Os
fãs da URSS e do comunismo acreditam que na URSS não havia pedintes e mendigos,
geralmente essa frase se escreve em letras garrafais, em jeito de reação após a
comparação do nível de vida real na União Soviética e nos principais países
capitalistas da época.
Acontece
que na URSS cerca de 90% da população era pobre, as pessoas sobreviviam entre
os salários, pedindo emprestado aos vizinhos alguma batata ou 3-5 rublos “até o
fim do mês”. Mas sem contar com estes, na URSS também havia muitos mendigos (as
pessoas que sobreviviam, pedindo o dinheiro e comida nos locais públicos) — durante
toda a existência da União Soviética.
País
de pobreza institucionalizada
Imediatamente
após a chegada ao poder, na sequência do golpe comunista de 1917, os
bolcheviques não só não melhoraram a situação dos pobres e dos segmentos menos
protegidos da população, mas ainda a pioraram – o novo poder soviético aboliu
as pensões “czaristas” e até 1928 na URSS não existiam as pensões de velhice /
aposentadorias. Ou seja, até 1928, os idosos da URSS viveram sem aposentadorias
e foram forçados à sobreviver como podiam.
Em
1928, a situação não mudou muito: as pensões eram atribuídas apenas aos operários
de alguns setores produtivos e, em 1936, os funcionários do estado. O valor de
qualquer pensão soviética até 1956 era muito baixo – o veterano do RKKA (Exército
Vermelho), recebia, por velhice, apenas 25 rublos; o mesmo veterano, mas com
invalidez da 2ª categoria – 45 rublos. O montante máximo da pensão chegou aos
300 rublos no início de 1950 (após a reforma monetária soviética de 1961, este
valor era de 30 rublos, menos de metade do salário mínimo e apenas 50,84
dólares, ao câmbio oficial soviético), apenas 2% do número total dos cidadãos
na idade de reforma recebia qualquer pensão estatal.
Moscovo (?), 1947 |
Ao
mesmo tempo, de acordo com várias estimativas, após o fim da II G.M. na URSS
viviam cerca de 3-5 milhões de pessoas sem-abrigo e sem nenhuma fonte legal de rendimento.
A origem destas pessoas era mais que diverso: crianças abandonadas e de pais falecidos
e mortos, pessoas com deficiências causadas pela guerra, camponeses fugidos dos
seus kolkhozes (no período entre 1935 a 1974 os membros do kolkhoz soviético não
podiam se mudar para uma outra localidade sem a permissão, e praticamente eram vinculados
ao seu kolkhoz e ao local de residência. Segundo o censo soviético de 1970, eram
cerca de 50 milhões de pessoas, ou seja 20,5% da população da URSS) e os “elementos
anti-sociais”. As crianças eram levadas aos orfanatos, as pessoas com
deficiências eram ignoradas. Os camponeses fugidos dos seus kolkhozes e os
ditos “elementos anti-sociais” eram perseguidos ao abrigo do artigo do Código
Penal “Violação do regime de passaporte”, que punia as pessoas até um ano de trabalhos
forçados no GULAG; no período entre 1945-1953 ao abrigo dessa lei foram condenados
até 200 mil pessoas.
Moscovo (?), Life (?), 1947 |
Ao
mesmo tempo, na URSS era impossível se dedicar ao “comércio” ou abrir a sua
empresa privada – legalmente a União Soviética baniu o comércio privado – o próprio
país empurrava os seus pobres, deficientes ou apenas idosos para a mendicidade –
as cidades soviéticas eram cheias de mendigos. Aos mendigos urbanos se juntaram
os mendigos do campo – os moradores das aldeias devastadas pelo poder soviético
iam às cidades para encontrar algum trabalho, os que não o conseguiam – acabavam
na mendicidade.
Luta,
à soviética, contra a mendicidade
Inicialmente,
o governo soviético preferiu não “reparar” nos mendigos, mas quando o problema
começou a assumir um caráter “ameaçador” – optou por um combate cerrado. É de
reparar numa característica muito importante da vida soviética – o governo
soviético preferiu não resolver o problema, mas o “encobrir”, esconder dos olhos
de observadores externos. Ninguém estava preocupado em realmente ajudar aos
seus próprios concidadãos – a principal preocupação do regime soviético era de
fazer “tudo bonito” – os meios e as vítimas eram uma questão bastante secundária.
Um
dos fiéis seguidores do Estaline, Yemelyan Iavorski relatava: “Nos últimos anos
pode ser notado a aumento de mendigos em alguns bairros de Moscovo. De ano para
o ano, o número de mendigos nas ruas de Moscovo aumenta, e se torna cada vez
mais intolerável para a nossa capital socialista”. De facto, as autoridades só
estavam interessadas em remover silenciosamente multidões de mendigos das ruas de Moscovo e de outras
grandes cidades soviéticas.
