foto @observador.pt |
60
anos depois da edição original, começou a ser publicada em Portugal a Bíblia
dos libertários, neo-cons e alt-righters americanos: “A revolta de Atlas”, de Ayn Rand.
Independentemente
dos méritos ou deméritos literários e ideológicos dos livros de Ayn Rand,
autora vendeu um total acumulado de 29 milhões de livros em todo o mundo (dados
de 2013), escreve Observador.pt
Quem
é John Galt?
“A Revolta de Atlas”, de Ayn Rand (Marcador) |
A
revolta de Atlas passa-se numa realidade alternativa que, embora esteja num
estágio de desenvolvimento tecnológico similar ao da época em que foi escrito –
década de 1950 – nos mostra um mundo em declínio: fábricas devoradas pela
ferrugem, estradas rachadas e invadidas pela vegetação, lojas fechadas (mesmo
nas ruas mais buliçosas de Nova Iorque), regressão dos padrões civilizacionais,
com as pessoas fora das grandes cidades a viver em moldes medievais,
contentando-se em praticar agricultura de subsistência e vivendo alheadas do
que se passa fora do seu exíguo mundo de hortas miseráveis e casas decrépitas,
mobiladas com bugigangas pilhadas aos edifícios abandonados da cidade-fantasma
mais próxima.
1ª edição americana de A revolta de Atlas |
O
livro (ou pelo menos a sua primeira parte, sobre a qual se baseiam estas
considerações) centra-se exclusivamente nos Estados Unidos da América, sendo as
menções ao resto do mundo apenas passageiras, mas percebe-se nas entrelinhas
que “lá fora” a situação é ainda pior do que nos EUA. O que terá empurrado a
civilização para este definhar inquietante? Não foi uma guerra mundial, nem a
queda de um meteorito ou uma pandemia devastadora, dir-se-ia que a civilização
está a sucumbir simplesmente à abulia, à extinção da vontade de progresso, ao
desleixo, ao “deixa andar” – e sempre que alguém questiona porque está o mundo
como está e porque se arrastam as pessoas neste torpor, alguém retorque “Quem é
John Galt?”
Um eco moderno de A revolta de Atlas | foto @observador.pt |
Ninguém sabe quem é John Galt e a frase não é sequer uma pergunta,
é simplesmente uma expressão sarcástica de indiferença, passividade e aceitação
de que há questões para as quais não há resposta e problemas para os quais não
há solução.
O
antecedente: The fountainhead
A
revolta de Atlas retoma, em parte, a dicotomia já exposta no outro romance de
grande sucesso de Rand, The Fountainhead, publicado 14 anos antes. De um lado
está o arquitecto Howard Roark, um visionário sobredotado, determinado,
incorruptível e inflexível, do outro uma corja de conformistas, incompetentes e
parasitas, liderada pelo arquitecto Peter Keating e pelo critico de
arquitectura (e socialista) Ellsworth Toohey. Ou seja, é também uma história da
luta do génio solitário e com uma ética de trabalho irrepreensível contra a carneirada
ronhosa e traiçoeira, do inovador contra os imobilistas, do indivíduo
excepcional contra a pulsão colectivista que o quer sufocar.
The
fountainhead é menos esquemático e demonstrativo do que A revolta de Atlas e
são nele menos frequentes as representações caricaturais do socialismo. É
também mais fácil sentir simpatia pela luta de Howard Roark para afirmar a sua
visão artística e defender a sua integridade, do que pelos empresários de A
revolta de Atlas que crêem que ganhar dinheiro é “a maior virtude de todas” e
devotam a isso toda a sua energia.
O
que Rand pensa sobre literatura
Para
Rand, o sucesso comercial é o critério supremo: a personagem Balph Eubank é
ridicularizada por ser “considerado o líder literário da actualidade, mas nunca
escrevera um livro que tivesse vendido mais de 3.000 exemplares” (pg. 183). O
mercado é o único juiz do valor do que é produzido, sejam carris de
caminho-de-ferro – como deixa claro a personagem Hank Rearden (pg. 238) – ou
livros.
