Guillaume
du Vintrais, o brilhante poeta francês do século XVI, natural da Gasconha,
bonitão, intelectual e bon vivant, amigo do Henrique IV de França, espadachim
incoorrigível. Data e local de nascimento: 1943, URSS, o campo de concentração fabril
«Svobodnoe» (Livre) no GULAG soviético.
Entre
diversas mistificações literárias essa foi, talvez, a mais especial. O nunca existente
poeta francês foi inventado pelos dois prisioneiros do GULAG soviético — Yakov
Kharon e Yuriy Veynert. Os sonetos, alegadamente traduzidos do francês nasciam
em condições sub-humanas, sem dicionários, sem enciclopédias, mesmo sem o papel
normal, os prisioneiros usavam o papel vegetal e as cópias heliográficas...
Yakov Kharon |
A
juventude do Kharon se passou em Berlim, a sua mãe era a datilógrafa da
representação comercial soviética. Terminou o colégio com a distinção, se
matriculou na escola de música, onde se dedicava à banda sonora e técnica de
gravação musical. Desde 1932 vivia em Moscovo, onde trabalhava no estúdio cinematográfico
“Mosfilm” no departamento da gravação sonora. Aos 23 anos foi preso e
sentenciado aos 10 anos de campos de concentração na Sibéria...
No
GULAG, Kharon criou a banda musical e até um grupo teatral, era chefe do bureau
de construção, sendo pessoa tecnicamente muitíssimo preparada.
Yuriy Veynert |
Yuriy
Veynert desde muito novo tocava piano, traduzia, escrevia poesia. Pela primeira
vez foi condenado ao degredo após terminar o 9º ano da escola: na conversa de
amigos disse algo que foi considerado como anti-soviético. Após a libertação terminou
a escola técnica ferroviária e fez um ano da Universidade Ferroviária de
Leninegrado. Depois veio uma nova prisão.
No
último interrogatório o investigador do NKVD diz que jovem de 17 anos merecia a
pena capital. «Então, vou mandar os seus cumprimentos!» — respondeu Yuri em tom
de desafio. «À quem?» — não percebeu o NKVDista. «Ao camarada Dzerzhinsky! Ou
ao próprio Lenine...»
Amizade
entre os dois nasceu no GULAG, quando eles conversaram sobre a música,
literatura, poesia.
Em
1943 de Moscovo veio a ordem — começar a produção dos morteiros. A fábrica não possuía
a fundição, mas graças ao Kharon essa foi montada em 40 dias, de Moscovo vieram
especialistas para aprender o novo saber-fazer.
Quando
o ferro fundido encheu o primeiro balde, Veynert declamou, gritando:
—
Assim Vulcão forjava
as armas do Deus.
—
Perseu montava o Pégaso para a viagem, – Kharon respondeu cansadamente, quase
automaticamente. Poucos dias depois, os amigos inventaram o autor dos sonetos, o
imprudente espadachim Guillaume du Vintrais. Um alegre jogo literário desenvolvido
por uma questão de sobrevivência. Ou talvez por causa do próprio jogo.
Poeta
inexistente
Du
Vintrais ficou com a biografia bem brava. Jovem bonitão de dezassete anos,
vindo da remota Gasconha, cativa Paris instantaneamente. Domina na perfeição a espada,
as rimas e a arte da sedução feminina. A alta sociedade tem medo de suas piadas
sarcásticas e dos epigramas. E aquele que se atreve a desafiá-lo, receberá,
apesar de todos os decretos reais, o convite para Pre-aux-Clercs – e ficará
lá...
Os
seus amigos são príncipes e condes, escritores e poetas – como brilhante Agrippa d´Aubigné,
que compete com ele, princesas e duquesas estão apaixonadas por ele. Mas poeta dedica
diversos sonetos à misteriosa “Marquesa L.”
Entrar
no Paraíso – tenho monte de entraves:
Preguiça,
o orgulho, o ódio, a gula,
Amor
à você e o pecado mais grave –
Amor inextinguível à
liberdade.
Os
sonetos do du Vintrais são mais que variados: a sátira, as cenas do género,
cartas de amor, a parábola filosófica. Muitos o culparam pelas liberdades
poéticas excessivas, enquanto outros admiravam. Na noite de São Bartolomeu, du
Vintrais, o epicurista, céptico e ateu, lutou bravamente, defendendo os
huguenotes. E escreveu uma série de epigramas sarcásticos, que ridicularizaram o
rei Carlos IX de França, a sua toda-poderosa mãe, Catarina de Médici e o duque
de Guise. A prisão na Bastilha, a execução na Grève não estão muito distantes, mas
com ajuda dos amigos poderosos, du Vintrais, pela “traição real” é condenado ao
degrado perpétuo fora da França.
