por: Timothy Snyder
De fato, a guerra levanta a questão: o que é a rússia? putin falhou em responder a esta pergunta em qualquer sentido positivo. Na verdade, ele atrelou a identidade russa à da Ucrânia, o que não é o que ele pretendia. A julgar pela mídia de massa russa, incluindo os importantíssimos programas de entrevistas, a autocompreensão russa dominante no momento é a de um «anti-Ucrânia».
Como o teórico jurídico nazista Carl Schmitt e o fascista russo Ivan Ilyin recomendaram, a política russa começa com a definição de um inimigo. Essa definição, é preciso dizer, não é muito precisa, nem pode ser. A Ucrânia como inimiga é simplesmente, na retórica russa oficial, uma espécie de repositório para todas as coisas que os propagandistas consideram assustadoras: nazistas, gays, judeus, judeus gays nazistas etc. No momento, uma ideia dominante é que a Ucrânia é a pátria do satanismo. Isso se harmoniza bem com os ensinamentos de Ilyin.
Não existe uma imagem explícita da rússia entre as elites russas; há, no entanto, uma noção racial implícita a ser encontrada na política. Uma ansiedade que putin compartilha com seus admiradores de extrema direita é a demografia: logo não haverá o suficiente de nós, e haverá muitos deles. Mesmo que a rússia tenha falhado na Ucrânia em atingir as metas militares que seus líderes estabeleceram, ela realizou uma ambiciosa política de transformação racial. Não tenho em mente aqui as políticas genocidas que a rússia persegue contra a Ucrânia (embora, como veremos, haja sobreposição), mas sim a eugenia russa, a tentativa de construir um Volk russo «mais saudável» por meio da luta.
O início da guerra e depois o anúncio da mobilização levaram grande parte da intelectualidade russa e da classe média para o exterior. Do ponto de vista de putin, esta foi uma «autolimpeza» necessária, na qual a Rússia estava «cuspindo» traidores (suas palavras) como insetos. Na força de invasão inicial, e depois entre os mobilizados, as minorias étnicas da rússia estavam super-representadas. Isso também muda a aparência da população multiétnica da rússia, deixando-a mais russa. Terceiro, a rússia agora está esvaziando suas prisões para enviar esses homens para lutar e morrer na Ucrânia. Isso também é explicitamente apresentado como uma purificação da população russa.
Todas essas ações envolvem a redução da população da federação russa. Uma quarta ação racial mais do que compensa isso. É a apreensão sistemática de mulheres e crianças ucranianas e sua deportação para a vastidão da rússia. Dos territórios ocupados pela rússia, cerca de três milhões de pessoas foram deportadas, desproporcionalmente mulheres e crianças. Pelo menos duzentas mil e até 700.000 crianças foram levadas à força para a rússia. (Para comparação: a Alemanha nazista deportou cerca de 200.000 crianças polonesas para assimilação durante toda a Segunda Guerra Mundial.) A lógica é que as mulheres terão que se casar com homens russos e que os filhos crescerão como russos.
A estratégia de deportação segue a mesma lógica que levou a rússia a invadir a Ucrânia em primeiro lugar: que os ucranianos são apenas proto-russos cristãos brancos, inconscientes de sua verdadeira identidade, que podem ser refeitos com força. Mulheres e crianças são deportadas após passarem por «campos de filtragem», nos quais homens considerados irremediavelmente ucranianos são simplesmente fuzilados. Do ponto de vista ucraniano, isso é genocídio e uma razão pela qual a guerra deve ser vencida. Legalmente falando, seu julgamento está correto: embora as autoridades russas continuem se gabando de todas as crianças que a rússia sequestrou, essa prática é explicitamente chamada de genocida na convenção de 1948.
Está em andamento um debate sobre se a rússia é fascista. O caráter eugênico da guerra parece relevante para essa discussão. Há uma década, putin fala de um mundo sem regras, um mundo de luta permanente por recursos, que determinará (para citar um discurso de 2012) «quem assumirá a liderança e quem permanecerá de fora e inevitavelmente perderá sua independência». putin descreveu então o que havia de especial na rússia usando um termo do pensador fascista russo Lev Gumilev. Quando putin anunciou a «anexação» dos territórios ucranianos em setembro passado, afirmou que nenhuma regra se aplica à rússia, já que se trata de uma civilização especial. Nesse caso, ele citou, como costuma fazer, o pensador fascista russo Ivan Ilyin.
E assim, mesmo quando passamos da propaganda para a prática, a definição da rússia permanece vazia: é simplesmente a raça que compete com outras pessoas por recursos, uma luta que começa com uma purificação racial. Isso parece ser uma maneira fascista de ver as coisas.
Sob essa luz, a rússia é, em outro sentido, uma «anti-Ucrânia», já que a apresentação política ucraniana da guerra não tem nada a ver com raça e tudo a ver com autodefesa cívica. Enquanto a eugenia da rússia em tempo de guerra se baseia no medo do que o futuro reserva, os ucranianos persistem em definir seu objetivo mais elevado como «liberdade», no sentido de um futuro aberto, cheio de possibilidades.
7 de janeiro de 2023.
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