quinta-feira, julho 06, 2017

Uma história de amor e sobrevivência no GULAG soviético

Historiador britânico Orlando Figes desvenda a trajetória de um casal moscovita de origem ucraniana cujo amor sobreviveu à II G.M. e à um campo de concentração soviético. Por quase dez anos, Svetlana e Lev Mishenko se comunicaram apenas por cartas.

No ano de 2007, vários baús abarrotados chegaram ao escritório moscovita da organização de direitos humanos Memorial. Dentro deles estavam documentos, fotos, notas e diários – o legado de um casal da capital russa. Num baú separado estavam 1.246 cartas firmemente amarradas e empacotadas, numeradas e marcadas com precisão – a primeira, de meados de 1946, a última, de fins de 1954.

Uma análise mais detalhada constatou que se tratava de uma incrível descoberta: a correspondência entre um prisioneiro do GULAG, um dos campos de trabalhos forçados no norte da antiga União Soviética, e sua namorada residente em Moscovo. Para a ONG Memorial, que se dedica ao resgate crítico do passado estalinista, e para o historiador britânico Orlando Figes, que passava uma estada de pesquisas na metrópole russa, foi uma sensação. E o prelúdio de uma ampla pesquisa, que resultou num livro: um livro sobre a história de Sveta e Lev.
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Just send me Word: A True Story of Love and Survival in the GULAG (infelizmente sem a edição portuguesa/brasileira) foi lançado em 2012. O livro de Figes fornece uma visão autêntica, imediata e muito pessoal do GULAG visto de dentro, como também da vida quotidiana sob o governo de Estaline. O livro se lê como um romance, baseados em fatos históricos, a troca de cartas e longas entrevistas, que o autor realizou com o casal a partir de 2007.

Amor juvenil na era Estaline
Svetlana Ivanova
Sveta e Lev se conheceram em setembro de 1935, quando tinham ambos 18 anos e estudavam na Faculdade de Física, uma instituição de excelência que pesquisava também a mando dos militares soviéticos. Após difíceis tempos económicos, naquela época o dia a dia em Moscovo reservava primeiros alívios e pequenos prazeres. Mas Estalinу governava o país, conflitos ideológicos ofuscavam o trabalho no instituto e, secretamente, os apoiadores do ditador já preparavam listas de prisão.

Ainda faltavam dois anos para o «Grande Terror», que vitimou ao menos 1,3 milhão dos chamados “inimigos do povo”. Entre eles, muitos cientistas. Consciência política, educação ideológica e formação militar pertenciam ao programa de estudantes de excelência como Sveta e Lev. Os dois se tornaram amantes inseparáveis.

Já antes do fim de seus estudos, Lev envolveu-se em projetos científicos, uma carreira universitária anunciava-se. Com o diploma universitário na mão, ele partiu com colegas para uma excursão ao Cáucaso.

Virada dramática
Lev Mishenko
De forma surpreendente, sucede-se no mesmo mês o ataque das forças de Hitler à União Soviética, um ataque violento ao qual as forças soviéticas ficaram expostas quase sem defesas. Lev inscreveu-se como voluntário no front. Apenas algumas vezes, ele pôde ir a Moscovo para ver Sveta. Pouco tempo depois, já se encontrava num campo de prisioneiros alemães, foi deportado para Alemanha e submetido aos trabalhos forçados.

Na universidade, o jovem físico havia aprendido bem o alemão e, logo, foi obrigado a trabalhar como tradutor numa grande zona industrial com campos de prisioneiros, em Dresden. Uma tentativa de fuga não funcionou, seguiu-se então a detenção e, finalmente, o campo de concentração de Buchenwald.

Em abril de 1945, Lev foi forçado a empreender a chamada “marcha da morte”. Ele sobreviveu e, após a guerra, foi levado à zona de ocupação soviética na Alemanha. Ele recusou uma oferta de trabalho como físico nos Estados Unidos. Ele queria rever Sveta e sua família.

No entanto, os que retornavam da Alemanha eram recebidos de forma nem um pouco cordial pelas autoridades soviéticas. Pelo contrário, Lev foi preso sob a acusação de colaborar com os alemães e, mais tarde, condenado por traição a dez anos de internação num campo de prisioneiros. O processo durou 20 minutos. Ele foi então deportado para o norte da União Soviética, o destino era o campo de trabalhos forçados de Pechora.

No inverno, dominam ali temperaturas de -45°C negativos, o rio permanece congelado nove meses por ano. Os detentos viviam em barracas e, desde as primeiras horas da manhã, tinham de fazer turnos de 12 horas de trabalho duro no complexo madeireiro. A alimentação era ruim, havia chá, mingau aguado e 600 gramas de pão por dia – caso a meta fosse cumprida. Os conhecimentos físicos de Lev o ajudaram logo a conseguir uma melhor posição, ele foi designado para a usina de força do complexo e trabalhou como mecânico do “grupo elétrico”.

