quinta-feira, julho 20, 2017

O shopping que se tornou a cadeia dos prisioneiros políticos da Venezuela

O El Helicoide, em Caracas, foi desenhado para ser o primeiro centro comercial do mundo, aberto à circulação automóvel (“drive-through”), mas acabou por transformar-se numa prisão dos prisioneiros políticos do regime bolivariano da Venezuela.
Entre as barracas do Bairro de San Agustín, na capital da Venezuela, destaca-se um edifício de aspeto espacial, que foi desenhado pelo estúdio de arquitectura Arquitectura y Urbanismo C.A., de responsabilidade do arquiteto Jorge Romero Gutiérrez, inspirado na Torre de Babel e no planetário proposto por Frank Lloyd Wright’s, o Gordon Strong Automobile Objective.
Centro comercial no projeto arquitetónico
A história deste estranho edifício – cujos planos de construção previam 320 lojas e dois elevadores, bem como rampas de duas faixas é descrita num livro publicado pelas historiadoras Celeste Olalquiaga e Lisa Blackmore, “Downward Spiral: El Helicoide’s Descent from Mall to Prison” (“Espiral Descendente: A Passagem do El Helicoide de Centro Comercial a Prisão”, em tradução livre).
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As obras iniciaram-se, em 1956, numa altura em que a companhia petrolífera estatal da Venezuela, apoiada pelo Governo da época, apresentou ganhos significativos, relativos à venda de petróleo aos aliados da Segunda Guerra Mundial.
No shopping planeava-se construir um stand de venda de carros e peças de reposição, posto de gasolina e de lavagem de carros, além da oficina de reparações. Supunha-se que El Helicóide ia se tornar o pioneiro no uso de elevadores, o que iriam se mover entre os níveis do centro sob um ângulo. Além disso, ao dispor dos visitantes deveriam estar as salas de exposições, ginásio, piscina, pista de bowling, um parque infantil e um cinema com sete salas. Uma estação própria de radio iria transmitir os anúncios de eventos e ofertas especiais.
E o valor do projeto foi então reconhecido um pouco por todo o mundo. O poeta Pablo Neruda, segundo conta o Business Insider citado pelo Jornal Económico, chegou mesmo a chamar-lhe “uma das criações mais refinadas a sair da mente de um arquiteto”. Salvador Dali queria que seu trabalho seja exibido no Centro, que prometia ser o mais moderno espaço comercial da década 1950. 
Apesar da informação circulante, o projeto foi apenas começado em outubro de 1958, já depois do colapso do regime do general Pérez Jiménez. O chefe da junta militar provisória, almirante Wolfgang Larrazábal deu o seu aval ao arranque da construção, desde que empregue o maior número dos trabalhadores desempregados, a parte do plano nacional de reconstrução. Durante próximos 1,5 anos, cerca de 1.500 trabalhadores, divididos em três turnos laboravam na construção do projeto. Cuja concepção continuou a recolher os aplausos no exterior. O Museu de Arte Moderna de Nova Iorque realizou uma exposição intitulada “Roads”, que enfatizou a integração da arquitectura do El Helicóide no design da estrada – um aspeto inédito até a época. Até que em 1961 os trabalhos da construção pararam completamente.
Votado ao abandono, tornou-se propriedade do Governo em 1976,  tendo também sido utilizado, entre 1979 e 1982, para albergar cerca de 500 famílias desalojadas, que habitavam nos contentores colocados dentro do edifício. Os desalojados viviam em terríveis condições insalubres, no edifício prosperava o tráfico de drogas e funcionavam os diversos bordéis. O assentamento foi liquidado em 1982.
Em 1993 surgiu a ideia de transformar o complexo no Centro do meio ambiente de Venezuela. O arquiteto Dirk Bornhorst escreveu que os arquitetos Julio Coll and Jorge Castillo subiram ao topo da La Roca Tarpeya e durante a meditação “contactaram” com os espíritos dos índios do vale de Caracas. Então, foi lhes “revelado” que no local o centro comercial no passado estava localizado um cemitério tribal. Foi decidido transformar El Helicóide em um centro ambiental, uma forma de pedir as desculpas aos espíritos dos antepassados.
Mas o sonho de criação do Centro de Meio Ambiente não se tornou realidade. Em 1984 o novo governo do presidente Rafael Caldera decidiu usar o edifício como o quartel-general da Dirección de los Servicios de Inteligencia y Prevención (DISIP). Presidente Hugo Chávez manteve o serviço, apenas o rebatizando de Servicio Bolivariano de Inteligencia Nacional (SEBIN), mandando colocar no edifício o Centro de formação dos futuros funcionários dos serviços especiais. Lugar esquecido, El Helicoide, era bastante adequado para alojar os serviços secretos.
SEBIN tomou conta do edifício e o transformou numa prisão para presos políticos, atividade que mantém até hoje. Durante muito tempo, os funcionários da secreta bolivariana ficavam alegres por poderem chegar de carro diretamente aos seus gabinetes, imitando o lendário James Bond. O regime proibia tirar fotos do edifício à partir de qualquer ponto da cidade, quem desobedecia, poderia ser detido pela polícia.
O lugar que na década de 1950 e 1960 deveria se tornar um símbolo do livre comércio, se transformou em uma prisão dos presos políticos.
Atualmente, existem pelo menos 340 prisioneiros políticos naquele edifício, incluindo estudantes que recentemente participaram nos protestos anti-Maduro. E há relatos de antigos prisioneiros que falam de terrores que acontecem no El Helicoide: choques elétricos, espancamentos e enforcamentos por largos períodos de tempo.
Rosmit Mantilla (1982) passou em El Helicóide dois anos, seis meses e oito dias. As forças de segurança o prenderam em 2 maio de 2014 e mandaram à prisão, sob acusação de ligação, nunca provada, às provocações durante as manifestações antigovernamentais daquele ano.
“Todo este tempo eu estava na cela, chamada de “pequeno inferno” – conta Montilla, um funcionário do estado de Táchira e membro do partido de oposição Voluntad Popular. – Na cela 3 x 5 metros estavam detidas 22 pessoas. Nós comíamos lá, dormíamos ali, tomávamos o banhado lá. Nós fomos torturados pela luz ofuscante branca”.
Como explica Montilla, o edifício é gradualmente reconstruído para abrigar mais prisioneiros: “No princípio havia apenas três celas. O resto do espaço era ocupado pela administração. Com o tempo, as instalações administrativas foram convertidas em celas de tortura e outro no qual os prisioneiros foram espancados com choques elétricos ou penduradas para obriga-los à falar”.
No relatório da organização de direitos humanos Foro Penal, intitulado “As repressões do governo venezuelano de janeiro de 2014 à junho de 2016”, são descritos 145 casos de tortura e tratamento desumano de prisioneiros, na maioria dos casos por parte dos funcionários de SEBIN e dos militares da Guarda Nacional da Venezuela.
Fonte @Tropical Babel (em inglês)

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