O tema histórico que tentam
evitar todos os fãs da URSS e das ideologias de esquerda é Holodomor (Grande
Fome) na Ucrânia, planeada, organizada e executada por poder central soviético.
A fome absolutamente catastrófica decorreu em 1932-33, mas Ucrânia também foi
atingida pelas suas ondas menores em 1921-23 e 1946-47. A historiografia
oficial soviética mal assinalava estes acontecimentos, a cultura popular
soviética, que servia de propaganda do regime, criava diversas obras literárias
e cinematográficas, tentando demonstrar a falsa abundância, numa terra
profundamente sofrida pela fome, uma acção deliberada do regime comunista
soviético.
Slogan: "Avançando ao ataque contra as dificuldade, contra oportunismo da direita" |
Hoje eu quero vós falar sobre o
Holodomor ucraniano. Parafraseando o epigrafo no monumento em memória do
operários polacos da resistência anticomunista de Gdansk: “Aos mortos – como sinal de memória eterna. Aos dirigentes – como sinal
de aviso, aos concidadãos – como sinal de esperança de que o mal possa ser
derrotado”.
O que é Holodomor?
O Holodomor é o termo usado
para descrever a fome em massa de grandes proporções, que ocorreu na Ucrânia,
ocupada pelas forças bolcheviques, em 1932-33 e que causou milhões de vítimas
civis. A palavra ucraniana Holodomor está incluída em todas as línguas do mundo
e não é traduzida, por analogia com a palavra Holocausto. Temos que recordar
que, além do mais terrível e conhecido Holodomor de 1932-33, Ucrânia foi
atingida por duas outras fomes menores – em 1921-23 e em 1946-47.
O Holodomor foi provocado pelas
chamadas “aquisições de grãos” – quando as forças paramilitares soviéticas
retiravam, à força, os grãos e mesmo diversos outros alimentos dos camponeses,
para enviá-las às cidades e até vendê-las nos mercados ocidentais – com este
dinheiro, os poder comunista soviético financiava a sua industrialização,
construindo as fábricas civis e militares, fabricando as armas que fornecia aos
partidos e depois aos regimes amigos para “libertar o mundo da opressão
capitalista”. Os planos estatais de aquisições de grãos eram absolutamente
irrealistas e desde logo condenavam os camponeses à fome.
De acordo com os dados da
enciclopédia “Britannica”, Holodomor ucraniano de 1932-33 provocou a morte
entre 4 à 5 milhões de ucranianos.
Repressões aos insubmissos
O que causou o Holodomor? Na
historiografia oficial soviética, como as razões principais da fome em massa na
Ucrânia eram apontadas as acções do Comissariado Popular da Agricultura e da
liderança de alguns kolkhozes e sovkhozes (fazendas socialistas
colectivas), cuja liderança, segundo a propaganda soviética foi “infestada de
elementos aleatórios e destruidores”.
Como em geral na União
Soviética, culpados sempre são elementos “aleatórios e destruidores”, embora
não houvesse nada de “acidental” nas acções estatais – o Holodomor durou cerca
de dois anos, e as autoridades soviéticas não poderiam ter ignorado os
acontecimentos no terreno. A tese do “desconhecimento” é facilmente derrubada
pela existência dos cercos deliberados de várias aldeias famintas, acção
efetuada pelas tropas do NKVD, do ministério do interior e dos exército
soviéticos, que levavam à morte dos camponeses ucranianos, confinados à estes
mesmas zonas de bloqueio.
A causa real do Holodomor foi o
massacre bolchevique do campesinato ucraniano insubmisso – os ucranianos se
recusavam aderir aos kolkhozes e não
desejavam viver de acordo com as leis bolcheviques, por isso o poder comunista
da União Soviética decidiu a sua aniquilação pela fome. A mesma coisa, mas em
menor escala, ocorreu na própria Rússia e no Cazaquistão, bem como em outras
repúblicas da URSS – nas aldeias cercadas pelo exército ou pelo NKVD, os
camponeses morriam de fome, os mesmos camponeses que teriam a força moral de
dizer ao governo soviético que este poder não é nada popular, e representa a
exploração muito pior do que o czarismo russo.
«Tabelas negras» e canibalismo
As aldeias ucranianas mais
afectadas pelo Holodomor foram as que não cumpriram com o “plano” de aquisição
de grãos – geralmente simplesmente impraticável. Estas aldeias eram colocadas
em assim chamadas “tabelas negras” (listas de “não-cumpridores”) – a aldeia era
alvo de bloqueio completo por parte do NKVD ou do exército, para lá eram
enviados os esquadrões de punição que, entre outras coisas, praticavam a tomada
de reféns.
Nós, filhos e filhas do século
XXI, nem sequer temos a capacidade intelectual de imaginar o que estava
acontecendo nas aldeias bloqueadas e cercadas pelo Exército Vermelho – as
famílias inteiras morriam, todas as folhas das árvores tinham sido comidas,
nestas aldeias não sobravam os animais domésticos e até mesmo os ratos.
