O
El Helicoide, em Caracas, foi desenhado para ser o primeiro centro comercial do
mundo, aberto à circulação automóvel (“drive-through”), mas acabou por
transformar-se numa prisão dos prisioneiros políticos do regime bolivariano da Venezuela.
Entre
as barracas do Bairro de San Agustín, na capital da Venezuela, destaca-se um
edifício de aspeto espacial, que foi desenhado pelo estúdio de arquitectura
Arquitectura y Urbanismo C.A., de responsabilidade do arquiteto Jorge Romero
Gutiérrez, inspirado na Torre de Babel e no planetário proposto por Frank Lloyd
Wright’s, o Gordon Strong Automobile Objective.
Centro comercial no projeto arquitetónico |
A
história deste estranho edifício – cujos planos de construção previam 320 lojas
e dois elevadores, bem como rampas de duas faixas é descrita num livro
publicado pelas historiadoras Celeste Olalquiaga e Lisa Blackmore, “Downward
Spiral: El Helicoide’s Descent from Mall to Prison” (“Espiral Descendente: A
Passagem do El Helicoide de Centro Comercial a Prisão”, em tradução livre).
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As
obras iniciaram-se, em 1956, numa altura em que a companhia petrolífera estatal
da Venezuela, apoiada pelo Governo da época, apresentou ganhos significativos,
relativos à venda de petróleo aos aliados da Segunda Guerra Mundial.
No
shopping planeava-se construir um stand de venda de carros e peças de
reposição, posto de gasolina e de lavagem de carros, além da oficina de
reparações. Supunha-se que El Helicóide ia se tornar o pioneiro no uso de
elevadores, o que iriam se mover entre os níveis do centro sob um ângulo. Além
disso, ao dispor dos visitantes deveriam estar as salas de exposições, ginásio,
piscina, pista de bowling, um parque infantil e um cinema com sete salas. Uma
estação própria de radio iria transmitir os anúncios de eventos e ofertas
especiais.
E
o valor do projeto foi então reconhecido um pouco por todo o mundo. O poeta
Pablo Neruda, segundo conta o Business Insider citado pelo Jornal Económico,
chegou mesmo a chamar-lhe “uma das criações mais refinadas a sair da mente de
um arquiteto”. Salvador Dali queria que seu trabalho seja exibido no Centro,
que prometia ser o mais moderno espaço comercial da década 1950.
Apesar da informação circulante, o projeto foi apenas começado em outubro de 1958, já depois do colapso do regime
do general Pérez Jiménez. O chefe da junta militar provisória, almirante Wolfgang Larrazábal deu o seu aval ao arranque da construção, desde que empregue o maior número dos trabalhadores desempregados, a parte do plano nacional de reconstrução. Durante próximos 1,5 anos, cerca de 1.500 trabalhadores, divididos em três turnos laboravam na construção do projeto. Cuja concepção continuou a
recolher os aplausos no exterior. O Museu de Arte Moderna de Nova Iorque realizou
uma exposição intitulada “Roads”, que enfatizou a integração da arquitectura
do El Helicóide no design da estrada – um aspeto inédito até a época. Até que em
1961 os trabalhos da construção pararam completamente.
Votado
ao abandono, tornou-se propriedade do Governo em 1976, tendo também sido utilizado, entre 1979 e
1982, para albergar cerca de 500 famílias desalojadas, que habitavam nos contentores
colocados dentro do edifício. Os desalojados viviam em terríveis condições
insalubres, no edifício prosperava o tráfico de drogas e funcionavam os
diversos bordéis. O assentamento foi liquidado em 1982.
Em
1993 surgiu a ideia de transformar o complexo no Centro do meio ambiente de
Venezuela. O arquiteto Dirk Bornhorst escreveu que os arquitetos Julio Coll and
Jorge Castillo subiram ao topo da La Roca Tarpeya e durante a meditação “contactaram”
com os espíritos dos índios do vale de Caracas. Então, foi lhes “revelado” que no
local o centro comercial no passado estava localizado um cemitério tribal. Foi
decidido transformar El Helicóide em um centro ambiental, uma forma de pedir as
desculpas aos espíritos dos antepassados.
Mas
o sonho de criação do Centro de Meio Ambiente não se tornou realidade. Em 1984
o novo governo do presidente Rafael Caldera decidiu usar o edifício como o
quartel-general da Dirección
de los Servicios de Inteligencia y Prevención (DISIP). Presidente Hugo Chávez
manteve o serviço, apenas o rebatizando de Servicio
Bolivariano de Inteligencia Nacional (SEBIN), mandando colocar no edifício
o Centro de formação dos futuros funcionários dos serviços especiais. Lugar esquecido,
El Helicoide, era bastante adequado para alojar os serviços secretos.
SEBIN
tomou conta do edifício e o transformou numa prisão para presos políticos,
atividade que mantém até hoje. Durante muito tempo, os funcionários da secreta bolivariana
ficavam alegres por poderem chegar de carro diretamente aos seus gabinetes,
imitando o lendário James Bond. O regime proibia tirar fotos do edifício à
partir de qualquer ponto da cidade, quem desobedecia, poderia ser detido pela polícia.
O
lugar que na década de 1950 e 1960 deveria se tornar um símbolo do livre
comércio, se transformou em uma prisão dos presos políticos.
Atualmente,
existem pelo menos 340 prisioneiros políticos naquele edifício, incluindo
estudantes que recentemente participaram nos protestos anti-Maduro. E há
relatos de antigos prisioneiros que falam de terrores que acontecem no El
Helicoide: choques elétricos, espancamentos e enforcamentos por largos períodos
de tempo.
Rosmit Mantilla (1982)
passou em El Helicóide dois anos, seis meses e oito dias. As forças de
segurança o prenderam em 2 maio de 2014 e mandaram à prisão, sob acusação de
ligação, nunca provada, às provocações durante as manifestações antigovernamentais
daquele ano.
“Todo
este tempo eu estava na cela, chamada de “pequeno inferno” – conta Montilla, um
funcionário do estado de Táchira e membro do partido de oposição Voluntad Popular. –
Na cela 3 x 5 metros estavam detidas 22 pessoas. Nós comíamos lá, dormíamos ali,
tomávamos o banhado lá. Nós fomos torturados pela luz ofuscante branca”.
Como
explica Montilla, o edifício é gradualmente reconstruído para abrigar mais
prisioneiros: “No princípio havia apenas três celas. O resto do espaço era ocupado
pela administração. Com o tempo, as instalações administrativas foram
convertidas em celas de tortura e outro no qual os prisioneiros foram
espancados com choques elétricos ou penduradas para obriga-los à falar”.
No
relatório da organização de direitos humanos Foro
Penal, intitulado “As repressões do governo venezuelano de janeiro de 2014 à
junho de 2016”, são descritos 145 casos de tortura e tratamento desumano de
prisioneiros, na maioria dos casos por parte dos funcionários de SEBIN e dos
militares da Guarda Nacional da Venezuela.
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