Facto
1. A história da Crimeia é conhecida pela humanidade tem alguns milénios. A
península da Crimeia fez parte do Império Russo durante 134 anos, da União
Soviética, durante 33 anos e há 63 anos que pertence à Ucrânia soviética e depois independente.
por:
Anatolii Kaval *, Jornal
de Notícias, Portugal
Anteriormente,
durante séculos, dominaram os citas e os cimérios, existiram colónias gregas,
e a Crimeia foi protetorato do Império Romano. Posteriormente, foi conquistada
por godos e hunos, e encontrava-se sob o controlo dos povos turcos otomanos e
antigos búlgaros. Ao longo da Idade Média, pertenceu ao Império Bizantino e ao
Caganato Cazar. Durante cerca de dois séculos, desde meados de século XV até
1783, a Crimeia pertenceu ao Canato de Horda Dourada, formando assim o Canato
de Crimeia, que foi vassalo do Império Otomano.
Durante
mais de três séculos, a Crimeia estivera inteiramente ligada ao povo tártaro [da
Crimeia]. Como se pode verificar, na lista dos pretendentes à península do
ponto de vista histórico, a Rússia não se encontra em primeiro lugar. Porém,
reflexões históricas, em princípio, não têm importância nenhuma na
identificação da pertinência estatal e jurídica da Crimeia.
Em
conformidade com o tratado sobre a criação da Comunidade dos Estados
Independentes (CEI) de 08.12.1991, o Tratado de Amizade, Cooperação e Parceria
entre a Federação Russa e a Ucrânia de 31.05.1997, o tratado entre a Federação
Russa e a Ucrânia sobre a fronteira estatal entre estes os dois países de
28.12.2003, a Rússia considerou e garantiu a soberania e integridade
territorial da Ucrânia, incluindo a República Autónoma da Crimeia e a cidade de
Sebastopol. Desde o momento da assinatura e ratificação dos tratados
mencionados, quaisquer referências à rica história da Crimeia, na argumentação
das reclamações territoriais da Rússia, são meros argumentos de especulação.
Facto
2. O caso da transferência da Crimeia da integração da República Soviética
Federativa Socialista da Rússia para a integração da República Socialista
Soviética da Ucrânia, não é o único caso em que as autoridades soviéticas redistribuíram
os territórios entre as repúblicas da União Soviética.
Vale
a pena recordar que, no período entre 1919 e 1928, uma parte dos territórios da
Ucrânia Soviética foi cessionada à Rússia de “livre vontade de forma pouco
voluntária”, nomeadamente no que diz respeito às províncias de Belgorod,
Starodub (concelhos do norte da Guberniya – a principal divisão administrativa
do Império Russo) de Chernihiv, Taganrog e de Donbass Leste. O argumento
fundamental foi o critério nacional e etnográfico, corrigido em certos casos
por indícios de tendências económicas. Isto é, a justificação prende-se com o
facto de serem terras com prevalência de população não ucraniana do ponto de
vista étnico, e que, por essa razão, deveriam ser cedidas à República Soviética
Federativa Socialista da Rússia.
Porém,
como dizem, o que é permitido ao Júpiter, não é permitido ao touro. Quando, em
1925, surgira a questão de transmissão à Ucrânia dos territórios povoados com
ucranianos étnicos, como foi o caso de Slobozhánshchyna do Norte (as partes das
guberniyas de Kursk e Voronezh), o centro soviético esquecera o critério étnico
e nacional. Nessa altura e mais tarde, foram rejeitados todos os requerimentos
das autoridades da Ucrânia Soviética sobre a transferência dos territórios étnicos
ucranianos para a República. Havia muitos territórios étnicos ucranianos como
parte integrante da República Soviética Federativa Socialista da Rússia.
Conforme evidencia o recenseamento de população de 1926, aos territórios
étnicos ucranianos pertenceu não só Slobozhánshchyna do Norte, mas também
Kuban, Stavropillya e outros terrenos.
Facto
3. Em 1954, os dirigentes soviéticos transferiram a Região da Crimeia da
República Soviética Federativa Socialista da Rússia para a República Socialista
Soviética da Ucrânia.
