Pesquisa
inédita em arquivos da antiga Checoslováquia mostra atuação da secreta
checoslovaca StB no Brasil entre 1952 à 1971. StB montou no país uma rede de 30
agentes e cerca de 100 “figurantes” — potenciais agentes que colaboraram com o
serviço de inteligência sem o saber.
por:
R. B., El
Pais (Brasil)
Jânio
Quadros ainda não tinha sido eleito presidente do Brasil quando, em visita a
Moscovo, em 1959, fez uma promessa ao tradutor que o acompanhava na viagem pela
União Soviética: “Quando eu chegar ao poder, e chegarei com 100% de certeza,
você será o primeiro a receber o visto”. O presidente eleito no ano seguinte
nunca saberia, mas Alexander
Ivanovich Alexeyev (1913-2001), que atuava como seu tradutor, era um agente
da KGB, a agência de inteligência soviética. Parte dessa história, que
culminaria na retomada das relações do Brasil com a União Soviética em 1961, é
contada no livro “1964 – O elo perdido” (Vide Editorial, 2017), publicado no
início deste ano. A obra é fruto da primeira investigação brasileira nos
arquivos do serviço de inteligência da antiga Checoslováquia, o StB
(Státní bezpečnost em checo e Štátna bezpečnosť em eslovaco, a “Segurança
Estatal”), feita pelo paranaense Mauro Kraenski em parceria com o checo
Vladimír Petrilák. Submissa ao KGB, a StB atuou na América Latina durante a
Guerra Fria e seus arquivos servem como aperitivo das ações soviéticas no continente,
já que os documentos de Moscovo seguem restritos.
“Não
há praticamente nada de pesquisa sobre a União Soviética nesse período”,
comenta o professor Carlos Fico, do departamento de história da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ele diz que não há muito interesse sobre o
assunto, e cogita que seja por conta da pouca interferência soviética no país.
Kraenski chegou aos arquivos checos por acaso. Trabalhava como guia no Memorial
e Museu Auschwitz-Bikernau, o antigo campo de concentração nazi na Polônia, e
se interessou pela história do país. Ao topar com a circulação de informações
erradas sobre os soviéticos no contexto polaco/polonês, decidiu buscar
informações em relação ao Brasil. Procurou na Polónia, mas foi encontrar
material mesmo na República Checa.
Para
conseguir adequar o polonês que ele fala ao tcheco dos documentos, o
pesquisador se associou ao tradutor Vladimír Petrilák. Os dois montaram um site
para divulgar o resultado das pesquisas e receber contribuições, já que não
encontraram nenhuma instituição governamental ou acadêmica disposta a
patrocinar a investigação. E qual foi a grande descoberta dos arquivos pela
perspectiva dos pesquisadores? “Talvez seja o facto de saber pela primeira vez
sobre a atuação de espiões de serviços de inteligência do bloco soviético no
Brasil. Ou descobrir que houve brasileiros que, segundo os documentos,
colaboraram — de forma consciente ou não, depende do caso — com esse serviço de
espionagem estrangeiro”, responde Kraenski, que ressalva algumas vezes ao longo
do livro: todas as informações dos arquivos secretos devem ser consideradas com
cuidado. Muitas delas não têm fontes alternativas para confirmação, mas, mesmo
assim, ele argumenta, são fonte relevante sobre o período.
Serviço
de inteligência
A residentura da StB no Brasil da década de 1960 |
Os
autores do livro se concentraram na pesquisa dos documentos do 1º Departamento
da StB, responsável pelo serviço de inteligência no exterior, onde descobriram
que uma rede de 30 agentes e cerca de 100 “figurantes” — potenciais agentes que
colaboraram com o serviço de inteligência sem saber — atuou no Brasil de 1952 a
1971. “O serviço de inteligência checoslovaco determinava objetos ou alvos de
interesse, com o objetivo de entrar, infiltrar ou penetrar operacionalmente
através de sua rede de agentes para aquisição de informações ou materiais
relacionados com determinadas tarefas”, diz Kraenski. Entre os principais alvos
estavam o Itamaraty (Ministério de Negócios Estrangeiros / das Relações
Exteriores), o Governo federal e o parlamento, além de instituições como a
Petrobras, o Exército e o BNDES. Os soviéticos buscavam brasileiros de perfil
nacionalista e antiamericano, mas que não tivessem laços tão evidentes com o
Partido Comunista Brasileiro, e usavam desde o argumento ideológico e o
oferecimento de presentes até o pagamento de honorários e estratégias de
chantagem baseadas em informações constrangedoras.
Entre
as operações mais ousadas do serviço de inteligência checoslovaco, os autores
incluem a intermediação de armamentos para o Brasil, a falsificação de
documentos para implicar os Estados Unidos no golpe de 1964 e o financiamento
de ao menos um jornal, como parte de um projeto — maior e não finalizado — que
tinha como meta criar uma emissora de TV e uma rádio de alcance continental. O
envio de 20.000 sub-metralhadoras de produção checa para o Brasil acabaria
acontecendo sem a interferência direta da StB e chegou a virar assunto no
parlamento brasileiro à época. Os documentos também expõem como os checos,
sempre interessados em disputar com os Estados Unidos a influência na região,
atuaram no Brasil para melhorar a imagem do regime cubano pós-revolução e até
criaram uma operação para reagir, em 1961, a um possível golpe de Estado.
