domingo, dezembro 03, 2017

A morte dos Romanov, igreja ortodoxa russa e a suposta culpa dos judeus

© MLADEN ANTONOV / AFP / Getty Images
A Rússia vai investigar se o czar Nicolau II e a sua família foram mortos num ritual judaico. A teoria é tão velha como absurda, e já tinha sido rejeitada oficialmente pelas autoridades russas nos anos 1990. Mas o gabinete do procurador-geral vai voltar a explorá-la, por iniciativa da Igreja Ortodoxa Russa (IOR), que em 2000 declarou santos Nicolau II, a sua esposa e os seus cinco filhos, todos executados em 1918.

por: Luís M. Faria, Expresso

“Levamos a teoria do assassínio um ritual muito a sério”, diz o bispo Tikhon Shevkunov, confessor pessoal do presidente Vladimir Putin. O bispo exigiu que as alegações fossem “substanciadas e provadas” através de uma “avaliação psicológica e histórica”, notando que o tanto o líder dos assassinos [Iakov Iourovski] como o homem que lhe deu a ordem [Iakov Sverdlov] eram judeus. O bispo não referiu o nome do principal responsável, Lenine, sem cuja aprovação as execuções jamais teriam acontecido [por exemplo, em 9 de abril de 1935, Trotsky transcreveu no seu diário pessoal (não destinado ao público) a alegada conversa com Sverdlov, em que este tinha lhe dito que a decisão de eliminar fisicamente czar Nicolau II e toda a sua família foi tomada pelo Lenine].
A imagem de Nicolau II e da sua família presente na Catedral do Sangue Derramado, em Ecaterimburgo, Rússia, erigida no exato local onde os bolcheviques executaram o czar, a sua família e mais 4 pessoas que desejaram acompanhar até o fim a família real, em 1918, pondo fim à dinastia dos Romanov | MLADEN ANTONOV / AFP / GETTY IMAGES
Além do bispo Tikhon, outros responsáveis da igreja afirmaram-se igualmente convencidos da teoria. Numa altura em que o governo russo tem uma aliança estratégica com a Igreja Ortodoxa e o poder judicial cumpre ordens do Kremlin, não surpreende que um membro da comissão de investigação estatal sublinhe a necessidade de “resolver questões sobre se o assassínio da família Romanov teve uma possível componente ritual”.

O velho libelo de sangue
Ler mais sobre a deputada e ex-procuradora
Uma deputada [da Duma russa, a ex-procuradora ucraniana Natália Poklonskaya] pró-Putin também chamou à execução dos Romanov “um terrível assassínio ritual”, acrescentando: “Muitas pessoas têm medo de falar disso, mas toda a gente sabe que aconteceu. É maligno”. Uma das provas invocadas é que, no pelotão de fuzilamento que matou os Romanov, cada membro tinha um alvo destinado, mas todos quiseram disparar contra o czar, tendo o líder do pelotão supostamente explicado que eles encaravam o ato como um ritual.


Representantes judaicos no país reagiram com indignação. Lembrando a longa e infame tradição histórica do libelo (ou calúnia) de sangue, que justificou de massacres de judeus ao longo dos séculos – dizia-se que os judeus matavam crianças para usar o sangue delas na fabricação de pão –, o presidente da Federação das Comunidades Judaicas [russas], Alexander Boroda, afirmou que era lamentável tratar ideias desse tipo como merecedoras de uma investigação séria.


A ideia de que a revolução bolchevique foi obra dos judeus foi partilhada por muita gente [desde os emigrantes monárquicos russos que fugiram da Rússia após o golpe comunista de 1917], passando aos fascistas e os nazis [...] A presença de vários intelectuais judeus entre os líderes bolcheviques – o mais proeminente dos quais Trotsky – alimentou essa teoria conspirativa durante bastante tempo. E nem as sucessivas perseguições lançadas por Estaline contra os judeus conseguiram destruí-la.
Ler mais sobre a perseguição dos judeus na URSS

Bónus


Quando regimes autoritários, como é o caso daquele que hoje impera na Rússia, começam a ter problemas com a sua estabilidade interna ou externa, tentam sempre arranjar inimigos dentro e fora do país. No caso do “czar” Vladimir Putin, já necessita de ressuscitar temas e métodos claramente medievais.

por: José Milhazes, Observador.pt

É verdade que nem o bispo ortodoxo, que os órgãos de informação russos dizem ser o “confessor” de Putin, nem Marina Molodtzova [Comité de Investigação] pronunciaram a palavra “judeus”, mas qualquer cidadão russo minimamente informado compreende que ele se refere a esse povo [...]

À medida que se vai aproximando a data das eleições presidenciais russas, marcadas para Março de 2018, a propaganda tenta apresentar o Presidente Putin como o salvador da Rússia e do mundo face aos “inimigos externos e internos”, o que tem levado também o Parlamento a aprovar novas medidas contra os órgãos de comunicação estrangeiros, a pretexto de evitar “ingerências externas” no escrutínio.

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