O belaruso Aliaksandr
Goshtuk serviu no Afeganistão em 1982-84, numa unidade de spetsnaz, como dizia
a propaganda soviética “no contingente limitado dos internacionalistas
soviéticos” que “ajudavam” a República Democrática do Afeganistão (RDA).
A primeira coisa que
Aliaksander pediu na entrevista, é para que não se fale de nenhumas “bravuras”,
nem “heroísmos” daquela guerra, mas das coisas que realmente aconteciam. Na
verdade, o ex-comando soviético Aliaksander, mais uma vez confirmou a ideia de
que a aventura afegã era uma guerra desnecessária – tanto aos afegãos, que
perderam quase um milhão de pessoas [e tiveram cerca de 5 milhões de
deslocados], e para as mães soviéticas, muitas das quais perderam lá os seus
filhos. Uma aventura de um governo de velhos, fora de qualquer controlo da
sociedade e fora da escolha popular.
Chegada ao
Afeganistão
– Aliaksandr, como
você parou no Afeganistão?
Quando chegou a hora
de servir no exército, foi convidado pelo comissariado militar aos cursos da
sociedade DOSAAF para fazer
alguns saltos de para-quedas, saltei três vezes. Não tinha um desejo especial
de servir nas forças aerotransportadas, mas percebi que eles me
preparavam para isso. Na chamada militar, ainda em Belarus, eu e mais 8 rapazes
foram designados ao Afeganistão. Mais tarde entrei nas forças especiais,
outros dois – no batalhão para-quedista de assalto (DShB), ambos morreram...
De Belarus fomos
enviados ao Chirchiq nos
arredores de Tachkent, no Uzbequistão – no caminho soube que iríamos ao
Afeganistão. O Chirchik estava estacionada a Brigada de Forças Especiais, que
incluiu o famoso “batalhão muçulmano”, que em 1979 atacou o palácio de Amin – lá
serviam principalmente tajiques e uzbeques, e em 1982 foram enviados para lá cerca
de 120 recrutas eslavos, eu era um deles.
— Em Chirchik vocês
receberam algum treino?
Tivemos apenas a
formação padrão de jovem recruta com duração de um mês – disparamos um bocado,
corremos, aprendemos “liquidar o vigia”, tivemos as corridas de cross-country
de oito quilómetros para o polígono e de volta. Os sargentos tiveram que correr
um pouco mais – voltavam periodicamente ao final da coluna e davam os pontapés
nos traseiros dos mais atrasados.
Não nos ensinaram as especialidades
militares – de franco-atiradores, operadores de metralhadoras ou morteiros. Mas
participamos na colheita local, descarregávamos os vagões com água mineral, trabalhávamos
num talho industrial... Foi chamado à tropa em 20 de março [de 1982] e já aos 12
de junho, após toda essa “aprendizagem” foi enviado ao Afeganistão.
Nem sequer prestei o
juramento militar. Antes da partida para o Afeganistão, o batalhão fez o
juramento, mas queriam me deixar na União Soviética, porque eu tinha carta de
condução / carteira de motorista, assim não prestei o juramento. No último
momento, na URSS ficou alguém com “boas conexões” e eu fui novamente enviado
ao batalhão. Ao prestar o juramento, alguém, aparentemente, assinou por mim.
Primeiros meses no
Afeganistão
Ao chegar ao Afeganistão
– a primeira coisa que vi – eram veteranos, indo pela pista de aeródromo até os
helicópteros. Chegando mais perto, ouvimos – “se enforquem, novatos”. Depois da
primeira noite, foi difícil abrir os olhos – todo o rosto estava coberto com a fina
poeira afegã.
Foi colocado no 6º
pelotão, unidade mecânica, mas não fiquei lá por muito tempo. Participei em algumas
operações militares. Lembro-me de um episódio, nós, forças especiais, estávamos
levar um camião/caminhão cisterna afegão, alguém correu, todos começaram a
atirar. Eu também atirei. Puxei a trava de segurança mais forte do que era necessário
– e coloquei meu AK no regime de tiro simples. Durante muito tempo não conseguia
entender por que todo mundo estava atirando com rajadas e eu disparava tiros
esporádicos.
Algum camponês em
roupas afegãs subiu ao muro da aldeia e o nosso operador de rádio o atingiu com
o fogo de metralhadora. Aparentemente, acertou nos pulmões – saiu a espuma cor-de-rosa.
