O historiador britânico
Orlando
Figes explica as razões do sucesso bolchevique. O ponto crucial do sucesso
bolchevique foi um programa de construção e desestruturação do Estado. Nos
escalões administrativos mais elevados, procuraram centralizar todo o poder nas
mãos do partido e, recorrendo ao terror, exterminaram toda e qualquer oposição
política.
Nos escalões mais baixos, deram cabo das antigas
hierarquias, entregando a ascendência aos sovietes locais, organizações de
fábrica, comités de soldados e outras entidades descentralizadas ligadas aos
interesses classistas. O vazio de poder surgido desta iniciativa ajudaria a
minar a democracia em pontos-chave, enquanto as massas seriam neutralizadas
pelo exercício do poder sobre os seus velhos inimigos de classe ou etnia, no
âmbito das comunidades em que viviam. Não existia, obviamente, um plano diretor
a orientar esta mudança. Tudo era feito de improviso, a exemplo do que ocorrera
na revolução. Porém, Lénine tinha uma perceção instintiva da direção geral a
ser tomada, algo que chamava de «dialética revolucionária». Sob muitos aspetos,
esta constituía a essência do seu talento para a vida pública. A influência dos
sovietes locais no campo levaria os camponeses a ver a Assembleia Constituinte
como dispensável e, portanto, minaria a base política dos SR. Afinal, para quê
uma Assembleia Constituinte se os agricultores tinham autonomia quase total,
podendo autogovernar-se e dividir a terra da nobreza como quisessem? O
«controlo operário» nos comités de fábrica contribuiria para o desmantelamento
da velha infraestrutura industrial – o que os bolcheviques chamavam de «sistema
capitalista» –, transferindo para os trabalhadores a responsabilidade parcial
pela crise económica. Dar mais voz aos soldados e estimular iniciativas
pacifistas na frente de batalha acabariam com os projetos de antigos
comandantes desejosos de mobilizar as tropas contra o novo regime e de retomar
a guerra. Por fim, garantir autonomia às fronteiras do falecido império
completaria o desmembramento do velho Estado. Segundo Lénine,
ajudaria também ao desaparecimento das relações feudais.
Sem dúvida que Lénine considerava todos estes movimentos uma fórmula capaz de extinguir o velho sistema político e abrir caminho para a criação da ditadura do partido. Vale a pena ressalvar que não há provas para esta afirmação – apenas indícios corroborados pelos factos, acrescentados a tudo o resto que sabemos a respeito dos pensamentos e ações de Lénine. É difícil aceitar a ideia defendida por alguns historiadores, segundo os quais o futuro ditador era um libertário e encorajava as formas localizadas de poder na tentativa de construir um novo tipo de Estado, descentralizado, exatamente como consta em O Estado e a revolução. Segundo esta versão, tratar-se-ia de um plano muito bem-intencionado, desviado da rota por força das necessidades concentradoras da guerra. No entanto, a conceção do Estado revolucionário de Lénine sempre foi visceralmente centralista. Ele valeu-se dos movimentos locais para aniquilar o velho regime e a frágil democracia de 1917. Simultaneamente, tencionava destruir estes mesmos movimentos, mantendo-os como forças políticas fragmentadas. Ao apoiar o campesinato contra os senhores de terra, tinha por objetivo substituir o sistema de pequenas propriedades rurais pelas fazendas coletivizadas. Ao apelar ao «controlo operário», fazia-o sabendo que o resultado seria o caos, assim reforçando a necessidade de um governo centralizado sob a batuta do partido. Ao endossar o poder dos soldados como forma de abalar a velha estrutura militar imperial, sem dúvida que pretendia construir o Exército Vermelho com base nas estruturas convencionais. Ao dar voz a diversos movimentos pela independência em relação à Rússia, o seu propósito era acabar totalmente com os estados nacionais. Toda e qualquer ação de Lénine tinha o poder como objetivo. Para ele, o poder não se resumia a um meio – era o fim último. Parafraseando George Orwell, Lénine não articulou uma ditadura do proletariado para salvaguardar a revolução; ele fez a revolução para instituir uma ditadura.
O objectivo prioritário dos bolcheviques consistia em manter controlo absoluto sobre o funcionamento da máquina estatal. Foram necessárias várias semanas para romper a resistência dos funcionários públicos. Os líderes da greve e alguns funcionários de maior destaque acabaram presos; comissários políticos passaram a supervisionar o trabalho das repartições; sedentos em servir os novos donos do poder, burocratas de menor expressão foram promovidos para escalões superiores. Em 1918, em todos os escalões, mas especialmente nos mais altos, a maioria do funcionalismo era formada por pessoal que já trabalhava para o governo no ano anterior. Todavia, nos locais onde havia desconfiança em relação aos antigos funcionários (o exemplo mais famoso foi no Ministério dos Negócios Estrangeiros), houve uma grande purga. O padrão repetir-se-ia ao longo dos primeiros anos de construção do Estado soviético. O que se viu foi o casamento de conveniências entre a exigência de lealdade apresentada pelos bolcheviques e as ambições da base partidária, que crescia cada vez mais. Um dos resultados de tal simbiose foi a ascensão de mercenários de terceira classe, oportunistas corruptos e elementos semianalfabetos, catapultados da sarjeta para posições de grande importância. O baixo nível cultural da burocracia soviética seria um legado eterno de outubro, uma herança que, posteriormente, assombraria as chefias bolcheviques.
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