um remake livre do livro "Nós" do Yevgeny Zamyatin
Capas de diversas edições do romance "Nós" |
Alguns
estudiosos da obra do Orwell sugerem que existe uma enorme influência sobre o “1984”
por parte da distopia Nós
do escritor russo Yevgeny
Zamyatin. Esta obra também é dedicada ao futuro do Estado totalitário e
contém muitos paralelos com a obra de George Orwell, por exemplo, Estado Único e
Benfeitor facilmente recordam Oceania e Big Brother. Orwell estava
familiarizado com a obra de Zamyatin, em 1946 ele se tornou o revisor da edição
britânica do romance “Nós”, assim como na sua correspondência Orwell expressou
grande interesse neste tipo de literatura.
Ilustração do romance de Zamyatin "Nós" |
Tal como “1984”, a distopia de
Zamiatin foi publicada pela primeira vez na URSS somente em 1988.
O
destino do romance confirmou suas teses amargas
Mapa político do mundo segundo o romance "1984" |
Descrevendo
a política externa da Oceânia, Orwell criou a fórmula da guerra sem fim: o Estado
está em constante confronto com o Ostásia, ou em seguida, com a Eurásia. As
vitórias sempre foram exageradas, as derrotas foram silenciadas ou
subestimadas; o conflito com uma das potências rivais foi sempre acompanhado
por um acaloramento das relações com a outra, com a subsequente mudança
obrigatória de papéis. No segundo capítulo do romance, esse estado de coisas
foi descrito da seguinte maneira: “A Oceânia está em guerra com Ostásia /
Eurásia. A Oceânia sempre lutou contra a Ostásia / Eurásia”. Os funcionários do
Ministério da Verdade só precisam ajustar os documentos de arquivo,
alinhando-os com os interesses atuais do partido e do Big Brother.
A obra do artista A. Romanov |
Desde
a sua publicação, “1984” foi percebido na URSS como literatura subversiva,
destinado a enfraquecer a ordem comunista existente: a decisão foi tomada por
autoridades oficiais da censura soviética, o que tornou-se público após o
colapso da União Soviética e da abertura dos arquivos. Com início da Perestroika,
na URSS foi dada a nova ordem para neutralizando o efeito do conjunto de
artigos incriminatórios, publicados na imprensa soviética contra George Orwell na
década de 1950: “A URSS é amiga / inimiga do Orwell. A URSS SEMPRE era amiga / inimiga
do Orwell”.
O
romance “1984” teve duas sequelas literárias
O
romance sonante teve duas sequelas, escritas por dois autores diferentes e
independentes um do outro.
A edição brasileira (?) de "1985" do Anthony Burgess |
O
primeiro romance é da autoria do britânico Anthony Burgess, conhecido pelo seu
livro “Laranja Mecânica”: um romance de culto sobre a violência, imortalizado no
cinema pelo Stanley Kubrick. Burgess chamou a sua novela de “1985”, dividiu-a
em duas partes. Na primeira, o autor faz uma análise do trabalho de Orwell, e
na segunda ele conta sua própria versão da vida no país totalitário do futuro,
onde os bombeiros entram em greve durante um incêndio e as ruas são controlados
pelo crime. O livro foi
publicado em 1978.
A edição francesa do György Dalos |
O
segundo romance foi escrito pelo dissidente húngaro György Dalos e sua
versão, ao contrário de Burgess, tornou-se uma continuação direta do romance “1984”.
Os eventos de seu livro – também intitulado “1985” – começam com a morte do Big
Brother e subsequente amolecimento gradual do sistema estatal. Romance do Dalos
foi publicado em 1983.
Orwell
morreu, sem saber sobre o triunfo da sua obra
Desde
o final dos anos 1930 até o final dos anos 1940 – Orwell foi constantemente
criticado. Primeiro, ele foi severamente atacado por representantes de vários
movimentos comunistas e socialistas, que desfrutavam uma considerável
popularidade na Grã-Bretanha e abertamente simpatizavam com a União Soviética (Orwell,
ao contrário, era categoricamente contra a identificação do socialismo com a URSS).
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a URSS totalitária tornou-se uma
aliada na luta contra o 3º Reich e os Países do Eixo, e portanto as obras
críticas de Orwell foram simplesmente ignoradas. “1984” foi muito
desconfortável e visto como contrário da linha geral de amizade com Estaline e
com a URSS.
Orwell na capa da edição de novembro da revista Time, 1983 |
Terminado
o romance em 1948, Orwell, recebeu a recusa de vinte editoras e conseguiu a
primeira publicação apenas em meados de 1949 com a tiragem mínima de 1.000
exemplares. Seis meses depois Orwell morreu: a sua morte coincidiu com a
formação da NATO/OTAN e a declaração aberta da URSS como o inimigo geopolítico
do mundo livre. Em total concordância com o romance, a linha ideológica
britânica mudou 180 graus: a Guerra Fria começou e o romance de Orwell foi visto
como uma boa arma literária contra o comunismo. Os eventos foram uma confirmação
das teses do Orwell; teses, que não perdem sua relevância até os dias de hoje [fonte].
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