Então, eu completamente me desinteressei dessa guerra, tinha pensamentos sobre
o que estava fazendo aqui. Nosso alferes acenou para o operador, e ele acabou
por abater o homem – então eu me “desliguei” totalmente, cabeça começou a girar
e passei mau. O homem afegão, à propósito, provavelmente era um civil não
combatente...
— No seu pelotão
havia gente que gostava matar as pessoas, os afegãos?
Não conheci nenhum que
gostava de matar, acho que é algum tipo de patologia, nós não os tivemos. Num episódio
os membros do KHAD (secreta comunista
afegã) capturaram os prisioneiros e disseram-nos para os fuzilar – não houve um
único que quisesse, nós não faríamos o tal absurdo. Os prisioneiros foram
entregues aos responsáveis, só isso.
Após a unidade mecânica
entrei na unidade paramédica – também aconteceu por acaso. Eu disse que não
entendo disso, que tenho medo de sangue – me responderam que não era nada, que
irei aprender. Tudo era assim... O operador da metralhadora era alguém culpado –
recebia a metralhadora para carregar como um castigo, porque era pesada. Também
não tínhamos os franco-atiradores – atirar para onde? Estávamos
cercados
pelas
montanhas.
— Você próprio disparou
contra as pessoas?
Disparei sim, mas para
onde? Quando era visível em quem disparar – o melhor era não atirar. Apenas parece – somos
lançados do helicóptero em grupo de 12 pessoas, marchamos carregados de munição,
como os verdadeiros rangeres, mas quando somos alvo de fogo inimigo, saltamos/pulamos
para a vala, para a lama, e pensamos – “Meu Deus, o que estou fazendo aqui?” Numa
guerra real, os seis carregadores de AK na melhor das hipóteses chegam para meia
hora de combate.
Os horrores da guerra
afegã
Num dos primeiros
dias de serviço como paramédico, foi enviado para lavar o corpo do soldado
morto, de apelido/sobrenome Shapovalov, ele levou um tiro sob a clavícula – eu
tinha que lavar o corpo, amarrar a mandíbula, para a boca não se abrir e dobrar
as mãos corretamente. Comecei a lavá-lo, o virei – nas costas havia uma bolha do
sangue coagulado. A ferida verteu mas algum sangue, eu tremia todo...
Mais tarde você se
acostuma com essas coisas, uma vez me trouxeram doze pessoas que se pisaram o
nosso próprio campo minado – uma mistura de ossos... E você simplesmente faz o
seu trabalho. Porque se não for você – quem o fará? Depois de Afgan achavam que
eu deveria entrar na medicina – respondi que não, tinha medo de sangue.
— A escritora
belarusa Svetlana
Alexievich, no seu livro Rapazes de Zinco descreve
como nos caixões de zinco, muitas vezes, para a União Soviética era enviada
simplesmente a terra no lugar de corpos, você testemunhou algo assim?
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É possível. Nós
tínhamos um necrotério no aeroporto – não havia geleiras/galadeiras, apenas um
abrigo na terra. Entravam lá os mangustos e roíam os corpos... Além disso, o
calor era muitas vezes superior aos +50ºC – até à União Soviética chegava uma
papa/mingau. Conheço apenas um caso quando o tradutor do comandante do batalhão
foi enterrado como mandam as regras – ele levou um tiro na testa em Aybak
(antiga Samangan),
especialmente para ele foi encomendado gelo, ele estava vestido em um fardamento
de desfile...
No Afeganistão,
fiquei doente com febre tifóide e icterícia. Eu peguei icterícia,
aparentemente, no decorrer de uma operação militar – estava num MTLB (rebocador
blindado leve, armado e com lagartas) como operador de metralhadora, percebi que
os meus olhos se tornaram amarelados. E assim não foi chamado para uma próxima
incursão. Eu pergunto – “então quem estará com a metralhadora?” — “não há problema”, – me responderam, – “vais
ensinar um jovem”.
O meu MTLB explodiu
naquela incursão, pisando um obus – a torre onde eu deveria estar, voou por cerca
de 200 metros. Apenas um soldado, com alcunha de “Tártaro”, sobreviveu – ficou
vivo, mas perdeu um pé – cortado pela própria blindagem da viatura atingida. Para
retirar o nosso cirurgião que estava lá, MTLB caiu-lhe em cima, tiveram
que reunir os “macacos” de toda a coluna.
