Regime
comunista de Coreia do Norte terá raptado mais de 80 mil sul-coreanos durante a
Guerra da Coreia, quase quatro mil sul-coreanos nos anos seguintes, cerca de
100 japoneses, 200 cidadãos chineses (a maioria de origem coreana) e pelo menos
25 pessoas de outras nacionalidades.
por:
Cátia Bruno, Observador.pt
(a versão curta)
A
Comissão de Inquérito aos Direitos Humanos na Coreia do Norte, da ONU, estima
que cerca de 200 mil pessoas terem sido raptadas pelo regime de Pyongyang desde
o início da Guerra da Coreia até aos dias de hoje. As Nações Unidas concluíram,
sem margem para dúvidas, que “a República Popular da Coreia do Norte, desde os
anos 50 até ao presente, levou a cabo uma política sistemática de raptos,
recusas de repatriamento e subsequentes desaparecimentos forçados de pessoas de
outros países, a larga escala e como política oficial do Estado”. Os familiares
dos desaparecidos continuam sem saber pormenores do que aconteceu aos seus
pais, filhos, irmãos — e olham com esperança para a cimeira do dia 12, que pode
ser uma oportunidade para obter mais respostas.
É
uma página negra na longa história de violações de direitos humanos
norte-coreana, mas é quase desconhecida no mundo ocidental, ao contrário do que
acontece em países como o Japão. O alcance desta política de raptos, contudo,
vai mais longe do que a Ásia: há provas de que terão sido levados cidadãos de
países como o Líbano, a Roménia ou a França, e são vários os casos de coreanos
e japoneses aliciados em países ocidentais como a Alemanha, a Noruega ou até
Espanha. No relatório Taken!
de 2011, feito a pedido da ONG Comité pelos Direitos Humanos na Coreia do
Norte, o investigador Yoshi Yamamoto calcula que Pyongyang terá raptado mais de
80 mil sul-coreanos durante a Guerra, quase quatro mil sul-coreanos nos anos
seguintes, cerca de 100 japoneses, 200 cidadãos chineses (a maioria de origem
coreana) e pelo menos 25 pessoas de outras nacionalidades.
Junichiro Koizumi, antigo primeiro-ministro japonês, no encontro de 2002 com Kim Jong-il (AFP/GettyImages) |
Em
2002, o antigo líder Kim Jong-il reconheceu esta prática num encontro com o
homólogo japonês, Junichiro Koizumi. “As forças especiais deixaram-se levar
numa busca imprudente pela glória. É lamentável e quero pedir as mais sinceras
desculpas. Já tomei passos para garantir que isto não volta a acontecer”,
declarou à altura Kim, decretando depois o regresso de oito dos japoneses
raptados, argumentando que os restantes já teriam morrido. A realidade, no
entanto, não parece ser assim tão simples. Milhares de pessoas como Hwang Won
desapareceram sem deixar rasto e as suas famílias continuam sem saber do seu
paradeiro — e do seu destino.
Da
estratégia de guerra ao rapto de pescadores
Tudo
começou durante a Guerra entre as duas Coreias, nos anos 1950. A comissão de
inquérito das Nações Unidas concluiu que, entre 1950 e 1953, milhares de civis
sul-coreanos foram raptados para ajudar no esforço de reconstrução do Estado
norte-coreano. “Pensa-se que os objetivos destes raptos em tempo de guerra
seriam o recrutamento de força de trabalho e de conhecimento, ao mesmo tempo
que se esvaziavam as capacidades do Sul”, pode ler-se no relatório, que dá como
exemplo o caso de Park Myung-ja, que regressou à Coreia do Sul e contou a sua
experiência.
Ler o relatório em inglês |
Park
foi levada do Hospital da Universidade de Seul, onde estava a trabalhar durante
a guerra, juntamente com os colegas: “Estávamos exaustos — médicos, enfermeiras
e pessoal administrativo. As nossas pernas estavam cansadas e eles disseram que
os que estavam exaustos deviam sair. Os que levantaram os braços e saíram
primeiro foram mortos. Nós estávamos tão assustados que não tivemos escolha,
saímos também.” Os sobreviventes acabariam por ser levados para montar um
hospital em Hamhung — a mesma cidade para onde o voo da Korean Airlines onde
Hwang Won seguia seria desviado, anos depois, em 1969.