De
acordo com a versão oficial, a cessão foi dedicada ao aniversário dos 300 anos
do Conselho de Pereyaslav (Pereyaslavs'ka Rada – em ucraniano) – a reunião [magna]
comum dos cossacos zaporojianos de 1654, na qual foi aprovada a decisão de
formar uma aliança com o czarado da Moscóvia. A transferêrencia da Crimeia para
a República Socialista Soviética da Ucrânia foi apresentada como símbolo de
amizade entre a Ucrânia e a Rússia. Ainda que, apesar das explicações bonitas e
românticas da propaganda soviética, a verdade era bem diferente.
A
Segunda Guerra Mundial causou na Crimeia uma onda destrutiva, tendo reduzido a
metade a sua população, começando com a deportação em massa dos tártaros, em
maio de 1944 – o chamado ato de genocídio contra os tártaros da Crimeia, pois
mais de 183 milhares de tártaros foram deportados, 46% dos quais faleceram
durante o processo da deportação ou durante os seus primeiros anos da vida no
exílio. Além disso, houve a expulsão dos arménios, checos, búlgaros e gregos da
Crimeia, em junho de 1944, que tornou esta região numa zona despovoada e
economicamente arruinada. A constatação desta realidade é facilmente atestada
através dos dados estatísticos e da Imprensa periódica da Crimeia no período de
1953-1954.
Naquela
altura, a forma mais adequada e eficaz de devolver a vida à região da Crimeia
era transferir a península para a Ucrânia, por causa dos laços económicos,
culturais e políticos antigos. O que foi feito. Contudo, foi exactamente graças
à Ucrânia e aos ucranianos, que a Crimeia se transformou no “sanatório da União
Soviética”, várias vezes reclamado em filmes soviéticos.
Apesar
dos tempos difíceis do pós-guerra, tendo em conta que a República Socialista
Soviética da Ucrânia perdeu cerca de 13 milhões de pessoas, esta ajustou o
funcionamento do setor agrícola da Crimeia, construiu infraestruturas e
estradas, bem como estabeleceu fornecimentos de diversos bens. A Gerência
Ucraniana de Construção Aquática (Ukrvodbud) construiu os reservatórios de água
de Simferopol e da Crimeia Velha, o canal da Crimeia do Norte, resolvendo desta
maneira um dos maiores e mais mórbidos problemas da Crimeia – o aquático. Além
disso, as centrais eléctricas ucranianas abasteceram a Crimeia com energia
eléctrica.
Para
os menos informados, a Crimeia era “o presente do generoso Khrushchov” à
Ucrânia. Para os outros, que tiveram sabedoria e paciência para examinar o
assunto, é absolutamente evidente que a Ucrânia pagou por “este presente” com
os gastos astronómicos do próprio orçamento dedicados ao abastecimento dos
habitantes e renascimento da economia da península devastada.
Facto
4. Existe o mito de que Nikita Khrushchov, o líder soviético daquele tempo, foi
o iniciador da cessão da Crimeia à Ucrânia e "transmitiu a penínsuala aos
companheiros ucranianos ilegalmente por decisão própria". Este mito é
cultivado assiduamente por adeptos da revanche política da União Soviética e
por apologistas de uma ideia imperial da Rússia.
Porém,
isso não tem nada de comum com a realidade.
Sem
excetuar que Khrushchov, como administrador experiente, viu evidentes vantagens
na cessão da Crimeia à “tomada” econômica da República Socialista Soviética da
Ucrânia, na altura de tomar a decisão política não tinha poder suficiente para
decidir sozinho. Apesar de ser eleito secretário-geral do Partido Comunista da
União Soviética (PCUS) em setembro de 1953, depois do “destronamento” de
Beriya, em Moscovo continuaram a governar os partidários mais próximos de Estaline:
Malenkov, Molotov, Voroshylov, Kaganovych e Bulganin. O verdadeiro poder ficava
nas maõs dos “velhos do Kremlin”. Sem o entendimento da necessidade apressada
pelos funcionários do partido, a cessão da Crimeia não occorreria.