Henrique
de Navarra (o futuro rei Henrique IV de França) foge para o sul da França, onde reúne um
exército para conquistar o Paris. Guillaume du Vintrais ilegalmente volta da
Inglaterra para trocar a caneta pela espada. O seu amigo Henrique se torna o
rei, mas eles cortam as relações um par de anos depois. “De facto, engraçada a
nossa geração: o rei é risível, e o bobo da corte real é terrível...”
Du
Vintrais se retira para a sua propriedade provincial na Gasconha ocidental,
para passar as tardes com uma garrafa de Borgonha e livros antigos...
Nos
campos do GULAG do Extremo Oriente soviético – nas barracas, nas zonas de exploração
madeireira, nas minas de ouro e nas sharashkas os intelectuais liam os sonetos do
du Vintrais. Leves, irónicos, engraçados e tristes ao mesmo tempo. Através dos
parentes e amigos, os sonetos se espalharam por toda a URSS. E os autores
começaram a receber as diversas cartas de gratidão e admiração. O que surpreendeu eles próprios.
Alias,
muitos escritores e estudiosos da literatura bem conhecidos acreditaram na
mistificação. Um proeminente cientista, especialista de destaque em literatura
do renascimento francês, afirmava que na década de 1920, estudando na Sorbonne,
achou um volume do du Vintrais num alfarrabista no Montmartre.
Para
conseguir o retrato do poeta foi usada a foto prisional de Veynert, à quem
acrescentaram uma farta cabeleireira, os bigodes e uma barbicha “espanhola”.
Finalmente
livres
Eles
foram libertados no fim de 1947 com a proibição de morar em Moscovo, Leninegrado
e mais 11 cidades capitais da URSS. Veynert conseguiu o emprego na fábrica de vagões
de Kalinin (atual Tver), Kharon em Sverdlovsk (atual Ecaterimburgo), no estúdio
do cinema. Um ano depois — a nova prisão e degredo permanente. Ambos foram enviados
atrás do Urais, distantes 400 km um do outro. Os novos sonetos do Guillaume du
Vintrais nasciam apenas por correspondência.
Kharon
era professor de física e desenho técnico numa escola, ele organizou um grupo
teatral, encenava as peças. Veynert trabalhava numa mina e mantinha um grande amor.
A filóloga Lyusia Hotimskaya, bela e inteligente, o esperou por 10 anos. Tendo
muitas propostas entre os atores e escritores, respondia invariavelmente: “querido,
mas eu tenho o meu Yuri”. Ela prometeu que iria ter com o seu marido logo que
receberia os honorários pelo livro publicado. Mas adoeceu e morreu no hospital.
Veynert foi informado por uma amiga que lhe enviou o livro da esposa falecida. Destroçado,
num ataque de desespero ele queimou todas as cartas da Lyusia. E foi para a
mina que deveria começar a funcionar no dia seguinte. Era janeiro de 1951. Oficialmente a sua morte foi um
acidente.
Em
1954, apenas um ano após a morte do Estaline e 400 anos após o nascimento do
poeta inventado, Kharon voltou ao Moscovo e começou trabalhar à sério na obra do du Vintrais — que já continha exatamente cem sonetos. Os limava, melhorava,
datilografava, organizando um volume em formato A5. E só depois disso foi receber
os documentos sobre a sua própria reabilitação política.
Durante
a vida inteira Kharon era um otimista incorrigível e uma pessoa muito frívola. Considerava
os dezoito anos de campos de concentração, prisões e degredos como um terrível incomodo
e estava feliz por cada dia em liberdade, como uma criança. Tinha um trabalho adorado
no estúdio “Mosfilm”, os seus alunos do cinema, o seu próprio programa na
televisão, viajou pela Alemanha e Itália, recebeu uma medalha pela invenção
de um novo sistema de gravação de quatro canais, se dedicou profissionalmente a
biologia, a sua nova paixão.
A
sua vida familiar também se revelou feliz. O filho, Yuri-pequeno, como era chamado. A
esposa amada, que conheceu, se imagine, graças ao poeta inventado.
Em
Vorkuta, no campo de concentração feminino, “Fábrica de Tijolos”, na sua barraca,
as mulheres educadas, após o turno laboral apreciavam os sonetos do du Vintrais.
Assim, os sonetos foram ouvidos pela sua futura esposa, Stella Korytnaia. Um
par de anos depois Yakov e Stella se encontraram, por acaso, em uma festa dos amigos
comuns. E depois disso viveram juntos por muito tempo e muito felizes.
Yakov
Kharon morreu em 1972 de tuberculose, contraído no GULAG, mantendo o espírito
surpreendentemente forte. Um livro de sonetos do Guillaume
du Vintrais, com os comentários do Kharon foi publicado em 1989.
Bónus
Aos negacionistas do
Holodomor ucraniano aconselhamos a leitura da brochur do
Raphael Lemkin (o autor do termo “genocídio”), chamada “Genocídio
soviético na Ucrânia” (1953). O documento é disponível em 28 idiomas, incluindo
o português:
http://history.org.ua/LiberUA/978-966-2260-15-1/978-966-2260-15-1.pdf
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