Desde
criação da União Soviética, a sua nova classe dominante – a nomenclatura (também
conhecida como aparatchik) criou o seu
próprio sistema de abastecimento de alimentos e bens, em forma de “distribuição
especial” e “cestas alimentícias especiais”, chegando ao seu apogeu na era
Brejnev.
De
que estamos à falar?
Leonid
Brejnev chegou ao poder em 1964, marcando uma nova era, que mais tarde
seria chamada de “zastoy”, literalmente a “estagnação”. Essa estagnação moldou
praticamente todas as esferas da vida soviética – de arquitetura ao cinema, bem
como teve um impacto muito visível no bem-estar dos cidadãos soviéticos – [a indústria
soviética já não conseguia produzir os objetos de uso quotidiano e os alimentos
em quantidades suficientes], razão pela qual, no comércio surgiu um grande deficit
– quando vários tipos de bens e alimentos escasseavam ou só podiam ser comprados,
obrigando o cidadão permanecer nas filas enormes [por horas, dias e as vezes
anos, último caso se aplicava à compra de viaturas ou dos conjuntos de
mobiliário, produzidos nos países socialistas].
Loja do comércio geral |
Devido
à falta de bens e alimentos, começou se formar o sistema de distribuição
soviética, para as elites comunistas e para o resto do povo. A cadeia “de cima”
era criada oficialmente, permitindo que uma determinada categoria de cidadãos, próximos
ao poder soviético, poderia comprar uma viatura, um conjunto de mobiliário, usando
algum “fundo especial” ou até mesmo fazer a viagem turística ao estrangeiro, comprando
um “tour especial”.
O
sistema de distribuição também se formava “por baixo” – quando as pessoas
comuns criavam os laços de amizade com os gerentes das lojas, e mesmo entre os simples
vendedores, que lhes vendiam algum bem escasso – alimentos, roupas ou móveis. Na
era Brejnev até surgiu uma anedota sobre o tema: “o comunismo chegará, quando
cada homem soviético fará amizade com um gerente de uma loja”.
Mais
iguais que outros
Na
União Soviética, que oficialmente declarava a “igualdade universal”, na
verdade, era praticada uma desigualdade bastante formal – porque uns tinham
fácil acesso às determinadas mercadorias, enquanto outros não; de acordo com a
expressão apropriada de Orwell – “somos todos iguais, mas alguns são mais iguais
que outros”. Ou como bem notou o escritor soviético Vladimir
Voinovich na sua genial distopia “Moscovo-2042” – “aqui todo o cidadão tem
o direito de entrar livremente na loja e sair de lá completamente de graça”.
Uma das lojas dos privilegiados, chamada "Beryozka" (com as cortinas nas montras), as vendas eram feitas ou apenas em divisas (aos diplomatas estrangeiros e soviéticos e turistas estrangeiros) ou em cheques soviéticos especiais, equiparados às divisas (neste caso era permitido fazer as compras aos cidadãos soviéticos, como marinheiros, professores ou especialistas que trabalhavam no estrangeiro e recebiam os cheques após a venda compulsiva das divisas ao estado soviético (os letreiros e preçários das lojas estão em inglês esforçado) |
A
classe privilegiada na sociedade soviética (supostamente uma sociedade sem classes)
era formada por aqueles que estavam dentro do sistema soviético, e quando mais
longe neste sistema conseguia penetrar um indivíduo – maiores benefícios ele
recebia, em relação ao quase tudo – desde a qualidade da habitação, existência
do carro de serviço e do motorista pessoal, às possibilidades de comprar os
alimentos escassos e de boa qualidade aos preços baixos. Existiam mesmo as diversas
cantinas, situadas nos comités provinciais do partido comunista e interditas ao
público geral, onde a qualidade de alimentos e do serviço prestado era de muito
longe superior às comuns cantinas soviéticas.
Cheque da Vneshposyltorg que eram usados como forma de pagamento nas lojas Beryozka |
Existia
também o chamado “fornecimento especial” dos alimentos – os membros da nomenklatura soviética nem sequer tinham
que ir às lojas especiais para comprar a tal “cesta alimentícia especial”,
esta era levantada e trazida às suas casas pelo motorista pessoal do
serviço.
O
que continha a «cesta alimentícia especial»?
A
maioria das “cestas alimentícias especiais” (existiam as “do comité distrital
do PC”, “do comité regional do PC”, “académicas”, entre outros) continham os
alimentos que não eram disponíveis para a maioria da população soviética. As “cestas”
levavam enlatados ocidentais e boa maionese soviética (que nem sempre estava
disponível no comércio geral), comida para bebés, caviar preto e vermelho,
fruta importada, linguiça defumada e cozida, salsichas, mortadela, caranguejos,
peixe de importação, camarão congelado, frango de excelente qualidade, fígado
de bacalhau, ananases/abacaxi, tangerinas, vinhos e conhaques ocidentais (ou
soviéticos de uma qualidade superior), e muito mais.
Os preços são dados em rublos, absolutamente baixos, realmente o verdadeiro comunismo |
Os
alimentos produzidos na URSS e usados nas “cestas” eram fabricados, usando as linhas
de produção separadas. Nas herdades agrícolas (kolkhozes especiais) era
proibido o uso de pesticidas e de agro-químicos (enquanto em kolhozes comum os agro-químicos
eram usados com fartura), nas fábricas de processamento de carne, existiam as “unidades
fechadas”, onde eram produzidas as salsichas e linguiça de boa qualidade, sem a
adição da carne de 3ª ou de papel higiénico. Ou seja, mesmo na qualidade de
alimentos, a desigualdade dos cidadãos soviéticos se manifestava na íntegra.
Até
as embalagens destes “alimentos especiais” eram diferentes – em vez do habitual
papel cinza soviético de má qualidade (usado para empacotar as salsichas nas
mercearias), as salsichas e linguiça de “cestas” eram embaladas em caixas de
papelão bonitas, com etiquetas coloridas, mas sem a marcação de preço.
País
de felicidade universal
Não
é difícil adivinhar quem é que hoje reclama na Internet dos “malditos anos 1990”
– na União Soviética, eles próprios, ou seus pais tinham acesso ao abastecimento
especial, possuindo tudo o que o seu coração desejava, e no início dos anos 1990
a sua fartazana comunista acabou repentinamente, e eles tiveram que se dirigir às
lojas “do povo”, para encontrar as prateleiras vazias.
Comendo
das «cestas alimentícias especiais», vivendo nos apartamentos governamentais “gratuitos”,
se pode facilmente e casualmente contar as histórias sobre as “amanhas
cantantes”, apresentando a URSS como o país “de igualdade social e de felicidade
geral”. E se nas proximidades funcionavam os campos de concentração de GULAG, os
kolkhozes, onde as pessoas trabalhavam pelo “dias-de-trabalho” ou as fábricas,
onde os operários simplesmente se afogavam em álcool – era possível fazer de
conta que tudo isso não existisse, ainda mais, porque da janela do apartamento
do Kremlin nada disso era visível.
Foto:
arquivo | Texto: Maxim
Mirovich e [Ucrânia em África]
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