A
organização russa de direitos humanos Memorial recorda, numa
exposição pública, o destino dos primeiros prisioneiros políticos do regime
bolchevique, os cidadãos presos nos primeiros dias e meses da existência do
governo soviético – desde o golpe comunista até a dispersão da Assembleia
Constituinte (25 de outubro de 1917 – 4 de janeiro de 1918), escreve El
Pais.
Morte à burguesia e aos seus capangas. Viva o terror vermelho!! foto do arquivo | 1918 |
A
exposição mostra os retratos e biografias de 54 pessoas, as primeiras vítimas
da repressão política soviética. Para recuperar os seus destinos são usadas as fotografias,
documentos arquivísticos (materiais dos seus processos políticos) e a
publicação de numerosos jornais no final de 1917, que, apesar da censura
bolchevique, conseguiriam, por alguns meses, publicar a informação sobre as práticas
repressivas do novo poder soviético. A galeria de retratos fecha com imagem de
Ivan Manukhin, o médico da prisão da fortaleza de Pedro e Paulo em Petrogrado,
que negociou resgates pela libertação dos prisioneiros e acabou exilando-se na
França.
"As cadeias bolcheviques" Jornal "Sovremennoe Slovo", 28/12/1917 fonte @Memorial |
Nesses
meses turbulentos, as instituições do antigo regime entraram em colapso e os bolcheviques
que depuseram o governo provisório de Alexandre Kerensky ainda não
sistematizavam a polícia e o aparelho de justiça. O jornalista, historiador e
editor Vladimir Burtsev
foi o primeiro a ser preso quando o cruzador “Aurora” ainda não havia dado o
sinal de assalto do Palácio de Inverno. Detidos de forma breve, seguiram um militar
(general Jaques Bagratuni,
cunhado de Kerensky) e um ministro do governo provisório. As prisões estavam
cheias, havia sérios problemas como escassez, guerra, a busca de uma paz
separada com a Alemanha. A resistência aos bolcheviques ainda era escassa. Os carcereiros
poderiam permitir-se libertar os prisioneiros da revolução com rapidez. Os
jornais da época, as memórias e os arquivos estaduais são as fontes que Borís
Belenkin, membro da direção do Memorial e responsável pela sua coleção de
documentos, utilizou na montagem da exposição. Alguns retângulos brancos
estilizados e lacónicos, decorados com fotografias “esbatidas” marcam as
paredes da sede do Memorial. Em cada retângulo, um destino, dos ministros do
governo provisório dominado pela revolução, aos industriais e banqueiros, aos
militares, economistas, médicos, arquitetos, sacerdotes e ateus, funcionários,
estudantes, homens e mulheres, judeus e anti-semitas.
Vladimir Burtsev, fotógrafo desconhecido. Artigo sobre a sua detenção. Jornal "Narodnoe Slovo", 28/10/1917 fonte @Memorial |
Ao
sair da prisão, os primeiros detidos em parte emigraram, em parte, ficaram novamente
presos, no futuro. A maioria, diz Belenkin, “estão em Sainte Geneviève des Bois
[cemitério de Paris onde descansam os restos de muitos emigrantes russos],
pereceram em algum lugar no GULAG ou foram fuzilados e enterrados em valas
comuns”.
Pedido de transferência dos presos devido à sobrelotação das cadeias. Petrogrado, 28/11/1917 Arquivo Estatal da Federação Russa fonte @Memorial |
De
sua cela na fortaleza de Pedro e Paulo, Burtsev escreveu as memórias de um
ministro czarista alojado na cela adjacente, com quem se comunicava batendo na
parede. Quando foi libertado, em fevereiro de 1918, ele emigrou para Paris,
onde morreu na pobreza. Na prisão, o engenheiro Peter Palchinsky, que
organizou a resistência ao assalto ao Palácio de Inverno, estava tecendo cestos. Libertado, mais tarde ele colaborou com as autoridades soviéticas na implementação do seu plano de eletrificação e foi fuzilado em
1929, acusado de conspirar contra a economia soviética.
A ordem de buscas domiciliares emitido em 30/12/1917 contra pianista, maestro e compositor nascido na Ucrânia, Alexander Siloti fonte @Memorial |
Entre
os primeiros a serem presas, também estava Sofia Pánina, uma rica
aristocrata russa a quem chamavam de “princesa vermelha”. Filantropa e promotora
do movimento de libertação feminina, Pánina construiu uma casa de aldeia
para receber e educar crianças e adultos em São Petersburgo. Foi deputada da
Duma municipal de Petrogrado e participou no Governo Provisório. Os
bolcheviques a acusaram de desperdiçar fundos públicos. Pánina ajudou o movimiento
branco (monárquico), emigrou e está enterrada em Nova Iorque.
Sofia Pánina em 1913 e artigo sobre a sua prisão, jornal "Sovremennoe Slovo", 03/12/1917 fonte @Memorial |
Interessante
é a figura de Pavel Dolgorukov,
um dos líderes dos cadetes (do partido liberal dos Democratas Constitucionais,
conhecido como KD em sua sigla russa), formado em física e matemática, proprietário
de terras, pacifista e seguidor de escritor Lev Tolstoi. Ele foi exilado da
Crimeia e queria estabelecer ligações entre a emigração e a Rússia soviética,
onde ele chegou ilegalmente duas vezes. Na segunda vez, em 1926, foi detido
e preso. Foi fuzilado em Kharkiv com cerca de 20 outros reféns em retaliação
pelo assassinato do representante soviético na Polónia.
Nomes
ilustres
Na
fortaleza, Alexandr Vyshnegradski, banqueiro, industrial e filho de um ministro
das finanças czarista, compunha música e uma de suas obras foi tocada nas
instalações do Memorial na abertura da exposição. Entre os detidos também estava
Vladimir Nabokov, professor de Direito e pai do escritor do mesmo nome. Ele
morreu assassinado em Berlim em 1922. Serguéi Tretyakov, fabricante e membro da
família fundadora da famosa galeria de Moscovo, que recebeu o nome dele, teve
pouca sorte. Tretyakov colaborou com o governo soviético e morreu em um campo
de concentração alemão, fuzilado pela Gestapo em 1944. Mónaco foi o destino
final de Mikhail Teréshchenko,
Ministro das Finanças e dos Negócios Estrangeiros do Governo Provisório, industrial
e empresário açucareiro. Da família Teréschenko existem em Kyiv, na Ucrânia, as mansões que
abrigam o Museu da arte russa [desde
março de 2017 o Museu
Nacional “Galeria de Arte de Kyiv”] e o Museu de Arte Ocidental.
Mikhail Teréshchenko foto @Wikipédia |
Belenkin estima que nos
últimos meses de 1917, várias centenas de pessoas foram presas em Petrogrado e
várias centenas mais em Moscovo. A polícia política do novo regime foi
sistematizada apenas à partir de dezembro de 1917 quando foi criada a Comissão
Extraordinária de Luta com a Contra-revolução e Sabotagem [a famigerada CheKa].
A exposição não documenta qualquer pena de morte. Em vez disso, inclui algumas
vítimas de linchamentos, um padre, um deputado da Duma e dois líderes dos
cadetes.
1 comentário:
Excelente artigo. Além de resgatar fotos das primeiras vítimas da Revolução Bolchevique, traz muitos dados históricos até então desconhecidos do grande público, o que revela o minucioso trabalho de investigação levado a efeito pelo autor!
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