A
política de raptos poderia ter sido enterrada com a assinatura do armistício
entre as duas Coreias, mas não foi o caso. “Logo a seguir à Guerra da Coreia, a
Guerra Fria estava em pleno andamento. A Coreia do Norte decidiu então usar os
raptos como um instrumento para deixar a Coreia do Sul à defesa.” A explicação
é avançada ao Observador por Go Myong-hyun, especialista do Instituto Asan de
Estudos Políticos e autor do estudo “O Rapto como forma de Política Externa: a
História norte-coreana dos Raptos patrocinados pelo Estado”.
“Começaram
então a raptar pescadores sul-coreanos no Mar Amarelo [que banha as duas
Coreias e a China]. A marinha sul-coreana não tinha à altura equipamento
suficiente para conseguir impedir isto. Mas muitos deles acabavam por ser
devolvidos, porque o principal objetivo era colocar a marinha sul-coreana à
defesa.”
Um
desses pescadores foi Lee Jae-gun, cujo barco onde seguia com 27 colegas, o
Bongsan, foi raptado em 1970. Os pescadores sul-coreanos estavam a lançar as
redes, à noite, quando um barco colidiu com o seu. “Querem morrer? Saiam!”,
gritaram-lhes homens armados, que saltaram entretanto para o convés. O Bongsan
foi depois rebocado para águas do Norte. Lee contaria mais tarde ao jornalista
norte-americano Robert Boynton, autor do livro “The Invitation-Only Zone” (sem
edição em português), que foi recebido como um herói. “Ao desembarcar do navio,
foi cumprimentado por seis mulheres que o encheram de flores. ‘Não regresses
para o Sul! Fica a viver connosco no paraíso na terra que é o Norte’,
imploraram-lhe. Muitos dos pescadores raptados eram devolvidos algumas semanas
ou meses depois, na esperança de que contassem como tinham sido bem tratados”,
pode ler-se no livro.
Outros,
como Lee, eram escolhidos pelas suas capacidades e enviados para uma escola, a
fim de serem treinados como espiões. Este pescador, contudo, sempre sentiu que
não era tratado da mesma forma que os norte-coreanos — dando como exemplo o
facto de o seu filho, nascido já no país, ser impedido de entrar no ensino
superior. Depois de várias tentativas de fuga, Lee acabaria por regressar ao
seu país 30 anos depois, graças aos esforços da Associação de Familiares de
Raptados da Coreia do Sul. Mas muitos dos milhares de pescadores sul-coreanos
raptados acabariam por passar o resto da sua vida na Coreia do Norte.
Os
pescadores não foram, no entanto, os únicos sul-coreanos raptados por
Pyongyang. A ONU estabeleceu que pelo menos outros 70 sul-coreanos foram
raptados por agentes do Norte. Cinquenta deles, como Hwang Won, estavam no
fatídico voo da Korean Airlines. Outros, como cinco adolescentes, foram raptados
em praias. Foi o caso de Kim Young-nam, um jovem de 16 anos que, chateado com
os amigos, se isolou na praia de Seonyu e acordou num barco em alto-mar, a
caminho do porto de Nampo, na Coreia do Norte.
Kim Young-nam levanta o filho para este se despedir da avó, que acabou de conhecer. Kim e a mãe reuniram-se graças ao programa de reunificação familiar, em 2006 (Lee Hun-Koo/GettyImages) |
À
altura, as autoridades sul-coreanas concluíram que o jovem se teria afogado. A
família de Young-nam só soube a verdade anos depois, contactada pelos serviços
secretos sul-coreanos. “Estávamos assustados, não tínhamos pensado nem por um
minuto na possibilidade de ele estar vivo na Coreia do Norte”, revelou a irmã.
Em 2006, a mãe e a irmã tiveram possibilidade de se encontrar com ele do lado
Norte da fronteira, através do programa de reunificação familiar das duas
Coreias. Contudo, Kim Young-nam continua a viver na Coreia do Norte ainda hoje.
Diz não ter sido raptado, mas sim salvo de afogamento.
Os casos emblemáticos:
o casal de cineastas e a adolescente japonesa
“É
preciso entender que a Coreia do Norte nunca foi uma nação rica, não apenas em
recursos naturais mas também em recursos humanos. É por isso que os
sul-coreanos começaram a ser raptados pelo Norte, para contribuírem para o
avanço do conhecimento e da cultura.” Yoshi Yamamoto, autor do relatório
“Taken!” começa por explicar assim ao Observador a razão pela qual Pyongyang
decidiu enveredar por esta estratégia de raptar sul-coreanos. “Dito isto, a
Coreia do Norte nunca conseguirá ter talento suficiente, já que determina que
ninguém pode ser mais sábio do que a família Kim. Não há um sistema de educação
montado nem a intenção de desenvolver o talento das pessoas.”