[Trecho
do documentário Ayn Rand: A sense of life (1996), realizado por Michael Paxton]
Como
se faz uma inimiga figadal do socialismo
A
juventude de Ayn Rand encerra uma explicação para o seu repúdio do colectivismo
e pela sua defesa feroz do individualismo. Rand nasceu a 2 de Fevereiro de 1905
numa família judia de São Petersburgo e começou por chamar-se Alisa Zinovyevna
Rosenbaum. O pai era proprietário de uma farmácia, a família tinha uma vida
desafogada e Alisa andou numa das melhores escolas da capital russa, o Ginásio
Stoiunina, onde a sua amiga mais chegada era Olga Nabokova (a irmã mais nova de
Vladimir), para cuja mansão familiar era convidada amiúde. A revolução de
Outubro de 1917 pôs termo a essa vida: o pai viu-se expropriada da farmácia e a
família ficou arruinada, passando por muitas privações. Alisa, que foi uma
aluna brilhante, estudou História e Literatura na Universidade Estatal de
Petrogrado (o nome dado a São Petersburgo em 1914), mas o facto de provir de
uma família “burguesa” fez com que fosse expulsa da universidade e só a custo
conseguisse terminar o curso. Ainda assim, a passagem pela universidade terá
sido decisiva na sua formação e mais tarde apontaria o professor Nikolay Lossky, que defendia um sistema filosófico a que chamava “personalismo
intuitivo”, como uma influência determinante na evolução do seu pensamento.
[Excerto
de entrevista de Ayn Rand por Mike Wallace, em 1959: Rand afirma ter
desenvolvido o seu sistema filosófico por si mesma, sem necessidade de recorrer
a outro filósofo para lá de Aristóteles]
Rand
frequentou em seguida o Instituto Politécnico Estatal de Artes Cinematográficas
de Leninegrado (a cidade voltara a ser rebaptizada) e foi com a ambição de ser
guionista (por esta altura já adoptara o pseudónimo literário Ayn Rand) que
desembarcou em Nova Iorque a 19 de Fevereiro de 1926, munida de um visto que
lhe fora concedido para visitar familiares que se tinham instalado nos EUA.
Ayn Rand em 1925 | @Wikipédia |
Porém,
Rand não fazia tenção de regressar ao país natal: o seu fascínio era a América.
As portas de Hollywood não se abriram de par em para ela e teve de contentar-se
com biscates como figurante, revisora de guiões e responsável pelo
guarda-roupa. Em 1932 conseguiu vender um guião à Universal, mas o filme nunca
foi rodado. 1934 foi o ano em que uma peça de sua autoria, Night of January
16th, teve estreia em Hollywood e depois na Broadway e em que escreveu We the
living, que foi recusado por várias editoras antes de ser publicado em 1936 – é
um romance de inspiração autobiográfica, que narra a luta árdua pela
sobrevivência de Kira, a filha de uma família burguesa na Rússia
pós-revolucionária, cujo espírito independente a faz recusar a sujeição aos
moldes impostos pelos bolcheviques. É menos afortunada do que Rand, pois ao
tentar fugir do país é morta por um guarda fronteiriço. A 1ª edição rendeu a
Rand cerca de 100 dólares, mas ao longo dos anos, a reboque do sucesso dos
outros romances, o livro vendeu 3.5 milhões de exemplares.
1ª edição americana de We the living |
Nos
anos 1940, o envolvimento de Rand na campanha eleitoral republicana colocou-a em
contacto com pensadores e autores libertários e defensores da economia de
mercado, nomeadamente com o economista austríaco Ludwig von Mises – é bom
lembrar que na primeira metade dos anos 1940, em resultado da imperiosa
necessidade de fazer face à Grande Depressão e, depois, de combater a Alemanha
e o Japão, a economia dos EUA era fortemente centralizada, mais do que alguns
países ditos socialistas o foram em períodos de paz.
Em
1943, após oito anos de escrita e rejeições por uma dúzia de editoras, surgiu
nas livrarias The fountainhead. Após um arranque lento, o “romance filosófico”
(a designação é da própria Rand) começou a trepar nos tops de vendas ao longo
de 1944-45 – vendeu até hoje 6.5 milhões de exemplares e está traduzido em 20
línguas.
[Trecho de “The
fountainhead”]
[Excerto
de “The fountainhead”: O conselho de administração do Security Bank of
Manhattan tenta convencer Roark a suavizar o projecto da nova sede, que acham
“demasiado diferente, demasiado original”, com uns “toques de dignidade
clássica”. “Há sempre que fazer cedências ao gosto médio”, justificam eles. O
indómito Roark recusa-se a transigir]
Depois
de “A revolta de Atlas”
O
sucesso de A revolta de Atlas – apesar das reacções frias da crítica literária
– levou a que Rand proclamasse numa entrevista ser “o pensador vivo mais
criativo” do mundo. Poderia pensar-se que o sucesso lhe dera volta à cabeça,
mas em textos de 1946 já ela se gabava de que “criar uma abstracção nova e
original e traduzi-la através de novos meios originais [de escrita ficcional]
tanto quanto sei, sou só eu”.