Após saber da notícia
– fiquei absolutamente “abatido”, com uma temperatura de +40ºC entrei no hospital
em Pol-e Khomri. Me
propuseram ficar lá, mas pedi para voltar – eu era para-quedista, membro das
forças especiais. Naquela época, isso me parecia algo importante...
— Vocês tiveram os casos
dos militares que se feriam propositadamente?
Sim, houve casos,
muitos ficavam com medo. Tivemos um moscovita, com apelido/sobrenome Pevtsov, era
considerado “filho do papai”, ninguém gostava dele. Ele disparou com AK no seu estômago
– queria provocar a ferida leve e passar à reserva, mas atingiu o próprio
fígado e morreu. Outro se suicidou em Jalalabad – a rajada de três munições na
cabeça, não aguentou o serviço. Outro moscovita bebeu urina icterícia e passou
à reserva – não participava nas missões, mas escrevia aos seus pais as estórias
do tipo: “Estou escrevendo-vos essa carta numa trincheira, por cima de um
capacete, seguro nas minhas mãos o último carregador...” Normalmente, escrevíamos
aos nossos pais que estamos passear todos os dias e não fazíamos nada de
especial.
A vida do spetsnaz
soviético
No quartel improvisado
da nossa unidade vivíamos em construções feitas por nós mesmos – cavamos o solo
num metro de profundidade, surgiu algo parecido com um abrigo. Depois fizemos a
fundação, erguemos as paredes, usando adobe, por cima colocamos a lona. No
interior, havia beliches em que dormíamos. As paredes de adobe poderiam
aguentar o fogo de armas ligeiras, mas isso nunca aconteceu, não deixávamos
ninguém se aproximar – mesmo se aparecesse algum pastor à um quilómetro da
distância, imediatamente era alvo de fogo direto até que apague o seu fogareiro.
No quartel tínhamos
uma cantina – mas após um ano de serviço, ninguém comia lá, só levávamos lá o pão.
Na tenda, usando o fogão feito de um tambor, preparávamos aquilo que era
possível de arranhar, fritávamos as nossas batatas. Na cantina comiam apenas os
“novatos” – na sopa aguada se afogava uma centena de moscas até que a levas à mesa.
Nossa unidade também tinha cozinhas de campo próprias e uma padaria, nas
proximidades funcionava um bazarinho local – lá vendiam o leite condensado,
biscoitos e limonada em lata [o produto absolutamente inexistente na União
Soviética, onde todos os refrescos eram produzidos em garrafas 0,33 – 0,5 L].
Na questão de
fardamento estávamos razoavelmente bem, usávamos os padrões soviéticos “areia”
e “químico” – os fardamentos camuflados de malha, de kit de proteção química,
eram confortáveis no clima quente. Tínhamos os coletes à prova de bala, mas
ninguém os usava – era muito quente. Nem usávamos os capacetes, exceto nas operações
nas montanhas – por causa do perigo de pedras. Não usávamos os cintos de cabedal/couro,
tentamos obter os de construção civil, de lona – estes não se esticavam,
carregados de bolsas pesadas.
Como calçado usávamos
sapatilhas/tênis – os “arranjávamos” nas batalhas, ou comprávamos ali mesmo, no
bazarinho. Praticamente não tivemos os coletes de descarga – usávamos coletes
de natação, tirávamos de lá polietileno e metíamos os carregadores de AK.
Absolutamente mal
estávamos com medicamentos – basicamente, tudo que usávamos eram troféus. Apanhamos
muitos medicamentos de troféu [no decorrer dos combates] no desfiladeiro de
Marmol – havia sistemas muito bons de soro e tudo o resto. Na União Soviética
nada disso existia!
Todos usavam drogas
no Afeganistão – não tínhamos nada para fazer entre as operações, acontecia que
as pessoas fumavam droga as vezes até dez vezes ao dia. Em Aybak se usava anasha
[calão soviético genérico para canábis sativa e haxixe], e as unidades que
ficaram em Cabul – a heroína mais pura.
— Vocês tiveram o
assim chamado dedovshina
[sistema de abusos e bullying, perpetuado pelos soldados veteranos]?
