Um dos típicos marqueteiros semiclandestinos da época: o atual poeta russo de contestação Orlusha (Andrey Orlov) |
Fartsovka era o termo de gíria
soviética para descrever a compra e revenda dos bens ocidentais, de difícil
acesso ou mesmo inacessíveis ao homem comum soviético. A esmagadora maioria dos
objetos de oferta e demanda da fartsovka era composta pela roupa e acessórios,
mas também pela música (LP, fitas de áudio, bobinas), cosméticos, utensílios
domésticos, livros e bebidas alcoólicas.
A venda semiclandestina dos itens na principal loja universal de Moscovo (GUM) |
Fartsovka
(fartsa) era um dos importantes tipos da economia paralela soviética das décadas
de 1950-1980, uma das profissões perigosas e difíceis, mas interessantes e
divertidas da URSS. Consistia em compra e venda semi-legal de produtos e coisas
de fabrico ocidental (e não só).
Um dos principais locais de fartsovka em Moscovo, hotel "Rossija", construído em 1967 |
Os
operadores deste comércio eram conhecidos como fartsovshiki que compravam e
vendiam roupas e calçado ocidental, mas também discos LP originais dos grupos ocidentais,
cigarros, souvenirs, bijuteria, chicletes e até mesmo os sacos plásticos com os
logótipos de brands ocidentais [um saco plástico com logo de “Marlboro” que
custava no ocidente 0,2 dólares, era facilmente revendido na URSS por 5 rublos,
ou seja 8,5 dólares por unidade (!); qualquer par de jeans era vendido 10 rublos
/ 17 dólares mais caro, caso era embalado num saco plástico com o brand
ocidental estampado].
01.
Não sabe ao certo quando fartsovka começou na URSS, pressuponha-se que o
Festival da Juventude e Estudantes, um evento propagandista comunista,
decorrido em Moscovo em 1957 contribuiu decisivamente para o nascimento do
fenómeno. Os jovens ocidentais ligados aos movimentos de esquerda trouxeram a
URSS muitas coisas simplesmente inacessíveis aos seus pares da URSS na época: desde
os jeans às gravatas, de lápis até os cigarros ocidentais.
A
URSS sentia uma grande lacuna na produção dos objetos da dita “economia popular”,
mas mesmo assim comprava pouquíssimos bens do género no Ocidente, “economizando
a moeda forte”, na explicação oficial. Os bens similares produzidos na União
Soviética (se é que as havia) não possuíam a mesma elegância e perdiam em todos
os aspectos aos produtos ocidentais. Ao mesmo tempo, na União Soviética, havia
muita gente que queria se vestir de forma moderna e elegante, e o nicho de
mercado livre foi ocupada pelos marqueteiros livres (fartsovshiki).
02.
Fartsovshiki conseguiam de várias maneiras os produtos ocidentais, em seguida, os
vendiam aos cidadãos soviéticos. Quase todos os comerciantes do mercado negro tinham
um círculo de clientes fieis, composto por stilyagi e hippies, ou apenas os cidadãos que
queriam comprar alguma peça de roupa elegante e moderna.
Como
eram conseguidos os bens ocidentais? Havia fontes diferentes: fartsovka nos
hotéis e nos outros locais junto aos estrangeiros. Na compra, venda e troca dos bens estrangeiros
estavam intimamente envolvidos os funcionários de hotéis e os guias turísticos.
Em segundo lugar – a fartsovka efetuada pelos camionistas/caminhoneiros e marinheiros
que tinham o acesso aos portos dos países ocidentais. O primeiro tipo de
fartsovka foi mais desenvolvido nas grandes cidades soviéticas como Moscovo,
Leninegrado ou Kyiv, o segundo – nas cidades com acesso ao mar, como, por
exemplo, Vladivostok ou Odessa.
Assim vestiam-se stilyagi soviéticos na década de 1960 (a imagem contemporânea do filme russo "Stilyagi" de 2008) |
03.
Que produtos eram populares neste comércio e o que recebiam os estrangeiros em
troca? Da popularidade excepcional gozavam os jeans e sapatos de marca
(especialmente na plataforma de “borracha virgem” ou de saltos), sapatilhas/tênis
(principalmente “Adidas” ou “Nike”), todas as outras roupas de marca, jóias, LP´s,
chicletes, cigarros e bebidas alcoólicas. Os estrangeiros recebiam em troca as
latas e frascos de caviar vermelho e preto, os souvenirs de madeira, os rublos metálicos
de edições limitadas, vodka e conhaque soviético. Entre os estrangeiros também
eram bastante populares as ícones ortodoxas [negócio muitíssimo lucrativo, mas
perigoso, pois podia ser sancionado com a real pena prisional], insígnias com a
simbologia soviética ou com temas de JO de Moscovo-1980.