O
rapto de sul-coreanos cumpria assim uma dupla função: se inicialmente servia
para trazer os conhecimentos que faltavam aos locais, os raptados acabavam por
ser mantidos no país para efeitos de propaganda. O caso mais óbvio de todos é o
de Choi Eun-hee e Shin Sang-ok. A atriz, apelidada de Elizabeth Taylor da
Coreia do Sul, foi a primeira a ser raptada em Hong Kong, em 1978. O marido e
realizador foi à sua procura e acabou por encontrar o mesmo fim.
O
casal foi depois utilizado para realizar e protagonizar vários filmes. À Coreia
do Sul, a mensagem que chegava era a de que Shin e Choi tinham desertado
voluntariamente para o Norte, levando o seu talento e arte para Pyongyang. A
verdade só seria conhecida oito anos depois, quando a atriz e o realizador
aproveitaram a ida a um festival de cinema em Viena para fugir. Consigo traziam
uma cassete de um encontro com o próprio Kim Jong-il, que gravaram às
escondidas, onde o levaram a admitir que tinham sido raptados.
“Eu
disse às pessoas: o Shin e a Choi vieram para cá porque nós temos um sistema
superior. Vocês vieram para cá voluntariamente. Não revelei as minhas
verdadeiras intenções”, pode ouvir-se o líder dizer na gravação. “A realidade é
que eu sou um político, com desejos e caprichos. Vocês foram exigidos por esses
desejos e caprichos. Por isso, cá estão.” A história de Shin e Choi acabaria
por ser contada num documentário de 2016, intitulado “The Lovers and the
Despot” (Os Amantes e o Déspota).
Go
Myong-hyun não tem dúvidas em afirmar que o próprio Kim Jong-il criou uma
estratégia sua relacionada com os raptos: “Em meados dos anos 1970, a situação
interna da Coreia do Norte começa a mudar. Kim Jong-il desenvolve a ideia de
raptar sul-coreanos, mas sobretudo japoneses, para torná-los espiões e é aí que
se entra nesta operação surreal de raptar japoneses”. Contudo, seria fácil
atrair coreanos que viviam no Japão para os treinar como espiões. Por que razão
arriscaram tanto os norte-coreanos ao raptar cidadãos japoneses? “Penso que Kim
Jong-il estava muito interessado em conseguir uma revolução global, também”,
explica o académico.
O
Gabinete 35 do Partido dos Trabalhadores da Coreia, encarregado de levar a cabo
os raptos, passou então a focar atenções no Japão. A estratégia passava por
raptar pessoas em zonas costeiras, muitas vezes casais. Atualmente, Pyongyang
admite o rapto de 13 japoneses — o Governo japonês coloca o número em 17. As
associações de familiares falam em centenas de casos.
Fotografias de Megumi Yokota numa exposição em Tóquio (KAZUHIRO NOGI/AFP/GettyImages) |
Megumi
Yokota, raptada aos 13 anos, tornou-se o símbolo máximo desta realidade. “Ela
representava a total e completa inocência dos japoneses que foram levados”,
resume ao Observador Robert Boynton, o norte-americano que investigou a fundo o
rapto de estrangeiros pela Coreia do Norte, sobretudo japoneses. “Se olharmos
para a forma como as meninas são muitas vezes representadas na Manga [BD
japonesa], são muito parecidas com ela. Ela é o símbolo derradeiro de uma
inocência que foi roubada.” O caso de Megumi inspirou vários documentários, uma
peça de teatro, programas de televisão e desenhos animados.
Shigeru Yokota, pai de Megumi Yokota, mostra uma fotografia da filha em criança e outra que lhe foi dada de Megumi já adulta (GettyImages) |
Casamentos forçados e
educação dos filhos. A vida possível na Coreia do Norte
“Havia
um padrão na forma como as vítimas raptadas eram tratadas”, explica Yamamoto,
que entrevistou dezenas de pessoas que estiveram retidas na Coreia do Norte.
“Eles nunca foram verdadeiramente expostos à sociedade norte-coreana, apenas a
uma limitada elite que tinha como obrigação treinar espiões. Por isso, os
raptados eram forçados a viver sozinhos ou em pequenos grupos entre eles ou a
casarem uns com os outros.”
O
rapto de japoneses passou a ter um modus
operandi específico, como explica Boynton. Na maioria das vezes, eram
raptados casais, que depois eram separados assim que chegavam à Coreia do Norte.
“O isolamento era chave. O regime percebeu que geralmente era necessário ano e
meio para quebrar um indivíduo até um estado psicológico de desespero, durante
o qual lhe podiam ensinar a língua coreana e apresentá-lo à Juche, a ideologia oficial do regime”.
