terça-feira, junho 12, 2018

O mistério dos estrangeiros raptados pela Coreia do Norte

Regime comunista de Coreia do Norte terá raptado mais de 80 mil sul-coreanos durante a Guerra da Coreia, quase quatro mil sul-coreanos nos anos seguintes, cerca de 100 japoneses, 200 cidadãos chineses (a maioria de origem coreana) e pelo menos 25 pessoas de outras nacionalidades.

por: Cátia Bruno, Observador.pt (a versão curta)

A Comissão de Inquérito aos Direitos Humanos na Coreia do Norte, da ONU, estima que cerca de 200 mil pessoas terem sido raptadas pelo regime de Pyongyang desde o início da Guerra da Coreia até aos dias de hoje. As Nações Unidas concluíram, sem margem para dúvidas, que “a República Popular da Coreia do Norte, desde os anos 50 até ao presente, levou a cabo uma política sistemática de raptos, recusas de repatriamento e subsequentes desaparecimentos forçados de pessoas de outros países, a larga escala e como política oficial do Estado”. Os familiares dos desaparecidos continuam sem saber pormenores do que aconteceu aos seus pais, filhos, irmãos — e olham com esperança para a cimeira do dia 12, que pode ser uma oportunidade para obter mais respostas.

É uma página negra na longa história de violações de direitos humanos norte-coreana, mas é quase desconhecida no mundo ocidental, ao contrário do que acontece em países como o Japão. O alcance desta política de raptos, contudo, vai mais longe do que a Ásia: há provas de que terão sido levados cidadãos de países como o Líbano, a Roménia ou a França, e são vários os casos de coreanos e japoneses aliciados em países ocidentais como a Alemanha, a Noruega ou até Espanha. No relatório Taken! de 2011, feito a pedido da ONG Comité pelos Direitos Humanos na Coreia do Norte, o investigador Yoshi Yamamoto calcula que Pyongyang terá raptado mais de 80 mil sul-coreanos durante a Guerra, quase quatro mil sul-coreanos nos anos seguintes, cerca de 100 japoneses, 200 cidadãos chineses (a maioria de origem coreana) e pelo menos 25 pessoas de outras nacionalidades.
Junichiro Koizumi, antigo primeiro-ministro japonês, no encontro de 2002 com Kim Jong-il (AFP/GettyImages)
Em 2002, o antigo líder Kim Jong-il reconheceu esta prática num encontro com o homólogo japonês, Junichiro Koizumi. “As forças especiais deixaram-se levar numa busca imprudente pela glória. É lamentável e quero pedir as mais sinceras desculpas. Já tomei passos para garantir que isto não volta a acontecer”, declarou à altura Kim, decretando depois o regresso de oito dos japoneses raptados, argumentando que os restantes já teriam morrido. A realidade, no entanto, não parece ser assim tão simples. Milhares de pessoas como Hwang Won desapareceram sem deixar rasto e as suas famílias continuam sem saber do seu paradeiro — e do seu destino.

Da estratégia de guerra ao rapto de pescadores

Tudo começou durante a Guerra entre as duas Coreias, nos anos 1950. A comissão de inquérito das Nações Unidas concluiu que, entre 1950 e 1953, milhares de civis sul-coreanos foram raptados para ajudar no esforço de reconstrução do Estado norte-coreano. “Pensa-se que os objetivos destes raptos em tempo de guerra seriam o recrutamento de força de trabalho e de conhecimento, ao mesmo tempo que se esvaziavam as capacidades do Sul”, pode ler-se no relatório, que dá como exemplo o caso de Park Myung-ja, que regressou à Coreia do Sul e contou a sua experiência.
Ler o relatório em inglês
Park foi levada do Hospital da Universidade de Seul, onde estava a trabalhar durante a guerra, juntamente com os colegas: “Estávamos exaustos — médicos, enfermeiras e pessoal administrativo. As nossas pernas estavam cansadas e eles disseram que os que estavam exaustos deviam sair. Os que levantaram os braços e saíram primeiro foram mortos. Nós estávamos tão assustados que não tivemos escolha, saímos também.” Os sobreviventes acabariam por ser levados para montar um hospital em Hamhung — a mesma cidade para onde o voo da Korean Airlines onde Hwang Won seguia seria desviado, anos depois, em 1969.

