quinta-feira, agosto 02, 2018

Os alimentos de desigualdade socialista da União Soviética

Desde criação da União Soviética, a sua nova classe dominante – a nomenclatura (também conhecida como aparatchik) criou o seu próprio sistema de abastecimento de alimentos e bens, em forma de “distribuição especial” e “cestas alimentícias especiais”, chegando ao seu apogeu na era Brejnev.

De que estamos à falar?

Leonid Brejnev chegou ao poder em 1964, marcando uma nova era, que mais tarde seria chamada de “zastoy”, literalmente a “estagnação”. Essa estagnação moldou praticamente todas as esferas da vida soviética – de arquitetura ao cinema, bem como teve um impacto muito visível no bem-estar dos cidadãos soviéticos – [a indústria soviética já não conseguia produzir os objetos de uso quotidiano e os alimentos em quantidades suficientes], razão pela qual, no comércio surgiu um grande deficit – quando vários tipos de bens e alimentos escasseavam ou só podiam ser comprados, obrigando o cidadão permanecer nas filas enormes [por horas, dias e as vezes anos, último caso se aplicava à compra de viaturas ou dos conjuntos de mobiliário, produzidos nos países socialistas].
Loja do comércio geral
Devido à falta de bens e alimentos, começou se formar o sistema de distribuição soviética, para as elites comunistas e para o resto do povo. A cadeia “de cima” era criada oficialmente, permitindo que uma determinada categoria de cidadãos, próximos ao poder soviético, poderia comprar uma viatura, um conjunto de mobiliário, usando algum “fundo especial” ou até mesmo fazer a viagem turística ao estrangeiro, comprando um “tour especial”.
O sistema de distribuição também se formava “por baixo” – quando as pessoas comuns criavam os laços de amizade com os gerentes das lojas, e mesmo entre os simples vendedores, que lhes vendiam algum bem escasso – alimentos, roupas ou móveis. Na era Brejnev até surgiu uma anedota sobre o tema: “o comunismo chegará, quando cada homem soviético fará amizade com um gerente de uma loja”.

Mais iguais que outros

Na União Soviética, que oficialmente declarava a “igualdade universal”, na verdade, era praticada uma desigualdade bastante formal – porque uns tinham fácil acesso às determinadas mercadorias, enquanto outros não; de acordo com a expressão apropriada de Orwell – “somos todos iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. Ou como bem notou o escritor soviético Vladimir Voinovich na sua genial distopia “Moscovo-2042” – “aqui todo o cidadão tem o direito de entrar livremente na loja e sair de lá completamente de graça”.
Uma das lojas dos privilegiados, chamada "Beryozka" (com as cortinas nas montras), as vendas
eram feitas ou apenas em divisas (aos diplomatas estrangeiros e soviéticos e turistas estrangeiros) ou em cheques soviéticos especiais, equiparados às divisas (neste caso era permitido fazer as compras aos cidadãos soviéticos, como marinheiros, professores ou especialistas que trabalhavam no estrangeiro e recebiam os cheques após a venda compulsiva das divisas ao estado soviético (os letreiros e preçários das lojas estão em inglês esforçado)
A classe privilegiada na sociedade soviética (supostamente uma sociedade sem classes) era formada por aqueles que estavam dentro do sistema soviético, e quando mais longe neste sistema conseguia penetrar um indivíduo – maiores benefícios ele recebia, em relação ao quase tudo – desde a qualidade da habitação, existência do carro de serviço e do motorista pessoal, às possibilidades de comprar os alimentos escassos e de boa qualidade aos preços baixos. Existiam mesmo as diversas cantinas, situadas nos comités provinciais do partido comunista e interditas ao público geral, onde a qualidade de alimentos e do serviço prestado era de muito longe superior às comuns cantinas soviéticas.
Cheque da Vneshposyltorg que eram usados como forma de pagamento nas lojas Beryozka
A distribuição de alimentos foi realizada de seguinte modo – cada organização soviética tinha lojas especiais e recebia “cestas alimentícias especiais”, compostos por alimentos soviéticos ou mesmo estrangeiros de grande deficit e procura. Os restos destes alimentos (no caso de restarem) – era encaminhado ao comércio geral, onde os gerentes e os vendedores também os vendiam entre “os seus”.
Existia também o chamado “fornecimento especial” dos alimentos – os membros da nomenklatura soviética nem sequer tinham que ir às lojas especiais para comprar a tal “cesta alimentícia especial”, esta era levantada e trazida às suas casas pelo motorista pessoal do serviço.

O que continha a «cesta alimentícia especial»?
A maioria das “cestas alimentícias especiais” (existiam as “do comité distrital do PC”, “do comité regional do PC”, “académicas”, entre outros) continham os alimentos que não eram disponíveis para a maioria da população soviética. As “cestas” levavam enlatados ocidentais e boa maionese soviética (que nem sempre estava disponível no comércio geral), comida para bebés, caviar preto e vermelho, fruta importada, linguiça defumada e cozida, salsichas, mortadela, caranguejos, peixe de importação, camarão congelado, frango de excelente qualidade, fígado de bacalhau, ananases/abacaxi, tangerinas, vinhos e conhaques ocidentais (ou soviéticos de uma qualidade superior), e muito mais.
Os preços são dados em rublos, absolutamente baixos, realmente o verdadeiro comunismo
Os alimentos produzidos na URSS e usados nas “cestas” eram fabricados, usando as linhas de produção separadas. Nas herdades agrícolas (kolkhozes especiais) era proibido o uso de pesticidas e de agro-químicos (enquanto em kolhozes comum os agro-químicos eram usados com fartura), nas fábricas de processamento de carne, existiam as “unidades fechadas”, onde eram produzidas as salsichas e linguiça de boa qualidade, sem a adição da carne de 3ª ou de papel higiénico. Ou seja, mesmo na qualidade de alimentos, a desigualdade dos cidadãos soviéticos se manifestava na íntegra.
Até as embalagens destes “alimentos especiais” eram diferentes – em vez do habitual papel cinza soviético de má qualidade (usado para empacotar as salsichas nas mercearias), as salsichas e linguiça de “cestas” eram embaladas em caixas de papelão bonitas, com etiquetas coloridas, mas sem a marcação de preço.

País de felicidade universal

Não é difícil adivinhar quem é que hoje reclama na Internet dos “malditos anos 1990” – na União Soviética, eles próprios, ou seus pais tinham acesso ao abastecimento especial, possuindo tudo o que o seu coração desejava, e no início dos anos 1990 a sua fartazana comunista acabou repentinamente, e eles tiveram que se dirigir às lojas “do povo”, para encontrar as prateleiras vazias.
Comendo das «cestas alimentícias especiais», vivendo nos apartamentos governamentais “gratuitos”, se pode facilmente e casualmente contar as histórias sobre as “amanhas cantantes”, apresentando a URSS como o país “de igualdade social e de felicidade geral”. E se nas proximidades funcionavam os campos de concentração de GULAG, os kolkhozes, onde as pessoas trabalhavam pelo “dias-de-trabalho” ou as fábricas, onde os operários simplesmente se afogavam em álcool – era possível fazer de conta que tudo isso não existisse, ainda mais, porque da janela do apartamento do Kremlin nada disso era visível.

Foto: arquivo | Texto: Maxim Mirovich e [Ucrânia em África]

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