Vida difícil em Moscovo

Sveta não suspeitava de nada disso. Ela presenciou o bombardeio de Moscovo, a evacuação da universidade, a transferência de seu instituto para a Ásia Central. Ela terminou seus estudos universitários e trabalhava como física industrial num laboratório de testes, que também servia à indústria bélica soviética.

A guerra então chegou ao fim. Mas o quotidiano na capital soviética permaneceu difícil. A polícia secreta de Estaline e uma abrangente burocracia colocavam as pessoas sob pressão, os alimentos eram racionados, e era difícil conseguir uma habitação. Sveta já tinha perdido todas as esperanças de rever Lev. De repente, ela ficou sabendo, de forma indireta, que seu namorado ainda estava vivo.

Em 12 de julho de 1946, Sveta escreveu sua primeira carta ao campo Pechora. Lev lhe respondeu em 9 de agosto. Foi o início de uma correspondência de quase dez anos. Sveta não enviou somente cartas, mas também pacotes com medicamentos, alimentos, livros – ainda que ali, como em todo o GULAG, houvesse uma censura rigorosa.

O jovem casal teve sorte, havia ajudantes que contrabandeavam as cartas para dentro e fora do GULAG, pois o campo de trabalhos forçados era cercado por um complexo industrial, que ocupava os chamados “trabalhadores livres”. Ali se encontravam pessoas que ajudaram Lev e Sveta.

Cartas contrabandeadas
São cartas emocionantes, em parte chocantes aquelas que Figes documentou em seu livro, não por serem cheias de drama, pelo contrário: os amantes pesavam suas palavras, formulavam com muito cuidado, utilizavam muitas vezes eufemismos ou códigos – para ambos, sua correspondência secreta era algo muito perigoso. Lev descrevia os problemas da vida no campo forçado: o frio e o isolamento, a humilhação, mas também as amizades que surgiram em Pechora.

Percebe-se, muitas vezes, que Lev retratava a situação de forma antes reconfortante. Sveta escrevia sobre seu trabalho, o cotidiano em Moscovo, sua família. Algumas vezes saudosamente – mas sem sentimentalismo.

“Essas cartas não são nada mais que cartas cheias de amor, apesar de a palavra 'amor' aparecer só raramente. Elas foram escritas para encorajar Lev a manter sua vontade de viver, para lhe dar esperança. Pois essa esperança o mantinha vivo”, disse Figes durante um recital em Berlim. “Há muita autocensura nas cartas. Por medo, por precaução, eles não queriam causar problemas um ao outro, eles se protegiam mutuamente – eles não sabiam se iriam se ver novamente”.

Viagens proibidas e nova esperança

Quatro vezes em dez anos, aconteceu o improvável: Sveta aproveitou suas viagens a trabalho e viajou, sem permissão e por caminhos aventurosos, para Pechora. Foram viagens exaustivas, com vários dias de duração, em trens superlotados, viagens feitas ilegalmente, sem os documentos necessários e com uma bagagem pesada. “Algo assombroso sob as circunstâncias de então e muito perigoso”, disse o historiador. Isso foi possível não somente através da coragem extraordinária da jovem, mas também através da ajuda generosa de pessoas na “zona livre”. Sveta pôde encontrar Lev por quatro vezes. Foram encontros dolorosos e muito difíceis.

Com a morte de Stálin, em 1953, cresceu a esperança de uma anistia entre os prisioneiros do Gulag. Mas Lev teve que esperar. Quando finalmente chegou a hora, surgiram novas e irritantes questões – também expostas na correspondência de ambos. Onde ele iria morar e trabalhar? As portas de Moscovo continuaram fechadas para ele. Para antigos prisioneiros, a capital russa era um tabu. Procedimentos burocráticos tornavam a reintegração, a procura por trabalho e moradia difíceis naquela província. Após anos de separação, o casal não iria morar junto. Lev foi liberado em 17 de julho de 1954. Por bom comportamento, ele foi presenteado com alguns meses.

Após viver alguns meses num vilarejo, Lev teve sorte, mais uma vez. Através de um conhecido em Moscovo, ele conseguiu um trabalho como tradutor de textos estrangeiros. A princípio, Sveta transportava os textos para lá e para cá. No final de 1954, ele passou a morar ilegalmente com Sveta e sua família na capital russa. Mais uma vez, era um empreendimento perigoso. Caso fosse descoberto, ele enfrentaria a inevitável ameaça de voltar ao campo de prisioneiros.

Em 1955, no contexto da visita do então chanceler federal alemão Konrad Adenauer, foi concedida anistia para soldados acusados de colaborar com os alemães. Um passo importante para Lev. Em setembro do mesmo ano, ele e Sveta se casaram. Eles tinham então 38 anos de idade. Um ano depois, nasceu sua filha Anastasia, em 1957, o filho Nikita. Seu casamento durou até que a morte os separasse. Lev faleceu em 2008. Sveta, em 2010.

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