No
que se refere à iniciativa formal, ela procedeu de dirigentes do Conselho
Supremo da República Soviética Federativa Socialista da Rússia. Foi justamente
este órgão que sancionou a correspondente decisão e apresentou o requerimento
ao Conselho Supremo da República Soviética Federativa Socialista da Rússia que,
na sua reunião de 19 de fevereiro de 1954, adotou o decreto sobre a “transmissão
da província (oblast) da Crimeia do território da República Soviética
Federativa Socialista da Rússia para ao território da República Socialista
Soviética da Ucrânia”, modificando definitivamente as fronteiras
administrativas e territoriais das duas repúblicas. Os documentos referidos foram
adotados em plena conformidade com a legislação da União Soviética daquele
tempo e formalizados de acordo com as decisões dos órgãos competentes da União.
Isto
confirma que quaisquer acusações a Khrushchov de voluntarismo ou abuso de poder
na cessão da Crimeia à Ucrânia não têm nenhum fundamento.
Facto
5. Os adeptos das ideias separatistas na Crimeia argumentam muitas vezes a sua
posição, dizendo que, no “referendo” de janeiro de 1991, na Crimeia, a maioria
dos seus habitantes votou pelo renascimento da Autonomia da Crimeia como um
estado independente da URSS.
O
Conselho Supremo da RSS da Ucrânia restabeleceu a Autonomia da Crimeia, mas
como parte da Ucrânia. Alguns exclamam: “Os habitantes da Crimeia foram
enganados!”. Só fica por determinar quem é que os enganou... O Comité Regional
do Partido Comunista da Crimeia, dirigido por Mykola Bagrov, ou as autoridades
da República Socialista Soviética da Ucrânia? O primeiro, Mykola Bagrov, sem
normas de legislação (não houve nenhuma lei sobre a execução dos referendos
locais, em princípio) e sem mandato, organizou o questionário, na base do qual
proclamou a criação da República Socialista Soviética da Crimeia, enganando
assim a população. O outro, preocupou-se com as opiniões das pessoas e concedeu
à Crimeia autonomia, enquadrando-a como uma república aliada, segundo as leis
nacionais e as normas da legislação internacional.
A
votação da população da Crimeia no referendo de 1991 foi significativa. No dia
24 de agosto de 1991, segundo a antiga tradição ucraniana, o Conselho Supremo
da Ucrânia proclamou a independência do país. No dia 1 de dezembro de 1991 teve
lugar o primeiro referendo nacional ucraniano onde só foi colocada uma questão:
“Aceitam o ato da independência da Ucrânia, proclamado pelo Conselho Supremo no
dia 24 de agosto de 1991?”. No referendo participaram 84,18% da população
ucraniana, dos quais 90,32% votaram “sim”. Também participaram 67,50% da
população da Crimeia. Pela independência votaram 54,19% da população da
Crimeia. Assim, a povoação da península, juntando-se aos outros ucranianos,
apoiou a criação da Ucrânia independente, reconhecendo-se como parte da nação
ucraniana.
Facto
6. As mudanças radicais na política russa em relação à Ucrânia independente
começaram a aparecer em 1993. Se antes os parlamentos dos dois países abordaram
as questões da Crimeia e da frota do mar Negro de forma bastante razoável,
desde 1993, a situação mudou. O Parlamento russo (Duma) começou de forma lenta
mas a flutuar em direção ao populismo e ao sentimento neoimperial. A 9 de julho
de 1993, o Parlamento russo aprovou a resolução “Sobre o estatuto de Sebastopol”,
proclamando Sebastopol como uma parte da Rússia e a base principal da frota da
Rússia no mar Negro.
Em
resposta, em 14 de julho, o Parlamento ucraniano (Verkhovna Rada) aprovou uma
resolução em que qualificou as ações da Rússia como uma violação do direito
internacional, das obrigações assumidas no âmbito de ONU, OSCE e outras
organizações internacionais, assim como de uma série de acordos bilaterais. A
resolução da Duma foi declarada juridicamente nula. Os EUA e a UE manifestaram
o seu apoio à integridade territorial da Ucrânia e declararam que as
reivindicações territoriais da Rússia em território ucraniano teriam “consequências
terríveis para a estabilidade em toda Europa Oriental”.