Nos
anos finais da União Soviética no comércio de fartsovka do Extremo Oriente
russo também se tornaram populares os electrodomésticos e mais tarde as
viaturas japoneses e sul-coreanos, que marinheiros maciçamente adquiriam nas
cidades portuárias em troca dos bens soviéticos acima mencionados. Uma outra
parte dos produtos “ocidentais” entrava na URSS via Afeganistão, trazidos pelos
militares e pelo pessoal não combatente soviético (médios, enfermeiras,
professores) para a revenda posterior na URSS. Uma parte dos bens era comprada
nos mercados informais, outras coisas eram simplesmente “conseguidas” como os “troféus
de guerra”, fruto de saques e roubos de aldeias afegãs ou das caravanas dos mujahideens.
04.
Não se sabe ao certo a etimologia da própria palavra fartsovka, uma das
hipóteses sugere que a palavra pode ser derivada do termo “forselschik”, originada
numa frase em inglês, dirigida aos turistas ocidentais: Do you have anything
for sale? (Você tem algo para vender?).
O consumista soviético na clandestinidade: esquivando-se da construção do comunismo |
Os
fartsovshiki tinham a sua própria gíria interessante, parcialmente nascida na
cidade ucraniana de Odessa (um avançado posto de comércio marítimo e do
contrabando) e depois parcialmente adoptada pelos criminosos da década de 1990 –
por exemplo, os dólares americanos eram chamados de “repolho” e “greens”, por
causa da sua cor verde.
Todos os sapatos eram conhecidos como “shuzy” (do inglês shoes); carteira era conhecida como “lopatnic” (possivelmente do finlandês lompakko, a “bolsa”), os itens ocidentais eram chamados de “firmá” (item de marca/grife), a imitação dos brands era conhecida como “samostrok”. Havia um certo código de honra no meio, vender “samostrok” ou obter a demasiada margem de lucro nos negócios com os clientes regulares era considerado antiético, mas o mesmo era tolerado com os compradores não regulares.
Todos os sapatos eram conhecidos como “shuzy” (do inglês shoes); carteira era conhecida como “lopatnic” (possivelmente do finlandês lompakko, a “bolsa”), os itens ocidentais eram chamados de “firmá” (item de marca/grife), a imitação dos brands era conhecida como “samostrok”. Havia um certo código de honra no meio, vender “samostrok” ou obter a demasiada margem de lucro nos negócios com os clientes regulares era considerado antiético, mas o mesmo era tolerado com os compradores não regulares.
05.
Comércio, empreendedorismo, negócios e quaisquer outras iniciativas
empresariais na União Soviética eram monopolizadas pelo Estado, às pessoas foi
negado o direito de fazer alguma coisa da sua própria escolha, a iniciativa
privada era punida (com algumas raríssimas excepções). A propaganda soviética
tentava, de todas as maneiras possíveis e imaginários denegrir os marqueteiros
do mercado clandestino, usando a propaganda ao estilo de “agora você está
tocando o jazz, mas amanhã venderá a Pátria!”
06.
Por que isso estava acontecendo? Desde os primeiros dias de sua existência, o estado
soviético aboliu a propriedade privada e começou a formar uma classe de pobres
e dependentes cidadãos soviéticos, todos os seus desejos e necessidades eram controlados
pelo Estado; fora do sistema de estado, as pessoas não deviam ter nenhum meio
de subsistência. Segundo a ideia dos criadores do sistema, assim será criado um
novo “povo soviético”, ocupado apenas com os pensamentos não burgueses de
construção do comunismo. Na realidade, os cidadãos soviéticos tiveram que lidar
com as mesmas questões que as pessoas nos países capitalistas, apenas fazê-lo de
uma forma muito mais complicada e difícil. Assim nasceram as coisas específicas
soviéticas, como o deficit permanente das coisas mais básicas, as vendas “à porta
do cavalo” e fartsovka.
"O especulador é pior inimigo!" |
Embora
a fartsovka consistia nas atividades absolutamente legais, aos olhos da
legislação soviética, os marqueteiros eram perseguidos e recebiam as penas de
prisão pela “especulação” ou eram alvos de detenções administrativas devido ao “assédio
aos estrangeiros”, o que, no entanto, não parou o processo de fartsovka, apenas
imputando os riscos previsíveis no preço final das mercadorias, aumentando-o aos
usuários finais.
No
final da década de 1980, nos últimos anos da existência da URSS, os cidadãos soviéticos
foram autorizados viajar para o exterior para “turismo de compras” e fartsovka
começou se dissipar – as mesmas coisas apareceram nos mercados informais e nas
primeiras lojas privadas (legalizadas na URSS em forma de cooperativas). E
depois de 1991 fartsovka desapareceu completamente, pois com a oferta do
mercado, deixou de existir qualquer demanda deste fenómeno.
Fotos
@Internet | Texto @Maxim
Mirovich & [blogue Ucrânia
em África]
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