A
morte recente do primeiro bruxo televisivo soviético, Allan Chumak,
leva à perguntar: como os fãs da União Soviética e da sua “ótima formação
soviética” (“a melhor do mundo”) explicam a fé massificada dos cidadãos soviéticos
no sobrenatural — o processo de “carregamento” dos frascos de água, em “sessões”
da TV soviética no fim da década de 1980.
Como
recorda o veterano fotógrafo soviético/russo Mark Shteinbok, autor da foto inicial
à preto-e-branco, chamada “Público na performance do Allan Chumak”: “Fotografar
foi muito fácil. Apareci, fiquei junto ao palco. Os rostos eram muito
expressivos. Fiquei impressionado com as mulheres mais idosas com sacolas cheias
de frascos com água da torneira. Chumak, em opinião delas, a transformava numa água
curativa, que curava todas as doenças”.
É
de notar que entre o público que usava os tais frascos não estavam apenas as
vovós vindas do interior profundo, havia muita gente com a “formação superior
soviética”, a tal, que os mesmos acreditam seriamente, era a melhor do mundo.
02.
Em 1989, a televisão soviética começou a transmitir as “sessões de Allan Chumak”
– em forma de aparecimento de um homem com aparência intelectual, de óculos,
que primeiramente explicava “o que vamos curar hoje”, e depois, durante alguns
minutos fazia os passes com as mãos, exercendo a sua “sessão”. A “sessão” típica
na TV:
03.
Na segunda ou terceira “sessão”, Allan Chumak sugeriu colocar os frascos de
água em frente dos seus televisores, além dos cremes, bálsamos, etc., – no fim
da “sessão”, os frascos supostamente estariam “carregados” e curariam várias doenças.
Nenhum dos fãs de Chumak tentou perceber o mecanismo do tal processo físico ou
químico de “carregamento”, como exatamente essa “carga” deveria passar através
da telinha de um televisor convencional, como a “carga” saberia que era necessário
“carregar” o frasco de água e não a mesa debaixo dela – poucas pessoas pensavam
nessas questões, acreditando piamente que a água ficaria “carregada”.
As
“sessões” de Chumak se tornaram um evento bastante memorável da história
soviética dos seus anos finais, chegando fazer parte da “vida tipicamente
soviética”, como foi retratado pela Zoya
Cherkassky-Nnadi.
04.
Após uma série de “sessões” televisivas, Chumak, fez a digressão global pela
URSS, atuando quer em grandes salas de concertos (a primeira foto da postagem),
quer nas instituições, realizando as “sessões de cura” aos coletivos de
trabalho. Após a “sessão”, era possível comprar as fotografias ou cartazes do
Chumak, que deviam ser aplicados (Sic!) nos lugares doridos, “para curar”.
Vejam
a foto acima – a imagem mostra claramente que o seu público não era dos
velhotes analfabetos, mas cidadãos soviéticos formados, a inteligentsia. Muitas
dessas pessoas também acreditavam em “carregamento dos frascos de água através
do televisor”.
05.
Sensivelmente ao mesmo tempo, surgiram as “sessões” televisivas do “terapeuta
psíquico” Anatoly Kashpirovsky,
semelhantes às “sessões” de Chumak. No entanto, Kashpirovsky não prometia “carregar”
os frascos de água, simplesmente conduzia as “sessões gerais de saúde”. Chumak
e Kashpirovsky eram, de fato, concorrentes e se desgostavam mutuamente –
Kashpirovsky chamava Chumak de “charlatão e nem tão pouco extra-sensorial”, e
Chumak chamava Kashpirovsky de “hipnotizador e não um curador”.
Surge
uma pergunta muito interessante – à onde, de fato, foi a formação soviética tal
alardeada se as pessoas acreditassem em “carregamento” de frascos de carga através
da TV e cura com ajuda de fotos, colocadas no cú?
A
resposta à esta questão é extremamente simples: a formação soviética não ensinava
a pensar de forma independente, não ensinava à achar analogias e relações
causa-efeito, não ensinava à tirar conclusões independentes. Pois, o cidadão verdadeiramente
formado, mais cedo ou mais tarde, questionaria a legitimidade de todo o sistema
soviético, dado que seria capaz de comparar e tirar suas próprias conclusões, algo
profundamente indesejável ao regime soviético.
Na
realidade, nas instituições de ensino superior, as pessoas eram ensinadas em habilidades
utilitárias simples, o que lhes permitia realizar as operações de produção de
vários graus de complexidade, mas não eram ensinadas à pensar livremente. E
todas as fraquezas do sistema educacional soviético apareceram imediatamente, logo
que o homem soviético encontrou algo que não correspondia à realidade habitual soviética,
começando a “carregar os frascos de água” – porque foi ensinado à calcular os
logaritmos na universidade, mas o seu nível cultural geral, os horizontes do
pensamento permaneceram profundamente soviéticos.
Fotos
@Mark Shteinbok | Internet | Texto Maxim Mirovich
Bónus
No
longínquo 1956, o Comité Regional do PCPS da cidade russa de Ulyanovsk pediu ao
professor aposentado Aleksandr Lyubishev,
escrever um memorando sobre a situação no ensino secundário soviético. O
professor concordou prontamente, mas como ele sempre seguia a sua consciência, o
documento final
foi simplesmente arquivado. O teor do documento pode ser resumido com a seguinte
sentença: “o predomínio do conhecimento, e ainda assim frágil, sobre a
compreensão”.
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