É
pouco conhecido, mas é verdade: o Conselho de Segurança da ONU teve um papel
importante na solução da crise. A diplomacia ucraniana enviou um apelo urgente
ao Conselho de Segurança da ONU, que foi discutido na reunião de 21 de julho de
1993. Naquela altura, todos os membros do Conselho, incluindo a Rússia,
apoiaram a declaração do presidente do Conselho de Segurança. O documento
deixou claro que a decisão do Parlamento russo era nula e reafirmou a
integridade territorial da Ucrânia nos termos da Carta das Nações Unidas. É de
salientar que o presidente russo também condenou as ações do Parlamento russo,
classificando-as perante os jornalistas como sendo a sua “vergonha”. Como a
história tem mostrado, Boris Ieltsin foi o primeiro e o último presidente da
Rússia que tinha vergonha da retórica nacionalista e da política agressiva de
seus compatriotas.
Facto
7. Na noite de 26 de fevereiro de 2014, os “homens verdes desconhecidos”
invadiram os edifícios do Parlamento e do Governo da República Autónoma da
Crimeia. De manhã, no dia 27 de fevereiro, todos os meios de comunicação
mundiais mostraram imagens dos deputados da Verkhovna Rada da Crimeia sob os
canos de metralhadoras numa reunião extraordinária para escolher o criminoso
Sergei Aksionov como novo “primeiro-ministro” e declarar um “referendo” sobre a
adesão à Rússia. Em seguida, houve as declarações do presidente russo, Vladimir
Putin, sobre os “grupos de autodefesa da Crimeia” e “uniforme militar comprado
em lojas de Voientorg” [Comércio Militar], sobre a protecção dos interesses dos
falantes da língua russa na Ucrânia, os que de repente se viram sob ameaça.
Três militares russos armados ameaçam o oficial piloto ucraniano Yuliy Mamchur |
Mais
tarde apareceu o documentário “Crimeia. A caminho de casa”, que revelou
detalhes da operação especial da ocupação militar russa da península. Toda esta
campanha informativa baseava-se na data de 22 de fevereiro de 2014, “o dia do
derrube do presidente legítimo da Ucrânia, Yanukovych”.
Foi
alegado que a Rússia não tinha planeado antecipadamente ocupar, invadir ou
apoderar-se de nada e atuava dependendo das circunstâncias “para proteger a
povoação da Crimeia dos combatentes de Setor da Direita”.
Medalha russa "Pelo retorno da Crimeia. 20.02.2014-18.03.2014" |
Mas
há um facto que desmente essa miragem propagandista. Ajudou a faze-lo o próprio
Ministério da Defesa da Federação Russa, que estabeleceu uma medalha para
condecorar os militantes que participaram na operações de ocupação da península
- a medalha “Pelo retorno da Crimeia”. Na parte de trás desta distinção, feita
pelo fabricante de condecorações estatais da Rússia “Lienta, Ltd”, em resposta
ao pedido urgente do Ministério da Defesa, estão indicados a data de início da
operação militar e a data do fim da mesma operação: “20 de fevereiro – 18 de
março de 2014”. O seja, a ocupação da Crimeia foi feita não pela autodefesa
local, mas pelas tropas regulares russas, e começou não no dia 22 de fevereiro,
mas no dia 20. Colocamos este facto, reconhecido pelo Ministério da Defesa da
Federação Russa, ao lado dos acontecimentos e vemos que, a operação da ocupação
da Crimeia, começou quando Victor Yanukovych era ainda o presidente legítimo da
Ucrânia, que apenas no dia seguinte, 21de fevereiro, na presença dos ministros
dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e da Polónia e também do representante
especial do presidente russo, V. Lukin, assinou com os líderes da Oposição o
acordo sobre o ajustamento da crise política. A Rússia já naquela altura
começou a sua agressão, violando o estatuto da ONU e as normas do Direito
internacional; a ocupação da Crimeia começou quando, em Kyiv, na Praça de
Independência e na Rua Instytuska, centenas de manifestantes foram baleados
pelas unidades especiais do Ministério do Interior e dos Serviços de Segurança.