John Galt ganhou finalmente um rosto: em Atlas Shrugged part III (2014) é o actor Kristoffer Polaha; à sua esquerda, Laura Regan, no papel de Dagny Taggart | foto @observador.pt |
A
revolta de Atlas marca uma inflexão na carreira de Rand: daí em diante deixou
de escrever ficção e consagrou-se aos ensaios e ao desenvolvimento e
disseminação do Objectivismo, para o que contou com a ajuda do Ayn Rand Collective,
um círculo íntimo de admiradores que rodeou Rand quando ela se mudou para Nova
Iorque no início dos anos 1950.
[Trecho de “Atlas shrugged
part I” (2011)]
Os
leitores estão com Ayn Rand
A
Reader’s List 100 Best Novels tem nos dez primeiros lugares 1) A revolta de
Atlas, de Rand, 2) The fountainhead, de Rand, 3) Terra: campo de batalha, de L.
Ron Hubbard, 4) O senhor dos anéis, de Tolkien, 5) Não matem a cotovia, de
Harper Lee, 6) 1984, de Orwell, 7) Anthem, de Rand, 8) We the living, de Rand,
9) Missão Terra, de Hubbard e 10) Fear, de Hubbard.
[Trecho de “Atlas shrugged part II: The Strike” (2012)]
[Trecho de “Atlas shrugged part II: The Strike” (2012)]
[Trecho de Atlas shrugged
part III: Who is John Galt? (2014)]
E
as elites políticas e empresariais também…
As
posições de Rand em defesa do mercado livre e da redução da esfera de
influência do Estado e a sua exaltação do génio individualista e do empresário
visionário têm suscitado a adesão de muita figura grada de Silicon Valley e da
“nova economia digital”: é o caso de Steve Jobs, para quem A revolta de Atlas
foi (segundo o seu amigo e parceiro de negócios Steve Wozniak) um livro que
norteou a sua vida; de Travis Kalanick, ex-CEO da Uber; de Peter Thiel, um dos
primeiros investidores a apostar no Facebook e um apoiante de Trump; de Evan
Spiegel, co-fundador e CEO da Snapchat e um dos mais jovens bilionários do
mundo; ou de Mark Cuban, milionário dos media, dono da equipa de basquetebol
Dallas Mavericks e um dos “tubarões” do programa Shark tank, que declarou em
2006 que The Fountainhead lhe moldou o modo de pensar e a atitude perante a
vida.
Paul Ryan | foto @observador.pt |
Paul
Ryan, uma das figuras cimeiras do Partido Republicano e que ocupa hoje a
posição de speaker na Câmara dos Representantes, declarou que cresceu com os
livros de Rand e que foram eles que o levaram a abraçar uma carreira política.
É um activo prosélito do Objectivismo, tendo oferecido um exemplar de A revolta
de Atlas a cada membro da sua equipa e, como Rand, vê a Segurança Social como
um sistema de inspiração socialista (note-se que, na sua boca e nos ouvidos dos
seus eleitores, “socialismo” é uma palavra suja). Mais reveladora ainda é a
declaração de 2009 em que Ryan vê a situação dos EUA e do mundo como saída de
“um romance de Ayn Rand. Acho que Ayn Rand fez melhor do que qualquer outra
pessoa, a justificação moral do capitalismo e que essa moralidade do
capitalismo está hoje sob ataque”.
Ayn Rand
e direita americana
Manifestação do Tea Party, em Chicago, 2009: um dos manifestantes identifica-se como John Galt, um dos heróis de A revolta de Atlas |
[Último
discurso público de Rand, em Outubro de 1981]
Ayn
Rand e os eleitores americanos
Numa
entrevista televisiva realizada pouco depois do discurso no National Committee
for Monetary Reform, em 1981, Rand detalhou alguns aspectos da sua visão da
situação política americana da altura: acusou os homens de negócios americanos
de terem vergonha de terem enriquecido e de financiarem universidades que
promovem propaganda anti-capitalista e reprovou Reagan por ter um pendor
demasiado… socialista: “Não é o advogado adequado do capitalismo; ele não é a
favor do capitalismo, defende uma economia mista”. E conclui Rand: “o público
está farto do Estado social [Welfare State] e gostaria de regressar a um
americanismo racional”.
[Uma
das últimas entrevistas de Ayn Rand, com Louis Rukeseyer, em 1981]
Tem também ampla
expressão – não só na América – a ideia – claramente transmitida em A revolta
de Atlas – de que o capitalismo é a forma mais eficaz de gerar riqueza e que
esta, mesmo que beneficie mais os capitalistas, acaba por espalhar as suas
bençãos a toda a sociedade, enquanto o socialismo é tão obcecado com a
redistribuição e a igualdade que acaba por coarctar e minar as iniciativas dos
empresários visionários e debilitar a economia, condenando toda a sociedade à
pobreza – uma pobreza que oferece o dúbio consolo de ser igualitária.
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