quinta-feira, outubro 19, 2017

Abusos físicos, psicológicos, bulling e tortura no exército soviético

Um dos marcos distintivos do exército soviético era o seu sistema informal, mas largamente existente de dedovshchina que englobava uma variedade de atividades de subordinação e humilhação dos recrutas novatos: desde a execução das tarefas menos cativantes até aos abusos físicos e psicológicos violentos e às vezes letais, bullying e mesmo a tortura. Sistema conhecido, mas encoberto pelo corpo de oficiais.
A foto atual do exército russo: os soldados do Daguestão humilham
os colegas de outras etnias, incluindo os russos. Foto @Internet
Tal, como em muitas outras esferas de vida social, na esfera militar soviética tudo estava virado de cabeça para baixo – os militares profissionais dos exércitos de países ocidentais, pessoas treinadas, motivadas e profissionais, eram chamados de “mercenários vergonhosos”, e o bando de ex-alunos de secundário, que de forma gratuita “pagava o tributo” à “mãe-pátria”, era considerado como o cúmulo do desenvolvimento militar. É de notar que o mesmo sistema, permanece bastante vivo e com pouquíssimas diferenças nos atuais exércitos russo e belaruso. E praticamente desapareceu no exército ucraniano. 

1. Como tudo começou

No fim da II G.M. diversos militares do Exército Vermelho não foram desmobilizados, o que originava certas tensões entre eles e os novatos. Não existe a estatística viável de número das vítimas deste sistema naquela época, vítimas que voltavam do exército soviético fisicamente ou mentalmente perturbados, nos casos extremos – mortos. As causas sempre eram “naturais”: acidentes mortais, mais raramente o suicídio.

A segunda onda de dedovshchina começou em 1967 — a duração do SMO foi diminuída de 3 aos 2 anos na infantaria e de 4 aos 3 anos na marinha. Os soldados “veteranos” imediatamente odiaram os “novatos” que iriam servir um ano à menos. Os abusos eram menos sentidos nas unidades subordinadas ao GRU, ao KGB (guarda-fronteira), entre os pára-quedistas; as piores situações decorriam nas unidades de infantaria móvel, nas formações de engenharia militar (stroybat), de transporte e logística, etc, onde servia todo tipo de recrutas, vindos de toda a União Soviética.
Devido à crise demográfica, originada pelas perdas conceituadas de homens soviéticos na II G.M., em algum momento o exército soviético estava admitir os recrutas com o passado criminal. No entanto, a liderança soviética queria, a todo custo, manter o número de soldados no exército ao nível de 5 milhões de pessoas – facto que contribuiu para que nas casernas soviéticas reinasse o espírito do sistema prisional. Bulling e abusos eram praticados mesmo nas unidades soviéticas estacionadas no Afeganistão. Nem a participação numa guerra real diminuiu as humilhações dos recrutas.

