O
sistema soviético de passaportização geral, colocado em prática em 1932, foi
pensado para transformar a União Soviética numa “grande zona”, o território do
controlo prisional total.
Recentemente
o nosso blogue contou sobre o trabalho semi-escravo dos camponeses soviéticos que
trabalhavam sem receber nada em troca, unicamente pelos dias-de-trabalho.
No entanto, a semiescravidão e a servidão soviéticas eram “seladas legalmente”,
uma das alavancas efetivas daquele sistema era o passaporte soviético [o documento
de identificação pessoal interno e externo na URSS tinha o nome de passaporte], e todos
os cidadãos eram submetidos à uma vigilância total.
Como
era no tempo czarista?
Segundo
a regulamentação estatal, o assim chamado “Estatuto dos Passaportes” de 1903 os
cidadãos não eram obrigados à ter um passaporte, com respeito a todas as
classes sociais – nobres, burgueses, comerciantes, camponeses, plebeus, e assim
por diante. Sem possuir passaporte, o cidadão poderia ser empregado em qualquer
ofício, isso dependia da sua relação com o empregador – este podia pedir a um
trabalhador para “arranjar o passaporte”, ou não.
Os
cidadãos da Rússia czarista não estavam sob o regime do “controlo/controle total”.
Sob a supervisão especial da polícia, estavam apenas aqueles que cumpriram as suas
sentenças em reclusão corretiva, prisões ou fortalezas, especialmente os
reincidentes. Estes cidadãos recebiam os passaportes apenas com a permissão da
polícia, o documento levava uma nota do registo criminal, e em alguns casos
podia levar a nota que limitava os locais de residência do seu portador.
O
“czarismo cruel” tratava de forma bastante liberal mesmo os revolucionários que
se opunham à monarquia, muitas vezes com as armas nas mãos – após cumprir os
seus termos prisionais, os ditos revolucionários podiam viver em qualquer lugar
do império russo, eles não eram restringidas nos seus direitos.
Em
1900, Vladimir Ulyanov (Lenine), o irmão do terrorista executado, propagandista
e apoiante activo do derrube da monarquia, recebeu legalmente o passaporte
russo para viajar ao exterior, poderia viver e viajar sem restrições para
qualquer lugar do império. Nada disso era possível na URSS. Comparado com o
sistema comunista de torturas e do GULAG, todas as histórias propagandistas
soviéticas sobre “dois anos pesados no exílio da Sibéria” e de “vigilância da
polícia czarista” (no exílio siberiano Lenine trabalhou como professor na
escola, vivia numa casa alugada de vários quartos/assoalhadas, lia o que eu
queria, etc), – parecem contos infantis ridículos.
A
chegada da “Grande Zona”
Após
o golpe, em 1917, os bolcheviques dividiram a população da URSS em “tipos de
validade”. A “sociedade socialista sem classes” marcava os grupos de “pessoas
indesejadas” – fortemente privados dos direitos, e os bolcheviques ficavam felizes
quando estes emigravam, morriam ou desapareciam da face da Terra. Essas pessoas
eram chamadas de lishenets, literalmente
“desprivilegiado”. O grupo era composto por kulaks/kurkuls,
comerciantes privados, padres de vários cultos religiosos, “elementos politicamente
indesejáveis”, etc [por exemplo, entre 1918 à 1936 todos eles perderam o
direito de voto e vários outros direitos].
Em
1932, na URSS começou a passaportização universal, que deveria consolidar a tal
desigualdade ao nível legislativo. Os cidadãos marcados como lishenets não recebiam
os passaportes, e eles eram forçados a fazerem os trabalhos mais baixos e não
qualificados, onde não se exigiam os passaportes. Sem passaporte era impossível
de obter qualquer alojamento decente, os cartões alimentares, ou votar – em
outras palavras, essas pessoas eram condenadas pelo sistema soviético à
extinção.
Desde
meados da década de 1930, os “elementos indesejáveis” eram alvos de rusgas, eles
começaram à serem expulsos das grandes cidades – muitas vezes direitamente aos
campos de concentração soviéticos – GULAG. Mais tarde eles foram proibidos de
residir e eram expulsos das “proximidades dos caminhos-de-ferro”, considerados pelo
regime soviético de “territórios estratégicos”.
Questionário soviético, preenchido ao se candidatar à um emprego. Contém a pergunta № 20: “Você já perdeu os seus direitos de voto, quando e por quê?”, década de 1940 | Wikipédia |
Nos
kolkhozes (fazendas coletivas) os
camponeses não recebiam os passaportes, se transformando em servos estatais/estaduais
– os camponeses eram literalmente “fixados” aos kolkhozes, não tinham nenhum direito e nenhum documento de
identificação pessoal, não podiam ir a lugar algum sem a permissão do chefe do kolkhoz e aqueles que saíssem não
autorizados – eram equiparados aos “escravos fugitivos”. Fisicamente, a vida
dos camponeses soviéticos não diferia muito da vida dos escravos negros nos Estados
Unidos no século XIX.
O
país do controlo prisional total
Desde
a segunda metade da década de 1930, todo o território da URSS foi aparelhado pelos
órgãos de fiscalização secreta, entrelaçados com NKVD e disfarçados de “organismos
públicos de movimentação da população”. De fora tudo parecia como colheita de
dados estatísticos, na verdade, dessa maneira o Estado comunista controlava
todos os cidadãos e caçava os “indesejáveis”. O instituto soviético de propiska (registo domiciliar) existia
com aproximadamente os mesmos objetivos.
Cidadão,
considerado como “inimigo” pelo poder comunista soviético já não conseguia
achar nenhum trabalho decente. Ao chegar ao qualquer lugar novo, mesmo no caso
de um hotel, o cidadão tinha que preencher a “folha de endereço”, que então era
verificada e comparada contra índice existente. Desde 1933 nos passaportes de “elementos
indesejáveis” eram feitas as anotações secretas, mais tarde tais marcas se
tornaram públicas.
No
monitoramento da vida dos lishenets e de outros “elementos
indesejáveis”, NKVD/KGB e polícia soviéticas usavam os zeladores, varredores, vigias,
bengaleiros, etc., que na novilíngua soviética
eram chamados de “elementos de confiança”. Alguns deles, continuam se sentir
como “agentes secretos em missão de serviço” até os dias de hoje...
Toda
essa supervisão universal começou enfraquecer apenas com o início da Perestroika – quando o estado soviético deu
às pessoas mais direitos e liberdades, e logo de seguida, a própria URSS se
desmoronou.
Fotos:
RFE/RL | arquivo | Texto: Maxim
Mirovich e [Ucrânia em África]
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