Historiador
britânico Orlando Figes desvenda a
trajetória de um casal moscovita de origem ucraniana cujo amor sobreviveu à II
G.M. e à um campo de concentração soviético. Por quase dez anos, Svetlana e Lev
Mishenko se comunicaram apenas por cartas.
No
ano de 2007, vários baús abarrotados chegaram ao escritório moscovita da
organização de direitos humanos Memorial. Dentro deles estavam documentos,
fotos, notas e diários – o legado de um casal da capital russa. Num baú
separado estavam 1.246 cartas firmemente amarradas e empacotadas, numeradas e
marcadas com precisão – a primeira, de meados de 1946, a última, de fins de
1954.
Uma
análise mais detalhada constatou que se tratava de uma incrível descoberta: a
correspondência entre um prisioneiro do GULAG, um dos campos de trabalhos
forçados no norte da antiga União Soviética, e sua namorada residente em Moscovo.
Para a ONG Memorial, que se dedica ao resgate crítico do passado estalinista, e
para o historiador britânico Orlando Figes, que passava uma estada de pesquisas
na metrópole russa, foi uma sensação. E o prelúdio de uma ampla pesquisa, que
resultou num livro: um livro sobre a história de Sveta e Lev.
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Just
send me Word: A True Story of Love and Survival in the GULAG (infelizmente sem a
edição portuguesa/brasileira) foi lançado em 2012. O livro de Figes fornece uma
visão autêntica, imediata e muito pessoal do GULAG visto de dentro, como também
da vida quotidiana sob o governo de Estaline. O livro se lê como um romance,
baseados em fatos históricos, a troca de cartas e longas entrevistas, que o
autor realizou com o casal a partir de 2007.
Amor
juvenil na era Estaline
Svetlana Ivanova |
Sveta
e Lev se conheceram em setembro de 1935, quando tinham ambos 18 anos e
estudavam na Faculdade de Física, uma instituição de excelência que pesquisava
também a mando dos militares soviéticos. Após difíceis tempos económicos, naquela
época o dia a dia em Moscovo reservava primeiros alívios e pequenos prazeres.
Mas Estalinу
governava o país, conflitos ideológicos ofuscavam o trabalho no instituto e,
secretamente, os apoiadores do ditador já preparavam listas de prisão.
Ainda
faltavam dois anos para o «Grande
Terror», que vitimou ao
menos 1,3 milhão dos chamados “inimigos do povo”. Entre eles, muitos
cientistas. Consciência política, educação ideológica e formação militar
pertenciam ao programa de estudantes de excelência como Sveta e Lev. Os dois se
tornaram amantes inseparáveis.
Já
antes do fim de seus estudos, Lev envolveu-se em projetos científicos, uma
carreira universitária anunciava-se. Com o diploma universitário na mão, ele
partiu com colegas para uma excursão ao Cáucaso.
Virada
dramática
Lev Mishenko |
De
forma surpreendente, sucede-se no mesmo mês o ataque das forças de Hitler à
União Soviética, um ataque violento ao qual as forças soviéticas ficaram
expostas quase sem defesas. Lev inscreveu-se como voluntário no front. Apenas
algumas vezes, ele pôde ir a Moscovo para ver Sveta. Pouco tempo depois, já se
encontrava num campo de prisioneiros alemães, foi deportado para Alemanha e
submetido aos trabalhos forçados.
Na
universidade, o jovem físico havia aprendido bem o alemão e, logo, foi obrigado
a trabalhar como tradutor numa grande zona industrial com campos de
prisioneiros, em Dresden. Uma tentativa de fuga não funcionou, seguiu-se então
a detenção e, finalmente, o campo de concentração de Buchenwald.
Em
abril de 1945, Lev foi forçado a empreender a chamada “marcha da morte”. Ele
sobreviveu e, após a guerra, foi levado à zona de ocupação soviética na
Alemanha. Ele recusou uma oferta de trabalho como físico nos Estados Unidos.
Ele queria rever Sveta e sua família.
No
entanto, os que retornavam da Alemanha eram recebidos de forma nem um pouco
cordial pelas autoridades soviéticas. Pelo contrário, Lev foi preso sob a
acusação de colaborar com os alemães e, mais tarde, condenado por traição a dez
anos de internação num campo de prisioneiros. O processo durou 20 minutos. Ele
foi então deportado para o norte da União Soviética, o destino era o campo de
trabalhos forçados de Pechora.
No
inverno, dominam ali temperaturas de -45°C negativos, o rio permanece congelado
nove meses por ano. Os detentos viviam em barracas e, desde as primeiras horas
da manhã, tinham de fazer turnos de 12 horas de trabalho duro no complexo
madeireiro. A alimentação era ruim, havia chá, mingau aguado e 600 gramas de
pão por dia – caso a meta fosse cumprida. Os conhecimentos físicos de Lev o
ajudaram logo a conseguir uma melhor posição, ele foi designado para a usina de
força do complexo e trabalhou como mecânico do “grupo elétrico”.
