Um
dos marcos distintivos do exército soviético era o seu sistema informal, mas
largamente existente de dedovshchina
que englobava uma variedade de atividades de subordinação e humilhação dos
recrutas novatos: desde a execução das tarefas menos cativantes até aos abusos
físicos e psicológicos violentos e às vezes letais, bullying e mesmo a tortura.
Sistema conhecido, mas encoberto pelo corpo de oficiais.
A foto atual do exército russo: os soldados do Daguestão humilham os colegas de outras etnias, incluindo os russos. Foto @Internet |
Tal,
como em muitas outras esferas de vida social, na esfera militar soviética tudo estava
virado de cabeça para baixo – os militares profissionais dos exércitos de países
ocidentais, pessoas treinadas, motivadas e profissionais, eram chamados de “mercenários
vergonhosos”, e o bando de ex-alunos de secundário, que de forma gratuita “pagava
o tributo” à “mãe-pátria”, era considerado como o cúmulo do desenvolvimento
militar. É de notar que o mesmo sistema, permanece bastante vivo e com
pouquíssimas diferenças nos atuais exércitos russo e belaruso. E praticamente
desapareceu no exército ucraniano.
1.
Como tudo começou
No
fim da II G.M. diversos militares do Exército Vermelho não foram desmobilizados,
o que originava certas tensões entre eles e os novatos. Não existe a estatística
viável de número das vítimas deste sistema naquela época, vítimas que voltavam
do exército soviético fisicamente ou mentalmente perturbados, nos casos
extremos – mortos. As causas sempre eram “naturais”: acidentes mortais, mais
raramente o suicídio.
A segunda
onda de dedovshchina começou
em 1967 — a duração do SMO foi diminuída de 3 aos 2 anos na infantaria e de 4 aos
3 anos na marinha. Os soldados “veteranos” imediatamente odiaram os “novatos” que
iriam servir um ano à menos. Os abusos eram menos sentidos nas unidades
subordinadas ao GRU, ao KGB (guarda-fronteira), entre os pára-quedistas; as
piores situações decorriam nas unidades de infantaria móvel, nas formações de
engenharia militar (stroybat), de transporte e logística, etc, onde servia todo
tipo de recrutas, vindos de toda a União Soviética.
Devido
à crise demográfica, originada pelas perdas conceituadas de homens soviéticos
na II G.M., em algum momento o exército soviético estava admitir os recrutas
com o passado criminal. No entanto, a liderança soviética queria, a todo custo,
manter o número de soldados no exército ao nível de 5 milhões de pessoas – facto
que contribuiu para que nas casernas soviéticas reinasse o espírito do sistema
prisional. Bulling e abusos eram praticados mesmo nas unidades soviéticas
estacionadas no Afeganistão. Nem a participação numa guerra real diminuiu as
humilhações dos recrutas.
2.
Interior do sistema perverso
A
específica dos ramos de exército ditava o nível de dedovshchina praticada. Nas unidades
de mísseis e de forças especiais serviam poucos soldados e muitos sargentos e oficiais,
os pára-quedistas, guarda-fronteira e spetsnaz permanentemente lidavam com as
armas, os abusadores tinham a chance real de receber uma bala nas costas.
Já
nas unidades de infantaria móvel, de engenharia militar, de transporte e de
logística, a dedovshchina era absolutamente comum, em muitas casernas as regras
não diferiam muito das praticadas nas cadeias soviéticas. Hierarquia era a seguinte
— soldado que servia menos de 1 ano era designado de “dukh” (espírito) e fazia
parte de uma casta abusada e humilhada, tinha obrigação de executar todas as
ordens dos “veteranos” (muitas vezes degradantes e sem nenhum sentido). Servindo
um ano, o nosso “dukh” se transformava em “cherpak” (concha) — subclasse entre
“dukh” e “ded” (avô) / “dedushka” (avozinho). “Ded/dedushka” era o soldado que serviu no exército um ano
e meio e à quem restava apenas seis meses até a desmobilização.