Tais coincidências não existem – a única explicação lógica da fuga precipitada
de V. Yanukovych, juntamente com os membros da família e os seus bens, depois
de alcançar o compromisso com a Oposição era a consciência do começo do
processo irreversível da invasão russa do território da Ucrânia, e o seu
primeiro alvo foi a Crimeia.
A
15 de setembro de 2015, o Parlamento ucraniano – Verkhovna Rada aprovou a lei
685-VIII, que definiu que a data de início da ocupação da Crimeia e de
Sebastopol é 20 de fevereiro de 2014, memorizando a traição do ex-presidente da
Ucrânia, Viktor Yanukovych, e as mentiras dos dirigentes da Federação Russa.
Facto
8. Após o Conselho da Europa e a Comissão de Veneza, em fevereiro de 2014,
criticarem totalmente o projeto da lei federal constitucional 462741-6 da
Federação Russa sobre a alteração da Lei Constitucional Federal sobre “o
procedimento de admissão à Federação Russa e a criação na sua estrutura de um novo
sujeito na Federação Russa”, mais conhecida como a “lei da anexação”, o
instrumento principal de legitimação da ocupação e adesão da Crimeia e Sebastopol
à Rússia tornou-se o “referendo geral da Crimeia”.
As
autoridades russas tentaram dar às suas ações criminosas uma aparência de
legalidade, na esperança de, em circunstâncias favoráveis, poderem “atirar a poeira aos olhos” da comunidade internacional, para
resolverem a questão da Crimeia com vantagem e com perdas mínimas.
A
6 de março de 2014 o “Parlamento controlado/manual da Crimeia” adoptou uma resolução para organizar o “referendo geral” violando
dessa forma o princípio da integridade territorial da Ucrânia e agindo para
além das sus competências. O facto desta violação foi claramente estabelecido
pelo Tribunal Constitucional da Ucrânia, que, na sua sentença de 14 de março,
apontou que esta decisão contradizia a Constituição da Ucrânia, declarando-a
anticonstitucional e obrigando as autoridades da Crimeia a suspender qualquer
atividade de preparação para o referendo.
A
15 de março de 2014, o Verkhovna Rada da Ucrânia decidiu dissolver o Parlamento
da Republica Autónoma da Crimeia, e, como consequência, este último perdeu
qualquer legitimidade. No entanto, totalmente controladas por Moscovo, as
autoridades da Crimeia já não podiam voltar atrás: a 16 de março de 2014 ainda
se realizou o plebiscito, no qual participaram um total de votantes acima de
80%. Em favor da adesão da Crimeia à Rússia votaram supostamente 96,77% dos
votantes, em Sebastopol 95,6%. Estes dados deixaram números astronómicos da “vontade
do povo” na consciência dos sociólogos (de acordo com fontes independentes, a
participação não excedia mais de 30% dos habitantes da Crimeia), e a explicação
das condições e consequências – à consciência dos cientistas políticos, damos
três razões da sua nulidade jurídica. O “referendo geral na Crimeia” era
ilegítimo e não poderia gerir as consequências jurídicas, porque:
–
violou grosseiramente a Constituição da Ucrânia, a Constituição da República
Autónoma da Crimeia, Lei da Ucrânia “Sobre Verkhovna Rada da República Autónoma
da Crimeia” e as disposições de outras leis e regulamentos;
–
contradiz as normas e os princípios básicos do Direito internacional, que são
exibidas no Estatuto da ONU, Estatuto do Conselho da Europa, Ata final da
Reunião de Segurança e Cooperação na Europa (RSCE) de 1975 e outros documentos
finais de RSCE/OSCE, bem como o acordo sobre a fundação da Comunidade dos
Estados Independentes de 1991;
–
as condições da sua organização não são compatíveis com os princípios
democráticos de organização dos referendos, os que sejam elaborados no âmbito
de OSCE e do Conselho da Europa e os que são uma parte integrante dos
princípios e valores destas organizações internacionais.