Vida
difícil em Moscovo
Sveta
não suspeitava de nada disso. Ela presenciou o bombardeio de Moscovo, a
evacuação da universidade, a transferência de seu instituto para a Ásia
Central. Ela terminou seus estudos universitários e trabalhava como física industrial
num laboratório de testes, que também servia à indústria bélica soviética.
A
guerra então chegou ao fim. Mas o quotidiano na capital soviética permaneceu
difícil. A polícia secreta de Estaline e uma abrangente burocracia colocavam as
pessoas sob pressão, os alimentos eram racionados, e era difícil conseguir uma
habitação. Sveta já tinha perdido todas as esperanças de rever Lev. De repente,
ela ficou sabendo, de forma indireta, que seu namorado ainda estava vivo.
Em
12 de julho de 1946, Sveta escreveu sua primeira carta ao campo Pechora. Lev
lhe respondeu em 9 de agosto. Foi o início de uma correspondência de quase dez
anos. Sveta não enviou somente cartas, mas também pacotes com medicamentos,
alimentos, livros – ainda que ali, como em todo o GULAG, houvesse uma censura
rigorosa.
O
jovem casal teve sorte, havia ajudantes que contrabandeavam as cartas para
dentro e fora do GULAG, pois o campo de trabalhos forçados era cercado por um
complexo industrial, que ocupava os chamados “trabalhadores livres”. Ali se
encontravam pessoas que ajudaram Lev e Sveta.
Cartas
contrabandeadas
São
cartas emocionantes, em parte chocantes aquelas que Figes documentou em seu
livro, não por serem cheias de drama, pelo contrário: os amantes pesavam suas
palavras, formulavam com muito cuidado, utilizavam muitas vezes eufemismos ou
códigos – para ambos, sua correspondência secreta era algo muito perigoso. Lev
descrevia os problemas da vida no campo forçado: o frio e o isolamento, a
humilhação, mas também as amizades que surgiram em Pechora.
Percebe-se,
muitas vezes, que Lev retratava a situação de forma antes reconfortante. Sveta
escrevia sobre seu trabalho, o cotidiano em Moscovo, sua família. Algumas vezes
saudosamente – mas sem sentimentalismo.
“Essas
cartas não são nada mais que cartas cheias de amor, apesar de a palavra 'amor'
aparecer só raramente. Elas foram escritas para encorajar Lev a manter sua
vontade de viver, para lhe dar esperança. Pois essa esperança o mantinha vivo”,
disse Figes durante um recital em Berlim. “Há muita autocensura nas cartas. Por
medo, por precaução, eles não queriam causar problemas um ao outro, eles se
protegiam mutuamente – eles não sabiam se iriam se ver novamente”.
Viagens
proibidas e nova esperança
Quatro
vezes em dez anos, aconteceu o improvável: Sveta aproveitou suas viagens a
trabalho e viajou, sem permissão e por caminhos aventurosos, para Pechora.
Foram viagens exaustivas, com vários dias de duração, em trens superlotados,
viagens feitas ilegalmente, sem os documentos necessários e com uma bagagem
pesada. “Algo assombroso sob as circunstâncias de então e muito perigoso”,
disse o historiador. Isso foi possível não somente através da coragem
extraordinária da jovem, mas também através da ajuda generosa de pessoas na “zona
livre”. Sveta pôde encontrar Lev por quatro vezes. Foram encontros dolorosos e
muito difíceis.
Com
a morte de Stálin, em 1953, cresceu a esperança de uma anistia entre os
prisioneiros do Gulag. Mas Lev teve que esperar. Quando finalmente chegou a
hora, surgiram novas e irritantes questões – também expostas na correspondência
de ambos. Onde ele iria morar e trabalhar? As portas de Moscovo continuaram
fechadas para ele. Para antigos prisioneiros, a capital russa era um tabu.
Procedimentos burocráticos tornavam a reintegração, a procura por trabalho e
moradia difíceis naquela província. Após anos de separação, o casal não iria
morar junto. Lev foi liberado em 17 de julho de 1954. Por bom comportamento,
ele foi presenteado com alguns meses.
Após
viver alguns meses num vilarejo, Lev teve sorte, mais uma vez. Através de um
conhecido em Moscovo, ele conseguiu um trabalho como tradutor de textos
estrangeiros. A princípio, Sveta transportava os textos para lá e para cá. No
final de 1954, ele passou a morar ilegalmente com Sveta e sua família na
capital russa. Mais uma vez, era um empreendimento perigoso. Caso fosse
descoberto, ele enfrentaria a inevitável ameaça de voltar ao campo de
prisioneiros.
Em
1955, no contexto da visita do então chanceler federal alemão Konrad Adenauer,
foi concedida anistia para soldados acusados de colaborar com os alemães. Um
passo importante para Lev. Em setembro do mesmo ano, ele e Sveta se casaram.
Eles tinham então 38 anos de idade. Um ano depois, nasceu sua filha Anastasia,
em 1957, o filho Nikita. Seu casamento durou até que a morte os separasse. Lev
faleceu em 2008. Sveta, em 2010.
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