No
seu livro “Vestidas
para uma dança na neve” a escritora e tradutora checa Monika Zgustová revela
nove testemunhos femininos sobre os campos soviéticos de concentração e extermínio,
um “outro Holocausto”, ignorado pela esquerda por décadas.
Numa
viagem à Moscovo em setembro de 2008, Monika Zgustová participou, por
intermédio do historiador [escritor e poeta russo] Vitali Shentalinski, num
encontro de ex-prisioneiros de GULAG. “Fiquei surpresa ao ver muitas mulheres,
uma grande percentagem eram judias, naquela noite literária e política”, diz ela.
Zayara Vesiólaya na década de 1940 foto @bessmertnybarak.ru |
Uma
desses sobreviventes do extermínio estalinista, o “outro Holocausto” ignorado
pela esquerda há décadas, Zayara Vesiólaya [filha do escritor Artem Vesióliy,
fuzilado em 1938], mostrou cadernos: poemas manuscritos memorizados às noites.
A conversa abriu a porta aos outros depoimentos: uma frase de Zayara inspirou o
título deste livro elaborado ao longo de nove anos de viagens à capital russa.
Assim, Zayara lembrou sua prisão, numa noite em abril de 1949 em um jantar
familiar no komunalka
(apartamento comunal). Detida pela polícia armada, ela partiu ao caminho do
horror: “Eu deixei a casa vestida como se fosse para um baile. Usava uma
elegante blusa preta até o joelho, uma elegante blusa vermelha com muitos
botões e sapatos de salto alto”. Nos campos da Sibéria, Zayara foi consolada
pela poesia e pelo “Concerto para violino” de Mendelssohn, interpretado por um outro
prisioneiro, Nikolái Bilétov.
“A
resistência humana sustentada pela cultura é o melhor exemplo dessas mulheres”,
explica Zgustová e ressalta as nuances da forma como as mulheres e os homens sofrem.
Elas são mais otimistas; eles, mais fatalistas: “Nenhuma quis renunciar o
período de vida nos campos de [GULAG]; nas experiências fortes, o mal é
terrível, mas o bem é maravilhoso. O grande tesouro das mulheres do GULAG é a
amizade”.
Elena Korybut-Daszkiewicz, década de 1940 foto @elperiodico.cat |
Ao
estilo da escrita de Nobel de literatura, Svetlana Alexeiévich, “Vestidas para
uma dança na neve” prioriza as vozes e identifica seus interlocutores com a
mulher de Ló, Penélope, Judie, Minerva, Psique, Antígona, Ulisses, Ariadne e
Eurídice. Heroínas míticas do GULAG. Dos testemunhos dolorosos, Zgustová destaca
o da [enfermeira] Elena Korybut-Daszkiewicz. Residindo em uma “khrushovka” – prédios horíveis
construídos pelo Khrushchev, nos arredores de Moscovo – em 1943 ela estava presa
em Kotlas [na Lituânia], um dos campos mais mortíferos do GULAG soviético. Lá
trabalhou nas minas e começou a estudar aos quarenta anos, até se tornar uma
autoridade na área de cibernética [e informática]. Elena transformou seu pequeno apartamento em
um aconchegante casarão que contrastava com as escadas desleixadas com rastos
de ratos. “Como a maioria das mulheres no GULAG ela não podia caminhar bem ou
ficar de pé por muito tempo. A causa desse impedimento foi a desnutrição
prolongada desses anos”, sublinha Zgustová.
Susan(n)a Pechuro após a sua libertação do GULAG em 1956 |
As
mulheres que tentaram formar uma família com filhos, muito distantes à sua
experiência. Mulheres casadas com ex-prisioneiros do GULAG para se sentirem
compreendidas. Aos dezassete anos Susan(n)a
Pechuro recebeu a passagem da morte na [sede de NKVD] de Lubianka.