A política de raptos poderia ter sido enterrada com a assinatura do armistício entre as duas Coreias, mas não foi o caso. “Logo a seguir à Guerra da Coreia, a Guerra Fria estava em pleno andamento. A Coreia do Norte decidiu então usar os raptos como um instrumento para deixar a Coreia do Sul à defesa.” A explicação é avançada ao Observador por Go Myong-hyun, especialista do Instituto Asan de Estudos Políticos e autor do estudo “O Rapto como forma de Política Externa: a História norte-coreana dos Raptos patrocinados pelo Estado”.

“Começaram então a raptar pescadores sul-coreanos no Mar Amarelo [que banha as duas Coreias e a China]. A marinha sul-coreana não tinha à altura equipamento suficiente para conseguir impedir isto. Mas muitos deles acabavam por ser devolvidos, porque o principal objetivo era colocar a marinha sul-coreana à defesa.”

Um desses pescadores foi Lee Jae-gun, cujo barco onde seguia com 27 colegas, o Bongsan, foi raptado em 1970. Os pescadores sul-coreanos estavam a lançar as redes, à noite, quando um barco colidiu com o seu. “Querem morrer? Saiam!”, gritaram-lhes homens armados, que saltaram entretanto para o convés. O Bongsan foi depois rebocado para águas do Norte. Lee contaria mais tarde ao jornalista norte-americano Robert Boynton, autor do livro “The Invitation-Only Zone” (sem edição em português), que foi recebido como um herói. “Ao desembarcar do navio, foi cumprimentado por seis mulheres que o encheram de flores. ‘Não regresses para o Sul! Fica a viver connosco no paraíso na terra que é o Norte’, imploraram-lhe. Muitos dos pescadores raptados eram devolvidos algumas semanas ou meses depois, na esperança de que contassem como tinham sido bem tratados”, pode ler-se no livro.

Outros, como Lee, eram escolhidos pelas suas capacidades e enviados para uma escola, a fim de serem treinados como espiões. Este pescador, contudo, sempre sentiu que não era tratado da mesma forma que os norte-coreanos — dando como exemplo o facto de o seu filho, nascido já no país, ser impedido de entrar no ensino superior. Depois de várias tentativas de fuga, Lee acabaria por regressar ao seu país 30 anos depois, graças aos esforços da Associação de Familiares de Raptados da Coreia do Sul. Mas muitos dos milhares de pescadores sul-coreanos raptados acabariam por passar o resto da sua vida na Coreia do Norte.

Os pescadores não foram, no entanto, os únicos sul-coreanos raptados por Pyongyang. A ONU estabeleceu que pelo menos outros 70 sul-coreanos foram raptados por agentes do Norte. Cinquenta deles, como Hwang Won, estavam no fatídico voo da Korean Airlines. Outros, como cinco adolescentes, foram raptados em praias. Foi o caso de Kim Young-nam, um jovem de 16 anos que, chateado com os amigos, se isolou na praia de Seonyu e acordou num barco em alto-mar, a caminho do porto de Nampo, na Coreia do Norte.
Kim Young-nam levanta o filho para este se despedir da avó, que acabou de conhecer. Kim e a mãe reuniram-se graças ao programa de reunificação familiar, em 2006 (Lee Hun-Koo/GettyImages)
À altura, as autoridades sul-coreanas concluíram que o jovem se teria afogado. A família de Young-nam só soube a verdade anos depois, contactada pelos serviços secretos sul-coreanos. “Estávamos assustados, não tínhamos pensado nem por um minuto na possibilidade de ele estar vivo na Coreia do Norte”, revelou a irmã. Em 2006, a mãe e a irmã tiveram possibilidade de se encontrar com ele do lado Norte da fronteira, através do programa de reunificação familiar das duas Coreias. Contudo, Kim Young-nam continua a viver na Coreia do Norte ainda hoje. Diz não ter sido raptado, mas sim salvo de afogamento.

Os casos emblemáticos: o casal de cineastas e a adolescente japonesa

“É preciso entender que a Coreia do Norte nunca foi uma nação rica, não apenas em recursos naturais mas também em recursos humanos. É por isso que os sul-coreanos começaram a ser raptados pelo Norte, para contribuírem para o avanço do conhecimento e da cultura.” Yoshi Yamamoto, autor do relatório “Taken!” começa por explicar assim ao Observador a razão pela qual Pyongyang decidiu enveredar por esta estratégia de raptar sul-coreanos. “Dito isto, a Coreia do Norte nunca conseguirá ter talento suficiente, já que determina que ninguém pode ser mais sábio do que a família Kim. Não há um sistema de educação montado nem a intenção de desenvolver o talento das pessoas.”

