Os
centros de artes marciais onde se ensina a técnica systema (tácticas ofensivas
das forças especiais russas) multiplicaram-se no Ocidente e estão a ser usadas
para criar “células adormecidas” ao serviço do Kremlin, dizem os especialistas.
Os
serviços de espionagem russos estão a usar clubes de artes marciais para
recrutar potenciais desordeiros na Alemanha e noutros países da União Europeia,
alertam especialistas em segurança. Acrescentam que o número de clubes é
superior ao que se previra e que as “células adormecidas” podem organizar
provocações violentas na véspera das eleições alemãs de Setembro.
Os
clubes de artes marciais onde se aprende um treino de combate chamado systema
(usado pelas forças espeicias russas), têm todos ligações “directas ou
indirectas” à agência de espionagem militar GRU ou aos serviços de espionagem
interna FSB, de acordo com Dmitrij
Chmelnizki, um académico residente em Berlim que estuda a espionagem russa.
Chmelnizki
disse que o GRU estava a utilizar estes clubes para recrutar agentes no
Ocidente, tal como costumava fazer quando tinha bases na antiga Alemanha de
Leste, durante a Guerra Fria.
A
sua investigação descobriu 63 clubes systema na Alemanha e várias dúzias
noutros estados europeus, nos Balcãs ocidentais e na América do Norte.
Muitos
destes clubes gabavam-se publicamente de terem ligações às forças especiais
russas e usavam insígnias do GRU ou do FSB, como imagens de morcegos ou de S.
Jorge.
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Emblema do Systema München: junção dos elementos gráficos do GRU e do FSB |
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“Nada
disto é segredo para as autoridades alemãs, espero eu”, disse Chmelnizki.
O
académico de 63 anos fugiu da Rússia para a Alemanha ocidental em 1987, depois
de ser julgado em tribunal por fazer investigação sobre o KGB (o antecessor do
FSB).
Chmelnizki
realizou a sua investigação sobre os clubes systema usando fontes abertas na
Internet. Também colaborou com Viktor Suvorov, um antigo agente do GRU que
esteve colocado em Genebra, na Suíça, durante a Guerra Fria, antes de se mudar
para o Reino Unido.
Chmelnizki
disse ao euobserver que, com base numa estimativa — “aproximadamente três a
cinco agentes, em média, para um grupo de treino” —, os 63 clubes na Alemanha
significam que a “quinta coluna” do GRU pode contar com até 315 recrutas.
De
acordo com a doutrina do GRU, estes agentes podem ser usados para atacar alvos
como bases militares ou aeroportos civis no caso de estalar uma guerra com a
NATO, mas também podem receber ordens para criar “terror geral na retaguarda do
inimigo” ou “um ambiente de suspeita, insegurança e medo” na população de um
país inimigo em tempos de paz.
“Estão
a organizar células adormecidas de combate”, disse Chmelnizki.
Fazendo
a antevisão das eleições alemãs de Setembro, o académico disse que os agentes
russos podem tentar começar um ciclo de violência racista antes da votação.
“Podem ser usados para destabilizar a situação, por exemplo, instigando a
violência durante manifestações contra o governo ou atirando cocktails molotov
contra mesquita ou abrigo de migrantes”, explicou.
Chmelnizki
disse que a rede de escolas de artes marciais Systema Wolf tem um “interesse
particular” pois “está a desenvolver-se muito depressa” na Europa.
Nos
últimos sete anos, abriu sucursais na Alemanha, Grécia, Hungria, Itália, Sérvia
e Suíça e criou um ramo alemão dos Lobos Nocturnos, um gangue de motoqueiros
russo cujo líder é amigo do Presidente Vladimir Putin.
Chmelnizki
disse que a escola Systema RMA também é interessante porque parece ter como
alvo recrutas vindos de dentro dos serviços de segurança alemães.
O
académico assinalou que cinco alunos deste clube em Bona pertencem à polícia
especial alemã, por exemplo.
Chmelnizki
disse que queria falar publicamente porque se sente inseguro e porque a
publicidade pode ajudar a protegê-lo. “Até agora, não recebi qualquer ameaça
clara, mas sei com quem estou a lidar”, disse ao euobserver. “O GRU sente-se
tanto em casa na Alemanha unida como se sentia na antiga URSS”, afirmou.
Uma
investigação anterior realizada por um jornalista alemão, Boris Reitschuster, e
publicada no ano passado, já dizia que o GRU estava a usar clubes systema para
recrutar agentes.
O
trabalho citou um relatório confidencial de um serviço de espionagem ocidental,
que diz que o GRU tinha recrutado entre 250 e 300 agentes na Alemanha e que o
serviço diplomático tinha ficado surpreendido por as autoridades alemãs não
terem feito nada para o impedir.
Um
trabalho anterior da revista alemã Focus disse que havia clubes systema com
ligações ao GRU em 30 cidades alemãs e que o BfV, o serviço de espionagem
interna alemão, os via como uma ameaça de segurança do país.