Pessoas, enlouquecidas pela fome, foram forçadas à praticar o canibalismo –
matando os familiares ou as crianças, ou seus ou dos vizinhos, na esperança de
os poderem comer.
Sobrevivente do Holodomor
ucraniano, Marfa Tymchenko recorda:
Um vizinho da aldeia contou que uma vez trouxe a comida
da cidade [onde a fome
praticamente não era sentida] para os
seus pais na aldeia, onde também vivia a sua irmã. Entrou na casa, e viu o seu
pai e mais dois homens com ele, todos não barbeados, muito escuros. O fogo
ardia no fogão, algo estava sendo cozido, ao seu lado, encoberto nos panos
ensanguentados estava deitada alguma coisa embrulhada.
Ele
perguntou ao pai: “Onde está a mãe, a irmã?” O pai respondeu: “Já comemos a
mãe, sobrou uma parte na panela e irmã acabamos de matar, está naqueles panos”.
E um dos homens disse: “Teremos a carne fresca!”
São trechos do interrogatório
de Vasil Mironovych, que tinha morto suas duas filhas, devido à fome
intolerável:
Em 1932, juntamente com a minha esposa e filho Zahariy,
trabalhamos no kolkhoz durante os 400 dias úteis, não faltamos nenhum único
dia, pelo que recebemos no outono cerca de 5 kg de milho e 4 kg de farinha, o
que durou na minha família por 4-5 dias e para todo o inverno, fiquei sem meios
de subsistência. Os filhos mais velhos saíram de casa, eu continuei a trabalhar
no kolkhoz, pela que recebia uma vez por dia a comida quente – a sopa borsch de
repolho e beterraba, sem pão.
No dia 4 de abril, eu matei a minha filha mais nova –
Hrystia, que estava tão exausta que não conseguia mais ficar de pé... O seu
corpo, só ossos, eu esquartejei e cozinhei, os comi em dois dias. Eu também dei
a carne para comer a minha filha mais velha, Nastya, e no dia 6 de abril, às
5h00 da manhã, eu matei a Nastya. Eu pensei que com isso iria me fortalecer,
Nastya mesmo assim, teria morrido de exaustão em um ou dois dias...
Tanto a primeira, como a segunda, eu matei no sono, as
tirei da cama, coloquei-as no chão batido de terra e cortei a cabeça com um
único golpe de machado... As cabeças e os ossos cortei aos pedaços pequenos e
enterrei.
Os militares soviéticos iam às
casas dos camponeses ucranianos famintos lhes tirar os últimos alimentos,
respondendo aos súplicas – “se teremos a pena de vocês, também ficaremos na
vossa posição. E nos queremos viver”.
Nas décadas do domínio
soviético que se seguiram, toda a memória do Holodomor foi deliberadamente
apagada, nenhum livro soviético mencionava a plenitude da tragédia, o máximo
que a censura soviética permitia era alguma menção dos “famintos tempos
difíceis”, sempre sublinhando que “assim eram os tempos!” Nunca e ninguém
mencionava o facto que a culpa não era dos tempos, mas do poder soviético.
O memorial às vítimas do Holodomor em Kyiv – o monumento de menina sofrida e magra |
O Holodomor na Ucrânia gerou um
fenómeno terrível, que muitas pessoas hoje chamam de memória apagada – não
sobrou literalmente nada e ninguém, nem uma única pessoa, das dezenas de
aldeias ucranianas que se extinguiram por completo devido à fome. Ninguém sabe
exatamente o que aconteceu ali – não sobrou mais ninguém que pudesse contar o
que se passou. Possivelmente as coisas e situações muito mais terríveis
aconteceram lá, do que aquelas que são relatadas pelos sobreviventes, devido as
condições um pouco menos mortíferos, nos locais da sua própria residência na
época.
Em 1933, após o levantamento de
bloqueios, os corpos de camponeses ucranianos inchados de fome foram
simplesmente retiradas, e novas pessoas, provenientes de outras regiões da URSS
[nomeadamente Belarus e Rússia] se estabeleceram nestas aldeias “libertas”. Aos
aqueles que não viam os horrores do Holodomor com os seus próprios olhos, era
muito mais fácil abraçar a ideia abstracta de construção do comunismo.
Na Ucrânia actual, o Holodomor
é considerado um genocídio, e o dia da memória de suas vítimas é recordado
solenemente em 25 de Novembro. Em Kyiv, neste dia, os cidadãos acendem as
velas, e muitos vêm até o memorial às vítimas do Holodomor – o monumento de
menina sofrida e magra – e colocam aos seus pés as maçãs, espigas de trigo e
galhos de viburnum, o símbolo da
Ucrânia...
Fotos: arquivo | Texto: Maxim Mirovich (Belarus);
Tradução a adaptação: Ucrânia em África
O texto serviu de base da
intervenção pública da deputada da Assembleia Municipal de Lisboa, Dra. Aline
Gallasch-Hall de Beuvink (eleita em
outubro de 2017 pela coligação de CDS-PP, PPM e MPT), lida na Conferência
internacional “Fomos mortos por sermos ucranianos” (Lisboa, 12 de outubro de
2018).
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