Não
poderia ser livre a vontade de expressão numa região da Ucrânia que, de facto,
estava sob a ocupação das unidades militares das Forças Armadas Russas. A presença
de formações militares e paramilitares russas no território da Crimeia, fora
dos seus locais de implantação permanente no âmbito do acordo sobre o estatuto
e as condições Frota da Rússia do mar Negro na Ucrânia, comprometeu
profundamente/radicalmente o processo eleitoral democrático. Outros fatores
incomparáveis com a “vontade de expressão livre” da proclamação da Crimeia em “referendo”
são:
–
ausência de quadro jurídico para organização de referendos locais na legislação
da Ucrânia;
–
violações significativas identificadas pelos organismos ucranianos e
internacionais da proteção de direitos humanos nas esferas da liberdade de
expressão e do direito à informação; violação permanente dos direitos dos
jornalistas para exercer a sua atividade profissional, cometidas pelas
autoridades separatistas da Crimeia;
–
demasiado curto prazo para organizar e realizar um referendo. A resolução do
Parlamento da Crimeia sobre a organização do referendo foi aprovada no dia 6 de
março e o mesmo foi realizado no dia 16 de março de 2014. A exponencial “manifestação
da democracia” foi a razão pela qual a data da sua realização foi adiada duas
vezes, de 25 de maio para 30 de março e depois de 30 de março para 16 de março;
–
o facto de a Verkhovna Rada da Crimeia ter aprovado já no dia 11 de março de
2014 a Declaração sobre Independência da Crimeia e da cidade de Sebastopol –
artigo n.º 3 do qual determina diretamente a adesão à Federação Russa, tem
prejudicado as consequências jurídicas do referendo, assim como violou a obrigação
das autoridades de serem neutras em relação ao seu resultado;
–
a ausência entre as opções incluídas na cédula do referendo de uma pergunta
sobre o apoio do estatuto da República Autónoma da Crimeia como parte da
Ucrânia, que violou diretamente os direitos daquela parte da população, que
apoiava a conservação da Crimeia dentro da Ucrânia;
A
ilegalidade flagrante do “referendo geral da Crimeia” foi constatada pela
Assembleia-Geral de ONU. A 27 de março de 2014, uma centena de estados-membros
apoiaram a resolução 68/262 “Integridade territorial da Ucrânia”, que constatou
que o referendo realizado na Crimeia e em Sebastopol em 16 de março de 2014,
sem ter suporte jurídico, não pode ser a base para quaisquer mudanças nos
estatutos desses territórios. Apesar do documento não poder parar a Rússia na
sua ação agressiva, ele estabeleceu as bases para políticas de não
reconhecimento da anexação da Crimeia pela Rússia, que a comunidade
internacional segue até hoje.
Facto
9. Com o fim de justificar suas ações na ocupação e a tentativa de anexação da
Crimeia, a Rússia muitas vezes referia-se ao exemplo do Kosovo. Esse precedente
era mencionado também pelas autoproclamadas autoridades da Crimeia; a ele
referia-se o Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa para
justificar a legalidade do “referendo geral da Crimeia”; era citado pelo
presidente Vladimir Putin durante as suas numerosas entrevistas e apresentações
na televisão. Pareceria justo, pois esses casos têm uma série de
características comuns. No entanto, uma análise mais detalhada mostra que o
Kosovo não pode servir como um decalque para a Crimeia: a situação nessas
regiões tem diferenças tão radicais que qualquer comparação é incorreta.
Em
primeiro lugar, de acordo com várias fontes, os kosovares albaneses eram
submetidos a opressão nacional por parte das autoridades sérvias. Em 1996, o
conflito étnico transformou-se em confrontos periódicos entre as tropas do
chamado “Exército de Libertação do Kosovo” e a Polícia e Exército jugoslavo.
Desde o início de 1998, esses confrontos tornaram-se numa espécie de guerra.
Por parte do Exército jugoslavo começou a repressão contra a população civil,
que no final de 1998 e início de 1999 atingiu a escala de limpeza étnica.