O rapto de sul-coreanos cumpria assim uma dupla função: se inicialmente servia para trazer os conhecimentos que faltavam aos locais, os raptados acabavam por ser mantidos no país para efeitos de propaganda. O caso mais óbvio de todos é o de Choi Eun-hee e Shin Sang-ok. A atriz, apelidada de Elizabeth Taylor da Coreia do Sul, foi a primeira a ser raptada em Hong Kong, em 1978. O marido e realizador foi à sua procura e acabou por encontrar o mesmo fim.

O casal foi depois utilizado para realizar e protagonizar vários filmes. À Coreia do Sul, a mensagem que chegava era a de que Shin e Choi tinham desertado voluntariamente para o Norte, levando o seu talento e arte para Pyongyang. A verdade só seria conhecida oito anos depois, quando a atriz e o realizador aproveitaram a ida a um festival de cinema em Viena para fugir. Consigo traziam uma cassete de um encontro com o próprio Kim Jong-il, que gravaram às escondidas, onde o levaram a admitir que tinham sido raptados.

“Eu disse às pessoas: o Shin e a Choi vieram para cá porque nós temos um sistema superior. Vocês vieram para cá voluntariamente. Não revelei as minhas verdadeiras intenções”, pode ouvir-se o líder dizer na gravação. “A realidade é que eu sou um político, com desejos e caprichos. Vocês foram exigidos por esses desejos e caprichos. Por isso, cá estão.” A história de Shin e Choi acabaria por ser contada num documentário de 2016, intitulado “The Lovers and the Despot” (Os Amantes e o Déspota).

Go Myong-hyun não tem dúvidas em afirmar que o próprio Kim Jong-il criou uma estratégia sua relacionada com os raptos: “Em meados dos anos 1970, a situação interna da Coreia do Norte começa a mudar. Kim Jong-il desenvolve a ideia de raptar sul-coreanos, mas sobretudo japoneses, para torná-los espiões e é aí que se entra nesta operação surreal de raptar japoneses”. Contudo, seria fácil atrair coreanos que viviam no Japão para os treinar como espiões. Por que razão arriscaram tanto os norte-coreanos ao raptar cidadãos japoneses? “Penso que Kim Jong-il estava muito interessado em conseguir uma revolução global, também”, explica o académico.

O Gabinete 35 do Partido dos Trabalhadores da Coreia, encarregado de levar a cabo os raptos, passou então a focar atenções no Japão. A estratégia passava por raptar pessoas em zonas costeiras, muitas vezes casais. Atualmente, Pyongyang admite o rapto de 13 japoneses — o Governo japonês coloca o número em 17. As associações de familiares falam em centenas de casos.
Fotografias de Megumi Yokota numa exposição em Tóquio (KAZUHIRO NOGI/AFP/GettyImages)
Megumi Yokota, raptada aos 13 anos, tornou-se o símbolo máximo desta realidade. “Ela representava a total e completa inocência dos japoneses que foram levados”, resume ao Observador Robert Boynton, o norte-americano que investigou a fundo o rapto de estrangeiros pela Coreia do Norte, sobretudo japoneses. “Se olharmos para a forma como as meninas são muitas vezes representadas na Manga [BD japonesa], são muito parecidas com ela. Ela é o símbolo derradeiro de uma inocência que foi roubada.” O caso de Megumi inspirou vários documentários, uma peça de teatro, programas de televisão e desenhos animados.
Shigeru Yokota, pai de Megumi Yokota, mostra uma fotografia da filha em criança
 e outra que lhe foi dada de Megumi já adulta (GettyImages)
Casamentos forçados e educação dos filhos. A vida possível na Coreia do Norte

“Havia um padrão na forma como as vítimas raptadas eram tratadas”, explica Yamamoto, que entrevistou dezenas de pessoas que estiveram retidas na Coreia do Norte. “Eles nunca foram verdadeiramente expostos à sociedade norte-coreana, apenas a uma limitada elite que tinha como obrigação treinar espiões. Por isso, os raptados eram forçados a viver sozinhos ou em pequenos grupos entre eles ou a casarem uns com os outros.”

O rapto de japoneses passou a ter um modus operandi específico, como explica Boynton. Na maioria das vezes, eram raptados casais, que depois eram separados assim que chegavam à Coreia do Norte. “O isolamento era chave. O regime percebeu que geralmente era necessário ano e meio para quebrar um indivíduo até um estado psicológico de desespero, durante o qual lhe podiam ensinar a língua coreana e apresentá-lo à Juche, a ideologia oficial do regime”. Mas demasiado isolamento poderia levar à depressão e ao suicídio, razão pela qual ao fim de uns tempos eram novamente reunidos com o companheiro ou companheira.