Anteriormente, ele denunciou a escola comunista [soviética] na promoção do anti-semitismo
e na falsificação da história: “Nos ensinaram que todas as coisas importantes
do mundo tinham sido feitas pelos russos, que os grandes descobridores eram
russos e apenas russos, como os grandes escritores, pintores e compositores. Os
estudantes protestaram. Eles não queriam esquecer os nomes como Newton,
Shakespeare e Beethoven”. Susanna voltou-se aos autores proibidos: Akhmatova,
Mandelstam, Tsveitáieva, Blok, Gumiliov...
Lina Procofieva (nascida Carolina Codina) foto @ABC |
Quando, em 1952, um comboio/trêm nojento
a cuspiu com outros presos na cidade de Intá, conheceu uma mulher com porte
aristocrático [a cantora de origem espanhola/catalã] Lina [Prokofieva], a esposa do compositor Serguei
Prokofiev. O martírio de Susana não terminou até 1956, o ano do degelo [do
Khruschov]: Lina e ela foram reabilitadas.
Natalia Gorbanevskaya, final da década de 1960 foto@ABC |
De
todas as entrevistadas, a mais difícil foi Natalya
Gorbanevskaya (1936-2013). A tradutora russa de Czeslaw Milosz, em 1968,
fazia parte da dissidência [soviética] que seguia pela rádio a Primavera de
Praga. Após a sua prisão
[na sequência de manifestação na Praça Vermelha em 25 de agosto de 1968], ela
foi declarada incapacitada por esquizofrenia progressiva e foi internada compulsivamente
no hospital psiquiátrico de Kazan: foi medicada por drogas que lhe causaram a
doença de Parkinson e perda de memória: “Ela estava relutante em reviver esse
episódio traumático de forma detalhada. No final da entrevista, ele me expulsou
do apartamento”, conta Zgustová. [A cantora Joan Baez dedicou lhe uma canção
chamada “Natalia”, do álbum “From Every Stage” (1976).]
O escritor Borís Pasternak, com o seu último amor, Olga Ivínskaya, e a filha dela, Irina Emeliánova foto @elperiodico.cat |
Os
infernos nevados testemunham os depoimentos, como da Irina Emeliánova, a filha
de Olga Ivínskaya, o último amor do [escritor] Boris Pasternak, que inspirou a
Lara do “Dr. Zhivago”. Presa em 1949, Olga nunca falou sobre Pasternak.
Atormentado pelo remorso, o escritor compartilhou seu amor entre a sua esposa
Zinaida e Olga, a mulher que conhecia seus poemas de cor. Em uma [outra] ficha
penitenciária, os olhos claros de Ariadna Efrón, a filha de [poetisa] Marina
Tsvetáieva.
Tradutora, poetisa, pintora, escritora Ariadna Efrón (1912-1975), durante a sua 1ª prisão em 1939, acusada de espionagem foi condenada aos 8 anos de GULAG foto @arquivos de NKVD | bookworm-quotes.blogspot.com |
A jovem atriz Valentina Íevleva (1928) condenada em janeiro de 1947 aos 6 anos do GULAG, acusada de "propaganda anti-soviética" (caso amoroso com um marinheiro americano) foto @elperiodico.cat |
Atriz soviética Tatiana Okunévskaia (1914-2002), condenada em novembro de 1948 aos 10 anos do GULAG pela "propaganda anti-soviética" (caso amoroso com um estrangeiro) foto @Wikipédia |
Tal como
aconteceu no livro “A
mulher silenciosa” (2005), Monika Zgustová traz com “Vestidas para uma
dança na neve” mais testemunhos sobre o GULAG. “O fascismo e o comunismo se tocam,
mas não há equilíbrio entre a abundante bibliografia sobre o nazismo e a que se
refere ao estalinismo”, diz a escritora. No centenário da revolução russa, Zgustová
recorda um dos [pontos] de acordos de Yalta: “Devolver à URSS dois milhões de
refugiados russos [soviéticos] da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos: todos
acabaram na Sibéria”.
Faça click para ver mais e/ou comprar livro |
Sem comentários:
Enviar um comentário