Devido a estas purgas foram assassinados mais de 12.000 kosovares e 500.000
foram forçados a deixar o Kosovo. Durante o período da Ucrânia independente,
nenhum grupo étnico na Crimeia esteve sujeito à opressão ou discriminação
nacional. Pelo contrário, a Crimeia obteve o status único – de República
Autónoma – dentro do estado unitário ucraniano. Todos os grupos étnicos tinham
direitos iguais para participação na vida política, económica e cultural da
península. Ao início de 2014 as contradições entre os grupos da população na
Crimeia eram de natureza política e não étnica. Quaisquer teses da propaganda
russa sobre a violência contra moradores da Crimeia pelas autoridades
ucranianas não são baseadas em factos e provas – são apenas declarações.
Em
segundo lugar, como consequência da operação da NATO contra a Jugoslávia,
destinada a acabar com a guerra no Kosovo, a província estava sob controlo da
Missão das Nações Unidas (UNMIK), de acordo com a Resolução do Conselho de
Segurança da ONU n.° 1244. Somente após nove anos de preservação de status quo
e reconhecimento pela comunidade internacional de que todas as tentativas de
autodeterminação interna do Kosovo na Sérvia, não só eram ineficazes, mas
também inúteis, decidiu-se não interferir no direito dos kosovares à
autodeterminação externa. A independência do Kosovo foi proclamada em 2008.
A
situação na Crimeia desenvolveu-se de forma bastante diferente. Não houve
administração das Nações Unidas, nem as inúmeras rondas de negociações, nem
período longo de transição na pendência de uma solução política. O período
desde o início das “violações imaginárias dos direitos dos russos na Crimeia”
até à “autodeterminação”, durou apenas algumas semanas.
Em
terceiro lugar, a declaração de independência do Kosovo foi um ato unilateral.
No caso da Crimeia, o significado crucial tinha a intervenção externa. A
proclamação da independência da Crimeia foi resultado do uso indevido de força
e ameaça de força por parte da Federação Russa contra a Ucrânia. Isto já não é
um ato unilateral, mas o ato de agressão militar não provocada, o que não pode
criar quaisquer consequências legais. O acto internacionalmente ilícito
cometido pela Federação Russa não poderia legalizar a proclamação da “República
da Crimeia” e a sua inclusão na Federação Russa.
Em
quarto lugar, um fator importante é a vontade dos povos indígenas. Albaneses do
Kosovo são o povo indígena da terra, que, de acordo com a Declaração da ONU
sobre os Direitos dos Povos Indígenas, têm direito à autodeterminação. Ao contrário
deles, os russos na Crimeia foram apenas um dos grupos étnicos, que não podem,
por seu próprio critério, determinar o estatuto jurídico da península. Na
ausência de tal conceito como “Povo da Crimeia”, o único grupo que teria
direito à autodeterminação na Crimeia era o povo de tártaros da Crimeia. Mas,
como todos sabem, os tártaros da Criméia ignoraram o chamado “referendo geral
da Crimeia” e opuseram-se à ocupação russa da península. Hoje, as autoridades
de ocupação russa submetem-nos a perseguição e discriminação.
Por
fim, a argumentação da Rússia da sua posição sobre a Crimeia utilizando o “precedente
de Kosovo” é uma franca blasfémia política. A Rússia perdeu o direito moral
para se referir a esta posição jurídica depois do não-reconhecimento da independência
do Kosovo. Assim, na declaração sobre as consequências da autoproclamação da
independência do Kosovo (Sérvia) do Parlamento russo, aprovada em 18 de
fevereiro de 2008, afirma-se claramente que o direito das nações à
autodeterminação não pode justificar o reconhecimento da independência do
Kosovo. Naquela altura, ambas as câmaras do Parlamento da Federação Russa “consideram
impossível o reconhecimento do Kosovo como um estado soberano, a admissão do
Kosovo na ONU e outras organizações internacionais comprometidas com os
princípios fundamentais do Direito internacional”.
A
aplicação da Rússia com respeito à Ucrânia de um método que antes era
repetidamente condenado pela mesma e não reconhecido em relação a Sérvia,
apenas pode ser considerada como utilização de critérios duplos. Não há outra
forma...