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Os
novatos que tentavam resistir ao sistema eram espancados e humilhados, até mesmo
estuprados. Antes da Perestroika estes casos raramente eram conhecidos pelo público
geral. A pessoa que as relatasse, podia ser acusada de “denegrir a imagem do
soldado soviético” — como aconteceu com a escritora belarusa Svetlana
Alexievich após a publicação do seu livro Rapazes
de Zinco. Em 1987 a imprensa soviética publicou a história arrepiante do
jovem lituano Artūras
Sakalauskas (1961), que em resultado de humilhações contínuas e absolutamente
degradantes abateu à tiro os sete colegas, pertencentes às tropas do ministério do
interior.
Artigo da imprensa soviética sobre o filme “A bandeira de tijolos” („Vėliava iš plytų“) |
A sequência do filme The Guard (Karaul) de 1990 |
O
caso foi de tal maneira sonante que originou logo dois filmes, em 1988 saiu a
película documental “A bandeira de tijolos” („Vėliava iš plytų“) do realizador
lituano Saulius Beržinis
e em 1990 The Guard
(Karaul) do realizador russo Aleksandr Rogozhkin.
Além
disso, no exército soviético funcionavam as comunidades informais étnicas. Essas comunidades
eram fracas ou inexistentes entre os eslavos (russos, belarusos, ucranianos), mas
muito expressas entre os arménios, os dagestães, os chechenos e os azeris. Se numa
unidade servissem pelo menos 4-5 chechenos, eles geralmente ditavam as regras, defendendo
“os seus”, independentemente do estatuto hierárquico de cada um deles.
3.
O pacto de silêncio
Sempre
existiam no exército soviético e existem no exército russo ou belaruso os oficiais
dignos que nunca compactuaram com este sistema. Mas a maioria dos oficiais
estava e está completamente satisfeita com a situação. O sistema do exército
soviético foi organizado de tal forma que era impossível sobreviver, agindo de
acordo com o estatuto oficial, os soldados eram colocados em condições
insuportáveis – de facto, de acordo com os regulamentos, o seu superior podia
obrigar o subordinado à executar qualquer coisa que desejar, nem que seja cavar
uma vala “daqui até ao almoço”.
Por
isso, o próprio sistema, que permitia certos privilégios aos “veteranos”, era considerado
bastante normal. Os “avôs” mandam em “dukh” e “mantinham a ordem” no quartel, essa
situação satisfazia completamente os oficiais, que faziam a “vista grossa” aos
abusos. Ao contrário de soldados (que após 2 anos de serviço militar voltavam à
vida civil, esquecendo o exército soviético como um pesadelo), o oficial tinha uma
carreira militar que muito facilmente podia se arruinar - e, portanto, os casos
de abusos eram escondidos entre as paredes do quartel, entre oficiais e “avós”
houve um pacto silencioso – vocês “cuidam da ordem”, nos fechamos os olhos aos vossos abusos.
É
por isso que uma grande parte das mortes e lesões resultantes de bulling, nos
documentos era registado como “acidentes”, traumas no decorrer dos exercícios
militares, suicídios, desculpas no estilo de “caiu da árvore sobre o machado”.
Mesmo no caso de um claríssimo espancamento do novato pelos “avôs”, o oficial
tentava, de todas as maneiras possíveis, proteger os agressores – culpando a
vítima. Pois, caso contrário, ficaria registado o facto de “relações não
estatutários”, o que pode acabar com a carreira militar do oficial.
4.
Eco do exército soviético
Muito
recentemente, Balarus foi chocada pela morte do jovem militar Alexander Korzhych,
classificada, pelo Ministério da Defesa e pelo Comité de Investigação do país, como
“suicídio, sem indícios de índole criminal”.
RIP Alexander Korzhych |
No
entanto, os familiares do jovem alertaram a imprensa: o corpo do Alexander estava marcado
pelos diversos hematomas e traumas. Mais tarde se soube que jovem “suicidou-se” com os “pés
atados e uma t-shirt na cabeça”. Só nessas circunstâncias a justiça belarusa abriu
o processo criminal, neste momento já foram presas 10 pessoas implicadas na
morte do soldado. No entanto, “pela iniciativa do Ministério da Defesa” da Belarus,
as autoridades do país bloquearam o acesso à página zvarot.by que reunia as assinaturas
dos cidadãos que exigiam que este caso seja investigado.
Fotos
@GettyImages | Internet | Texto Maxim Mirovich e @Ucrânia em África
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