“Se fosse alcançado o equilíbrio correto e o casal fosse separado, treinado e depois reunido, as opções eram ilimitadas”, pode ler-se em “The Invitation-Only Zone” — precisamente o nome dado ao complexo onde vivia a maioria dos raptados japoneses, perto de Pyongyang. Aí, podiam levar a cabo uma vida a dois relativamente pacífica, com uma alimentação frugal mas suficiente, tarefas fixas (traduzindo jornais japoneses, por exemplo) e até, em alguns casos, com a possibilidade de fazer viagens pontuais pelo país, desde que acompanhados. A maioria acabaria por ter filhos e criá-los ali, muitas vezes não lhes revelando as suas origens.

O comité da ONU concluiu que estas vítimas “foram poupadas ao impacto brutal da fome dos anos 1990 e tiveram acesso a serviços médicos”, mas nem por isso tiveram uma vida fácil: “Impedidos de se integrarem na sociedade norte-coreana, era-lhes negado o direito ao trabalho, eram impedidos de sair da sua zona de residência e de se mover livremente na sociedade, não podiam escolher o tipo de educação que queriam para os filhos e enfrentavam violações sexuais e de género, como avanços sexuais indesejados por parte dos seus vigilantes, bem como casamentos forçados.”
O desertor americano Charles Jenkins (à direita) com as suas duas filhas e
com a filha de Megumi Yokota (de casaco claro) (GettyImages)
O investigador Yamamoto não tem dúvidas em classificar o tratamento dado aos raptados como um que “viola os direitos humanos mais básicos”. E conta ao Observador uma história para ilustrá-lo: “Quando estava presa numa casa, a japonesa Yaeko Taguchi apegou-se a um cão que lá estava. Sem ninguém com quem pudesse falar, tornou-se muito próxima do cão e deu-lhe o nome de Julie em homenagem a uma estrela rock do Japão. Os guardas viam como ela se apegou ao cão e um dia levaram-no. Suponho que sabe que os coreanos, à semelhança dos chineses, apreciam bastante carne de cão…”, declara o investigador, dando a entender que terá sido esse o destino de Julie. “É claro que isto são coisas pequenas quando comparadas com, por exemplo, os casamentos forçados. Mas destaco este ato cobarde das autoridades norte-coreanas como um exemplo de como mantinham os raptados emocionalmente instáveis para os controlar mais facilmente. Esta ideia de controlarem todos os aspetos da vida deles, grandes ou pequenos, foi o que me chocou mais ao fazer este trabalho.”
Ação de protesto de familiares sul-coreanos de vítimas raptadas (JUNG YEON-JE/AFP/GettyImages)
Mas, à medida que os anos passavam, as mulheres japonesas não foram as únicas raptadas para serem entregues em casamento — a japoneses, sul-coreanos e, inclusivamente, aos restantes soldados americanos. “Eles tentaram alargar a operação. Tornou-se mais direcionada, com menos vítimas, mas passou a incluir o resto do mundo. Foram raptadas pessoas em Hong Kong, na Tailândia, na Europa. Alguns países acabaram por ter embaixadas [da Coreia do Norte] que eram usadas como bases operativas. Foi o caso da Alemanha”, explica Go Myong-hyun. Outro conhecido caso foi o da embaixada em Zagreb, durante a Guerra Fria.
Donald Trump encontra-se com familiares de vítimas raptadas (KIMIMASA MAYAMA/AFP/GettyImages)
Muitas mulheres de várias nacionalidades foram raptadas ou atraídas em sítios tão distintos como Macau, Singapura, Londres ou França. Alguns estudiosos do tema, como Boynton, questionam-se ainda se todas as mulheres dos membros do Exército Vermelho japonês (Yodo-go no original, um grupo terrorista de extrema-esquerda composto por japoneses que desviaram um avião para Pyongyang e lá se instalaram em 1970, com laços posteriores à Palestina) terão ido para o país de livre vontade.

Certo é que algumas delas, como Yoriko Mori e Sakiko Kuroda, acabariam elas próprias por aliciar estrangeiros para a Coreia do Norte anos mais tarde. Pelo menos dois estudantes japoneses foram atraídos pela dupla de mulheres em Barcelona, em 1980.

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