Um
documentário recente do canal ZDF na Alemanha também fez um alerta relativo aos
agentes tchetchenos. Este documentário citava um dos agentes veterano do FSB
que tinha deixado o serviço em 2008 e que afirmou que o FSB tinha usado clubes
de artes marciais na Сhechénia
— uma região autónoma russa — para recrutar homens que mais tarde enviou para a
Alemanha, fazendo-se passar por refugiados. Os “agentes adormecidos” chechenos
podiam “receber qualquer tipo de ordem” no futuro, disse o agente do FSB, que pediu
para manter o anonimato.
O
euobserver contactou a maior escola systema, a Systema Ryabko, para obter um
comentário sobre os relatórios de Chmelnizki e Reitschuster. A escola respondeu
com um e-mail, enviado da sua sede em Toronto, no Canadá, sem incluir o nome do
remetente: “As alegações que ouviram são fruto da imaginação maldosa de alguém
e são completamente falsas.”
Eleições
alemãs
A
quatro meses das eleições alemãs, o GRU já foi acusado de tentar interferir no
resultado, através de ataques informáticos a deputados alemães.
“Reconhecemos
isto como uma campanha dirigida a partir da Rússia”, disse Hans-Georg Massen, o
director do BfV, numa conferência na cidade alemã de Potsdam, a 5 de Maio. “Se
eles [usam o material pirateado] ou não, isso é uma decisão política... que
presumo que será tomada no Kremlin”, acrescentou.
No
entanto, os serviços de espionagem e da polícia alemães recusaram dizer ao
euobserver se pensavam que os serviços de espionagem russos representavam uma
ameaça física, bem como digital.
“Não
divulgamos os nossos conceitos de segurança”, declarou um porta-voz da polícia
de Berlim.
Stefan
Meister, um especialista alemão em Rússia, disse que os serviços de espionagem
russos estavam a atacar a Alemanha como parte de uma campanha mais alargada
anti-UE, mas afirmou que é improvável o Kremlin ir além da propaganda e de
operações informáticas.
Meister,
do Conselho Alemão de Relações Externas — um think tank sediado em Berlim —
disse ao euobserver que o Estado-Maior e os serviços de espionagem da Rússia
tinham começado a discutir formas de combater a influência ocidental depois dos
protestos na Rússia contra Putin, em 2011 e 2012.
Meister
afirmou que Putin, que dirigiu o FSB, se sentiu “atacado” pelo Ocidente — o
líder russo culpou-o de organizar as manifestações.
“O
Kremlin discutiu formas de retaliar, de interferir na nossa sociedade, por
exemplo manipulando o debate público ou explorando as fraquezas da União
Europeia para incapacitar a UE,” disse Meister.
Este
também afirmou que a Alemanha era um “alvo” porque tinha apoiado as sanções da
União Europeia à Rússia e porque o país é vital para a estabilidade económica e
política do bloco.
Meister,
que participou no documentário da ZDF, acrescentou que havia “especulação” em
“círculos de especialistas” na Alemanha que Putin ou Ramzan Kadirov (o
presidente da Chéchénia) podiam usar agentes chechenos para “influenciar a
comunidade muçulmana na Europa e apoiá-los na organização de ataques
terroristas”. Mas acrescentou: “Não é assim que operam as forças de segurança
russas. Eles querem enfraquecer o sistema [alemão], mostrar as suas fraquezas,
mas não querem organizar uma espécie de golpe.”
Havia
“pânico e exagero” quanto ao que “os russos seriam capazes” de fazer, disse
ele.
Contudo,
outro especialista em Rússia discordou.
Eerik
Kross, que costumava caçar espiões russos quando dirigia o serviço de segurança
da Estónia (o Kapo), entre 1995 e 2000, disse que uma manifestação contra o
governo em Berlim, realizada no ano passado, já “mostrava as marcas” de uma
“operação especial” da espionagem russa, concebida para influenciar a política
alemã.
A
Convenção Internacional de Germano-Russos, um grupo sediado em Berlim que nega
ter ligações ao Kremlin, colocou 700 homens e mulheres nas ruas junto do
gabinete da chanceler Angela Merkel, a 23 de Janeiro do ano passado. O grupo
chamou extremistas anti-muçulmanos e neo-nazis para se juntarem a eles, através
do Facebook.
Realizou
a manifestação em conjunto com uma campanha de propaganda patrocinada pelo
Kremlin sobre alegações falsas de que uma rapariga russa tinha sido violada por
migrantes.
“Sistemático,
agressivo”
Além
da Alemanha, a investigação de Chmelnizki revelou que os clubes de artes
marciais com ligações ao GRU e ao FSB também cresceram como cogumelos noutros
locais da Europa.
Chmelnizki
afirmou que havia nove escolas tipo systema cujos fundadores eram “todos
agentes do GRU ou do KGB-FSB” e cuja expansão “intensa” no estrangeiro nos
últimos dez anos “não tinha qualquer explicação natural visível.”
Esta
expansão parecia ser “uma operação de larga escala bem planeada dos serviços
secretos, com financiamento poderoso do governo”, disse.
A
escola Systema Ryabko, por exemplo, tem sucursais na Áustria, Bélgica,
República Checa, Estónia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letónia,
Luxemburgo, Países Baixos, Polónia, Portugal, Roménia, Eslováquia, Eslovénia,
Espanha, Suécia e Reino Unido, bem como na Alemanha.