Dizer que em Afeganistão
existiu o dedovshina é não dizer
nada, em Aybak tudo era executado à correr – se um novato apenas caminhava –
ele apanhava dos “avós” (veteranos). Se um veterano mandava buscar uma peça de
pão – você poderia sair de manha e voltar só à noite, no caminho alguém o iria interceptar
– “oi, novato, estas muito folgado, faz isso e mais aquilo”... Voávamos como os
diabos! Numa incursão de combate – você estaria colado ao “seu” veterano, mas
dentro da unidade era assim.
Todos pediam para ir
às operações de combate – na unidade não havia nada para fazer, era um tédio,
na operação se podia “arranjar” alguma coisa.
— Vocês tiveram alguma
“preparação política”? Os vice-comandantes políticos (zampolit, uma espécie de comissário político do exército soviético)
tentavam vos endoutrinar?
Não, praticamente não
tivemos coisas deste tipo. Oficial da secreta militar e zampolit corriam principalmente à cheirar o ár para ver quem é que
fuma a maconha. Pessoalmente, eu nunca teve nenhum “sentimento de dever
internacionalista”.
A vida depois
Fiquei no Afeganistão
por mais de dois anos – falei com vários veteranos, ninguém ficou mais tempo.
Do Afeganistão voltei em 1984, na época, ainda tentavam ocultar a guerra de
todas as maneiras possíveis – recebi um documento chamado Certificado de
direito aos benefícios, sem quaisquer pormenores. Nos jornais, na imprensa e na
TV não se dizia uma única palavra – como se nos nunca estivéssemos lá.
Quando voltei para
casa, os primeiros meses tudo era muito estranho, sentia até raiva das pessoas,
do tipo, “vocês – aqui, e nós – lá”... Mas isso rapidamente me passou. Todas
essas histórias que as pessoas sentem muita dificuldade em se adaptar – muitas
vezes são alguns estereótipos, que passam do veterano ao veterano. Aquele que se
perdeu na bebida – o mais provavelmente se teria perdido sem passar pelo
Afeganistão, apenas estava para ai virado.
– Eu não vós mandei ao Afeganistão... Cartoon soviético da época de Perestroika, 1987 (?) |
Na década de 1980 fui
trabalhar na polícia, em 1986, trabalhei em Chornobyl, depois entrei na polícia
de choque, OMON, que então tinha apenas sido criado – era muito legal e
interessante, uma nova unidade de combate contra os criminosos, pensei – mesmo à
calhar para mim! Mas depois eu saí de lá – e mesmo sendo um ateu, dou graças ao
Deus por não me meter no atual OMON, que surgiu depois de 1994, após a
dissolução do Conselho Supremo [da Belarus].
— O que você pensa
sobre os veteranos do Afeganistão?
Assisti um par de
vezes o dia das forças aerotransportadas (VDV), mas rapidamente foi embora.
Infelizmente, a maioria dos ex-veteranos do Afeganistão sentem a nostalgia pela
URSS – na verdade, eles são realmente nostálgicos pela sua juventude, depois da
qual não fizeram nada de excepcional. Para meu grande pesar, muitos dos ex-veteranos
[da Belarus] agora estão na Donbas, lutando pelas repúblicas autoproclamadas – até
os entendo de alguma forma. As pessoas vivem em algum cú distante e vão para a
Donbas para lutar contra a rotina da sua vida, são os alcoólatras de ontem que,
de repente, querem ser heróis. Da mesma forma, como em Afgan queríamos ir às operações
de combate – dentro da unidade reinava dedovshina
e um tédio mortal...
— O que você faz
agora?
Eu tenho uma boa família,
trabalho num dos serviços do táxi de Minsk, ganho bem, sou um capataz. Conduzo um
Toyota híbrido – sigo a tecnologia, estou interessado em todas as novidades, o meu
próximo carro será elétrico) Tento não me recordar da guerra, ocasionalmente assisto
os filmes militares. Bons filmes sobre a guerra são aqueles, assistindo quais, você
nunca terá o desejo de ir à guerra.
— A última pergunta. Será
que o Afeganistão e tudo o que aconteceu lá de alguma forma influenciou a
formação de suas convicções democráticas?
Para ser sincero – não
sei. Afeganistão e tudo o que aconteceu comigo lá – foi em alguma infância
distante.
Texto e fotos atuais Maxim Mirovich
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