“O
camarada ministro confirmou a operação ativa I-V de criptônimo LUTA, cujo
objetivo é causar demonstrações e tumultos antiamericanos e — em caso de seus
surgimentos — causar uma guerra civil no Brasil. Um dos objetivos desta
operação ativa é fazer com que representantes nacionalistas tomem o poder no
Brasil”, diz documento de 23 de outubro de 1961 exposto no livro. A operação,
que envolveu contatos com o então governador do Rio Grande do Sul Leonel
Brizola e as Ligas Camponesas lideradas por Francisco Julião, durou apenas seis
meses, de novembro de 1961 à abril de 1962, e provavelmente foi encerrada
quando os responsáveis perceberam a dificuldade de executá-la.
O
golpe
Trecho do relatório do serviço de inteligência checoslovaco sobre o golpe de 1964. créditos: brasil.elpais.com |
A
pesquisa de Kraenski e Petrilák mostra ainda que os checoslovacos foram
surpreendidos quando os militares tomaram o poder na virada de março para abril
de 1964. A falha do serviço de inteligência em antecipar a derrubada do presidente
João Goulart foi atribuída posteriormente à falta de contatos entre a direita
brasileira. Nos relatórios internos, os agentes destacaram a “hesitação típica
de Goulart e a sua incapacidade de levar as coisas até o fim” como motivo de
uma queda sem reação. “Não se podia sequer falar em derrota, pois a derrota
pressupõe uma luta, e no Brasil houve somente uma tomada pacífica de poder pela
direita”, diz um trecho do mesmo documento, um relato sobre o golpe de Estado
destinado apenas à elite do partido comunista checoslovaco.
A
blogueira brasileira Tate Anna Sca conta um pouco da história real por trás do
chamado “golpe” militar, desvendada no
livro “1964 – O Elo Perdido”:
As
atividades soviéticas no Brasil sofreram um grande abalo após a tomada de poder
pelos militares. Os agentes checoslovacos, que contavam entre seus contatos com
jornalistas, funcionários públicos e até um deputado federal, tiveram de se
retrair. Vários de seus “figurantes” se refugiaram em embaixadas estrangeiras e
no exterior ou perderam os cargos que lhes garantiam relevância. O serviço
seguiu por pelo menos mais sete anos, contudo, e seus registros ajudam a
entender o clima de desconfiança e medo que levou o país a passar 20 anos sob o
jugo de um regime militar. E esse é apenas o início da história do lado
soviético. Kraenski diz que ainda há material para ser pesquisado no arquivos
e, assim como ocorre no Brasil, desconfia-se que os documentos que os checoslovacos
registram como destruídos possam estar guardados em algum lugar.
OS
BRASILEIROS “SÃO PESSOAS PREGUIÇOSAS E BEM LEVIANAS”
Os
arquivos checoslovacos se prestam também à crítica de costumes. Desde a chegada
ao Brasil, em 1952, os agentes registraram suas impressões em relatórios que
seriam repassados aos colegas que os substituiriam no futuro. Atuar no Brasil
não era exatamente uma prioridade, mas era considerado muito mais seguro do que
atuar nos Estados Unidos ou no Reino Unido. Em meio a reclamações sobre o calor
que fazia no Rio de Janeiro e a falta d'água por uma semana no apartamento de
Copacabana onde o primeiro chefe da residentura
(base do serviço de inteligência) checoslovaca no Brasil se instalou, encontram-se
análises sociológicas. “Todo o povo é educado em um espírito de desprezo para
com o trabalho, o que pode se observar, por exemplo, quando as empregadas de
limpeza/faxineiras se recusam a limpar janelas e assoalhos, o que obriga a
contratação de mais faxineiras especialmente para isso”, registra o agente Jiří
Kadlec (nascido em 1925, entrou na StB aos 27 anos; usava os nomes de código “Honza”
e depois “Treml”).
Segundo
o primeiro agente da StB no Brasil, “homens e mulheres têm unhas tratadas,
todos querem a qualquer preço causar a impressão de que não precisam trabalhar
fisicamente”. Em outro trecho, ele relata violência e assassinatos, um deles
cometido aos 20 passos da embaixada checoslovaca: “Em plena luz do dia, um
homem cortou a garganta da esposa porque a mesma não queria partir com ele para
outra região do país em busca de uma vida melhor”. Em outro relatório,
registra-se que “os brasileiros reconhecem como cozinha típica somente a
cozinha baiana” e que ela “pode levar à enfermidade”. A cervejas são boas,
independente das marcas, mas os cigarros são ruins.
Václav “Bakalár” Bubenícek (28.11.1926) |
O
trecho mais impiedoso sobre os brasileiros reproduzido pelos pesquisadores no
livro “1964 – O elo perdido” coube ao capitão Václav Bubenícek (nascido em 28.11.1926;
pertencente ao 1º Diretorado; o nome de código “Bakalár”, residente no Rio de
Janeiro entre 1965 e 1967): “Um brasileiro, ao contatar com um estrangeiro,
possui uma tendência em fazer uma grande quantidade de promessas, já supondo
que não cumprirá nenhuma delas”. Referindo-se à classe média urbana, ele diz
que “são pessoas preguiçosas e bem levianas, com as quais não se pode contar. [...]
Os brasileiros de classe média frequentemente surpreendem um europeu com uma
longa lista de faculdades e cursos que terminaram; mas, na verdade, o
conhecimento adquirido por eles é muito superficial, o que significa que no
Brasil, por regra, encontramos pessoas ignorantes, que, mesmo com numerosos
títulos científicos, não chegam aos pés da nossa gente com formação primária”,
finaliza.
Bónus:
A invasão soviética da Checoslováquia | Praga em agosto de 1968 |
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