A
escola Systema Siberian Cossack tem alunos na Áustria, Croácia, República
Checa, Finlândia, França, Hungria, Itália, Eslováquia, Eslovénia, Espanha e
Reino Unido.
Outra
escola systema associada a Vadim Starov — que Chmelnizki descreveu como “um
agente do GRU que está reformado apenas formalmente” — tem sucursais no Chipre,
Grécia e Itália e era a “mais óbvia” no seu uso de insígnias e slogans do GRU,
disse o académico.
Kross,
o antigo chefe do Kapo da Estónia, disse que as autoridades da União Europeia
deviam prestar mais atenção à ameaça física que a espionagem russa representa.
Indicou que, recentemente, agentes do GRU forneceram treino de combate a um
grupo neo-nazi na Hungria — a Frente Nacional Húngara — e a grupos semelhantes
na Eslováquia (os Recrutas Eslovacos e o Movimento de Renascimento Eslovaco).
Também
disse que o GRU tinha tentado organizar uma violenta acção anti-NATO no
Montenegro, no ano passado.
Analisando
os alegados ataques informáticos do GRU às eleições alemãs, Kross disse que as
operações especiais eram mais “agressivas” e mais “perigosas” pela sua
natureza. “Um ataque informático pode causar muitos danos, mas uma operação
especial exige colocar uma equipa de operacionais clandestinos no país-alvo”,
explicou.
“O
uso recente por parte da Rússia de operações especiais na Europa parece ser
mais do que apenas uma lista de incidentes aleatórios. Há um aumento
sistemático e isto ocorre não só nos Balcãs ocidentais, mas também no resto da
Europa”, disse Kross.
Mark
Galeotti, um especialista britânico em Rússia, contou ao euobserver que a
espionagem russa por vezes entregava as operações na Europa a grupos russos de
crime organizado, de modo a esconder o seu envolvimento. “Há provas de que
alguns grupos de crime organizado de base russa são por vezes contratados pela
espionagem russa para realizar certas acções”, disse.
Galeotti,
do Instituto de Relações Internacionais de Praga, também afirmou num relatório
publicado em Abril que, até então, os criminosos russos na Alemanha realizavam
tarefas “mundanas” para espiões russos, como “vigilância simples” ou entrega de
“materiais ou mensagens”.
Relatou
também que o GRU e o FSB usa a máfia russa para “angariar fundos para acções
políticas” activas [subornos] na Europa para não terem “impressões digitais” russas”.
Apontando
o treino de combate do GRU na Hungria e ao alegado golpe do GRU no Montenegro,
Galeotti disse que a máfia também pode ajudar a “quinta coluna” do Kremlin na
Europa a realizar ataques mais sérios, em caso de hostilidades.
“A
capacidade da máfia russa fazer contrabando de armas e equipamento militar”
para dentro na UE será “particularmente útil para o Kremlin”, disse Galeotti.
A
lista de Putin
Chmelnizki
não é o único inimigo de Putin a viver na Europa que não se sente protegido
pela fronteira da UE ou da NATO.
Egmont
Koch, que realizou o documentário da ZDF sobre os agentes chechenos, disse ao
euobserver que o antigo agente do FSB com quem falou quis permanecer no
anonimato porque tinha medo de represálias.
Uma
lista de homicídios recentes, alegadamente cometidos pelo Kremlin em território
ocidental, pode incluir Alexander Litvinenko, um desertor do FSB que foi
envenenado no Reino Unido em 2006 e Alexander Peripilichny, um delator anti-FSB
que morreu subitamente no Reino Unido em 2012, entre outros.
As
mortes súbitas na Alemanha, em 2015, de dois deputados ligados às relações com
a Rússia — Philip Missfelder e Andreas Schokenhoff — também inspiraram teorias
da conspiração.
Meister
conta que conhecia Missfelder e que o deputado tinha problemas de saúde, mas
disse que alguns dos seus colegas consideraram que as duas mortes “não podiam
ser normais”.
Mikhail
Khodorkovsky, um antigo director de petróleo russo que teve desavenças com
Putin e que fugiu para o Reino Unido depois de sair da prisão, também disse que
os países da UE deviam prestar mais atenção às ameaças físicas que a espionagem
russa representa.
Khodorkovsky,
tal como Galeotti, diz que se o regime russo o quisesse matar, provavelmente
encarregaria criminosos chechenos na Áustria de o fazer. E acrescenta que os
serviços de espionagem russos têm uma lista de pessoas na Europa “cuja morte
seria agradável para Putin e o seu círculo.”
“A
lista não é assim tão curta. Também não são centenas de pessoas, mas, mesmo que
matassem apenas dez pessoas, isso faria todos os outros reflectir”, disse
Khodorkovsky, referindo-se à intimidação dos adversários de Putin no Ocidente.
“O
Ocidente parou de pensar nas operações especiais russas há uns 30 anos, mas,
hoje em dia, precisa de compreender e ver esta ameaça de maneira diferente”,
afirmou.
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