Mas demasiado isolamento poderia levar à depressão e ao suicídio, razão pela
qual ao fim de uns tempos eram novamente reunidos com o companheiro ou
companheira.
“Se
fosse alcançado o equilíbrio correto e o casal fosse separado, treinado e
depois reunido, as opções eram ilimitadas”, pode ler-se em “The Invitation-Only
Zone” — precisamente o nome dado ao complexo onde vivia a maioria dos raptados
japoneses, perto de Pyongyang. Aí, podiam levar a cabo uma vida a dois
relativamente pacífica, com uma alimentação frugal mas suficiente, tarefas
fixas (traduzindo jornais japoneses, por exemplo) e até, em alguns casos, com a
possibilidade de fazer viagens pontuais pelo país, desde que acompanhados. A
maioria acabaria por ter filhos e criá-los ali, muitas vezes não lhes revelando
as suas origens.
O
comité da ONU concluiu que estas vítimas “foram poupadas ao impacto brutal da
fome dos anos 1990 e tiveram acesso a serviços médicos”, mas nem por isso
tiveram uma vida fácil: “Impedidos de se integrarem na sociedade norte-coreana,
era-lhes negado o direito ao trabalho, eram impedidos de sair da sua zona de
residência e de se mover livremente na sociedade, não podiam escolher o tipo de
educação que queriam para os filhos e enfrentavam violações sexuais e de
género, como avanços sexuais indesejados por parte dos seus vigilantes, bem
como casamentos forçados.”
O desertor americano Charles Jenkins (à direita) com as suas duas filhas e com a filha de Megumi Yokota (de casaco claro) (GettyImages) |
O
investigador Yamamoto não tem dúvidas em classificar o tratamento dado aos
raptados como um que “viola os direitos humanos mais básicos”. E conta ao
Observador uma história para ilustrá-lo: “Quando estava presa numa casa, a
japonesa Yaeko Taguchi apegou-se a um cão que lá estava. Sem ninguém com quem
pudesse falar, tornou-se muito próxima do cão e deu-lhe o nome de Julie em
homenagem a uma estrela rock do Japão. Os guardas viam como ela se apegou ao
cão e um dia levaram-no. Suponho que sabe que os coreanos, à semelhança dos
chineses, apreciam bastante carne de cão…”, declara o investigador, dando a
entender que terá sido esse o destino de Julie. “É claro que isto são coisas
pequenas quando comparadas com, por exemplo, os casamentos forçados. Mas
destaco este ato cobarde das autoridades norte-coreanas como um exemplo de como
mantinham os raptados emocionalmente instáveis para os controlar mais
facilmente. Esta ideia de controlarem todos os aspetos da vida deles, grandes
ou pequenos, foi o que me chocou mais ao fazer este trabalho.”
Ação de protesto de familiares sul-coreanos de vítimas raptadas (JUNG YEON-JE/AFP/GettyImages) |
Mas,
à medida que os anos passavam, as mulheres japonesas não foram as únicas
raptadas para serem entregues em casamento — a japoneses, sul-coreanos e,
inclusivamente, aos restantes soldados americanos. “Eles tentaram alargar a
operação. Tornou-se mais direcionada, com menos vítimas, mas passou a incluir o
resto do mundo. Foram raptadas pessoas em Hong Kong, na Tailândia, na Europa.
Alguns países acabaram por ter embaixadas [da Coreia do Norte] que eram usadas
como bases operativas. Foi o caso da Alemanha”, explica Go Myong-hyun. Outro
conhecido caso foi o da embaixada em Zagreb, durante a Guerra Fria.
Donald Trump encontra-se com familiares de vítimas raptadas (KIMIMASA MAYAMA/AFP/GettyImages) |
Muitas
mulheres de várias nacionalidades foram raptadas ou atraídas em sítios tão
distintos como Macau, Singapura, Londres ou França. Alguns estudiosos do tema,
como Boynton, questionam-se ainda se todas as mulheres dos membros do Exército
Vermelho japonês (Yodo-go no original, um grupo terrorista de extrema-esquerda
composto por japoneses que desviaram um avião para Pyongyang e lá se instalaram
em 1970, com laços posteriores à Palestina) terão ido para o país de livre
vontade.
Certo é que algumas
delas, como Yoriko Mori e Sakiko Kuroda, acabariam elas próprias por aliciar
estrangeiros para a Coreia do Norte anos mais tarde. Pelo menos dois estudantes
japoneses foram atraídos pela dupla de mulheres em Barcelona, em 1980.
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