A
“resolução definitiva do problema de mendigos” nasceu em forma da decisão de
deportar os mendigos diretamente ao GULAG – a iniciativa formal veio do Guenrikh Yagoda, e em
1935 começou a deportação dos mendigos para os assentamentos especiais nas
estepes do Cazaquistão. A situação apenas piorou após o fim da II G.M. Em 1951
na URSS foram detidos mais de 107.000 mendigos, em 1952 – 156.000; em 1953 –
186 mil pessoas. Muitos deles eram veteranos soviéticos da II G.M., que
perderam a sua saúde na guerra. Muitas dessas pessoas ficaram sem as pernas, se
movendo em carrinhos caseiros – na União Soviética, acreditava-se que estas
pessoas estão “difamando o sistema soviético”, por isso os deficientes e
mendigos eram constantemente apanhados pela polícia nos centros urbanos e expulsos
das cidades...
“difamando o sistema soviético”... |
A
mendicidade de tal maneira afetava a imagem de Moscovo, a capital do “primeiro
país dos operários e camponeses”, que em dezembro de 1952, o Conselho de
Ministros da Rússia Soviética, aprovou a resolução № 1698-98-s que obrigava o
Comité Executivo Regional da região de Kaluga e pessoalmente o seu chefe, A. A.
Egorov, garantir a eliminação de mendicidade “profissional” entre os membros
de kolkhozes dos distritos de Kirovsky e Khvastovichsky, situados naquela região.
Na
mendicidade eram envolvidos não apenas os membros simples dos kolkhozes, mas
também os familiares dos dirigentes. Em 1954, para se dedicar à mendicidade
[em Moscovo] viajou a esposa do chefe do kolkhoz “Rassvet” (Nascer do Sol) Nikitina,
a esposa do chefe do kolkhoz leiteiro –Erokhin e os membros das famílias (mães,
filhos, filhas, esposas) de seis capatazes de brigadas de campo.
O
regime soviético respondia como sabia. Em junho de 1954, a assembleia geral da célula
do partido comunista do kolkhoz “Rassvet” expulsou do PC o seu membro Lesin
(pela mendicidade das duas filhas) e camarada Kuznetsov recebeu a repreensão
severa, pela mendicidade da sua esposa.
Mas
a verdadeira razão de mendicidade entre os camponeses era simples: “Devido à
baixa produtividade dos agricultores coletivos e má disciplina do trabalho, bem
como a seca, os kolkhozes neste ano [1954] tiveram a má colheita e os
agricultores coletivos receberam pouco dinheiro e produtos agrícolas para cada
dia de trabalho. Assim, no kolkhoz “Rassvet” por cada dia de trabalho, receberam
13 copeque em dinheiro, 500 gramas de grãos e 3,5 kg de feno e palha. No ano
passado [1953] foi dado, em média, por cada dia de trabalho os 6 copeque em
dinheiro, 100 gramas de grãos e 460 gramas de feno e palha [fonte].
É
de notar que após a reforma monetária soviética de 1961, os 6 e 13 copeque
passaram à valer 0,6 e 1,3 copeque, ou seja 0,10 e 0,22 centavos do dólar (ao
câmbio oficial da época). Ou seja, era o valor que o camponês soviético russo recebia
(em média) por dia, no biénio de 1953-54.
Já
nos EUA, a primeira lei federal do salário mínimo, promulgada em 1938, estabelecia
o valor de 0,25 dólares como o salário mínimo diário; em 1952 este valor era de
0,75 dólares [fonte].
A renda média anual nos EUA em 1953 era de 4.011,00 dólares [fonte].
Mendigos
na era do “socialismo científico”
Mas
e após o fim do estalinismo, as coisas certamente melhoraram? Na época do
“socialismo científico”, na era da Pepsi e da Coca-Cola, das chicletes com
sabor de café, dos Jogos Olímpicos de Moscovo-1980 e de sapatilhas/tênis
soviéticos “Adidas” – nada mudou? Sim e não. Os mendigos já não eram enviados
maciçamente aos assentamentos especiais no Cazaquistão, mas mesmo assim – eles
continuavam sendo alvos de rusgas e perseguições de milícia (polícia) nos
grandes centros urbanos.
Isso
deixou de ser uma tarefa do NKVD-KGB, passou às mãos do Ministério do Interior,
os mendigos eram capturados nas cidades (na maior parte se mendigava junto às
lojas), colocados nas viaturas da polícia e levados fora. Depois poderia ocorrer
algum tipo de julgamento no “tribunal de camaradagem”, uma penalidade administrativa,
a detenção administrativa de 15 dias, e assim por diante. As autoridades soviéticas
disseram que “na URSS não há mendigos” e, portanto, estes não deviam ser vistos,
pelo menos nas ruas. Nesta época os dois principais meios de combater os mendigos
na URSS era o uso do artigo do Código Penal “Parasitismo” e a deportação dos
indesejados, principalmente nas vésperas dos grandes certames estatais, ao 101º
km fora de Moscovo e de outros grandes centros urbanos. Ninguém na URSS estava
preocupado em realmente resolver o problema da pobreza e da mendicidade até o
final da própria existência da era soviética.
Possivelmente
todos os nascidos na União Soviética se lembram dos casos na sua infância ou na
juventude – dos mendigos, geralmente velhinhos, que estavam mendigar na entrada
de uma loja, estação do metro ou na porta da igreja, poucos dias / semanas depois
eles desapareciam – apanhados e levados pela milícia/polícia. Às vezes essa
mesma avó ou avô retornavam alguns dias depois, para ficar no mesmo lugar...
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