Facto
10. O último facto e talvez o mais triste, é que, apesar das altas promessas de
transformar a Crimeia ocupada num jardim do Éden, as autoridades de ocupação
russas, desde o primeiro dia de ocupação da península, começaram um ataque
massivo contra todos os direitos e liberdades fundamentais. O instinto de
qualquer império é a destruição incondicional das “ilhas de liberdade” e de “focos
de dissidência” nos territórios conquistados. Isso aconteceu com a Crimeia.
De
acordo com organizações respeitáveis na esfera dos direitos humanos, tais como
a Amnistia Internacional, Human Rights Watch, Freedom House e muitas outras, em
apenas três anos de ocupação a Crimeia voltou três séculos atrás na área dos direitos
humanos, primado de direito, tornando-se numa “península de medo e desespero”.
A
atmosfera social na península está envenenada de assassinatos não investigados,
torturas, desaparecimentos forçados, destruição de garantias processuais
básicas e desrespeito do direito a um julgamento justo, proibição de reuniões e
manifestações, massacre de jornalistas e meios de comunicação independentes e o
encerramento de escolas ucranianas e tártaras. De acordo com o CrimeaSOS – a organização
de direitos humanos, apenas no passado – 2016 – na Crimeia houve três
desaparecimentos forçados, foram condenados seis réus a penas de 38 anos em
acusações fabricadas de envolvimento nas atividades do “Hizb ut-Tahrir”,
participação em “Euromaydan” e preparação de atos terroristas; foram abertos 32
novos processos criminais, cada um mais absurdo do que o outro. Em particular
Ilmi Umerov, Suleiman Kadyrov e Mykola Semen que defendem o retorno da Crimeia
para a Ucrânia, são acusados de “separatismo”, três pessoas mantidas sob custódia
aguardam a sentença por participarem na manifestação pró-ucraniana de “26 de
fevereiro de 2014”, sete pessoas foram submetidas a exame psiquiátrico forçado.
Faça click para conferir a situação dos direitos humanos na Crimeia |
Pelos
órgãos punitivos do Estado ocupante, foram feitas mais de 177 detenções e
realizadas mais de 50 buscas. O apogeu da política de opressão nacional era a
proibição pelo Estado invasor, de Medjilis – o organismo representativo dos
tártaros da Crimeia. Esta violação era tão flagrante que causou severa
condenação de todas as organizações internacionais e da comunidade
internacional. O Conselho da Europa anunciou que a política de repressão subiu
a um novo nível – repressão em massa contra os tártaros de Crimeia, como uma
comunidade.
Hoje,
o Governo da Ucrânia não tem controlo sobre a península da Crimeia e não pode
fornecer proteção dos direitos humanos e garantir a soberania/o primado do
direito. No entanto, o Governo ucraniano continua a sentir-se responsável pelo
destino dos seus cidadãos. Atualmente, todos os esforços são dirigidos para
parar as ações criminosas das autoridades de ocupação e trazer a Rússia à
responsabilidade jurídica internacional como um Estado agressor e ocupante.
Hoje, no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, estão pendentes cinco processos
judiciais interestaduais [impostos] pela Ucrânia contra a Rússia e mais de 3.000
processos individuais abertos com base em reclamações de cidadãos da Ucrânia,
devido à agressão russa. Em abril de 2014 e setembro de 2015, a Ucrânia reconheceu
a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. O Gabinete do Procurador do TPI
no seu relatório do ano de 2016 constatou que a Crimeia foi ocupada como
resultado do conflito armado internacional entre a Rússia e Ucrânia.
Em
setembro de 2016, Ucrânia iniciou um processo de arbitragem contra a Federação
Russa nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar de 1982, a
fim de proteger os seus direitos como um Estado costeiro nas zonas marítimas
adjacentes na Crimeia no mar Negro, mar Azov e estreito de Kerch.
A
16 de janeiro de 2017, a Ucrânia apresentou ao Tribunal Internacional de
Justiça a demanda judicial contra a Federação Russa para a aplicação das
disposições da Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do
Terrorismo e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial. A decisão provisória neste processo foi pronunciada a 19
de abril de 2017.
A
Federação Russa deve ser punida pelo seu comportamento ilegal porque a
impunidade leva sempre a cometer crimes ainda mais graves.
*
Cônsul, Chefe da Missão Ucraniana em Portugal
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