2. Interior do sistema perverso

A específica dos ramos de exército ditava o nível de dedovshchina praticada. Nas unidades de mísseis e de forças especiais serviam poucos soldados e muitos sargentos e oficiais, os pára-quedistas, guarda-fronteira e spetsnaz permanentemente lidavam com as armas, os abusadores tinham a chance real de receber uma bala nas costas.
Já nas unidades de infantaria móvel, de engenharia militar, de transporte e de logística, a dedovshchina era absolutamente comum, em muitas casernas as regras não diferiam muito das praticadas nas cadeias soviéticas. Hierarquia era a seguinte — soldado que servia menos de 1 ano era designado de “dukh” (espírito) e fazia parte de uma casta abusada e humilhada, tinha obrigação de executar todas as ordens dos “veteranos” (muitas vezes degradantes e sem nenhum sentido). Servindo um ano, o nosso “dukh” se transformava em “cherpak” (concha) — subclasse entre “dukh” e “ded” (avô) / “dedushka” (avozinho). “Ded/dedushka” era o soldado que serviu no exército um ano e meio e à quem restava apenas seis meses até a desmobilização.
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Os novatos que tentavam resistir ao sistema eram espancados e humilhados, até mesmo estuprados. Antes da Perestroika estes casos raramente eram conhecidos pelo público geral. A pessoa que as relatasse, podia ser acusada de “denegrir a imagem do soldado soviético” — como aconteceu com a escritora belarusa Svetlana Alexievich após a publicação do seu livro Rapazes de Zinco. Em 1987 a imprensa soviética publicou a história arrepiante do jovem lituano Artūras Sakalauskas (1961), que em resultado de humilhações contínuas e absolutamente degradantes abateu à tiro os sete colegas, pertencentes às tropas do ministério do interior.
Artigo da imprensa soviética sobre o filme “A bandeira de tijolos” („Vėliava iš plytų“)
A sequência do filme The Guard (Karaul) de 1990
O caso foi de tal maneira sonante que originou logo dois filmes, em 1988 saiu a película documental “A bandeira de tijolos” („Vėliava iš plytų“) do realizador lituano Saulius Beržinis e em 1990 The Guard (Karaul) do realizador russo Aleksandr Rogozhkin.
Além disso, no exército soviético funcionavam as comunidades informais étnicas. Essas comunidades eram fracas ou inexistentes entre os eslavos (russos, belarusos, ucranianos), mas muito expressas entre os arménios, os dagestães, os chechenos e os azeris. Se numa unidade servissem pelo menos 4-5 chechenos, eles geralmente ditavam as regras, defendendo “os seus”, independentemente do estatuto hierárquico de cada um deles.

3. O pacto de silêncio

Sempre existiam no exército soviético e existem no exército russo ou belaruso os oficiais dignos que nunca compactuaram com este sistema. Mas a maioria dos oficiais estava e está completamente satisfeita com a situação. O sistema do exército soviético foi organizado de tal forma que era impossível sobreviver, agindo de acordo com o estatuto oficial, os soldados eram colocados em condições insuportáveis – de facto, de acordo com os regulamentos, o seu superior podia obrigar o subordinado à executar qualquer coisa que desejar, nem que seja cavar uma vala “daqui até ao almoço”.
Por isso, o próprio sistema, que permitia certos privilégios aos “veteranos”, era considerado bastante normal. Os “avôs” mandam em “dukh” e “mantinham a ordem” no quartel, essa situação satisfazia completamente os oficiais, que faziam a “vista grossa” aos abusos. Ao contrário de soldados (que após 2 anos de serviço militar voltavam à vida civil, esquecendo o exército soviético como um pesadelo), o oficial tinha uma carreira militar que muito facilmente podia se arruinar - e, portanto, os casos de abusos eram escondidos entre as paredes do quartel, entre oficiais e “avós” houve um pacto silencioso – vocês “cuidam da ordem”, nos fechamos os olhos aos vossos abusos.
É por isso que uma grande parte das mortes e lesões resultantes de bulling, nos documentos era registado como “acidentes”, traumas no decorrer dos exercícios militares, suicídios, desculpas no estilo de “caiu da árvore sobre o machado”. Mesmo no caso de um claríssimo espancamento do novato pelos “avôs”, o oficial tentava, de todas as maneiras possíveis, proteger os agressores – culpando a vítima. Pois, caso contrário, ficaria registado o facto de “relações não estatutários”, o que pode acabar com a carreira militar do oficial.

4. Eco do exército soviético

Muito recentemente, Balarus foi chocada pela morte do jovem militar Alexander Korzhych, classificada, pelo Ministério da Defesa e pelo Comité de Investigação do país, como “suicídio, sem indícios de índole criminal”.
RIP Alexander Korzhych
No entanto, os familiares do jovem alertaram a imprensa: o corpo do Alexander estava marcado pelos diversos hematomas e traumas. Mais tarde se soube que jovem “suicidou-se” com os “pés atados e uma t-shirt na cabeça”. Só nessas circunstâncias a justiça belarusa abriu o processo criminal, neste momento já foram presas 10 pessoas implicadas na morte do soldado. No entanto, “pela iniciativa do Ministério da Defesa” da Belarus, as autoridades do país bloquearam o acesso à página zvarot.by que reunia as assinaturas dos cidadãos que exigiam que este caso seja investigado.

Fotos @GettyImages | Internet | Texto Maxim Mirovich e @Ucrânia em África

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