No
festival de cinema de Cannes, na categoria do melhor realizador no programa “Un Certain Regard”, foi premiada a
obra do realizador ucraniano Sergei Loznitsa, uma
co-produção da Alemanha, Ucrânia, Holanda, França e Roménia, que através de uso da
linguagem cinematográfica mostra o absurdo da vida quotidiana das ditas “repúblicas
populares” no leste da Ucrânia ocupada.
"Donbass" na base de dados IMDB |
As
filmagens decorreram no leste da Ucrânia, na cidade de Kriviy Rih, onde entre
vários atores, profissionais e não, um dos papéis principais cabe aos
comediantes do teatro de pantomima de Odessa, Maski Show: Natália Buzko e
Georgy Deliev.
Os
primeiros à aparecerem na tela são os figurinos de um estranho grupo de
filmagens – como o espetador perceberá rapidamente – são “testemunhas” de uma
reportagem de “notícias” fake news da propaganda russa. Uma mulher gasta, com
hematomas pintadas debaixo de olhos, conta “o que presenciou”, mas aí logo surge a
questão inquietante, os corpos no chão e um troleicarro danificado pela
explosão, como pano de fundo na imagem são reais ou não? O final do filme, assustador e
absolutamente surreal, filmado de uma forma neutra e documental, responderá à
essa questão perturbadora.
Os russo-terroristas e POW ucranianos |
Atores
e falsários estão por toda a parte. Até o “guarda-fronteira” separatista tem o
nom de guerre “Artista”. Num outro episódio, um jornalista alemão fala com os
terroristas, sentados por cima de um blindado, que não querem responder uma
simples pergunta: “Quem é o vosso chefe?” Como no jogo infantil, os terroristas
apontam uns aos outros e então no fim apresentam ao jornalista estupefacto uma
personagem colorida, um tal de “atamane cossaco” Chapai.
A
maioria dos personagens do filme nem sequer possui um nome cristão, apenas os
noms de guerre: Batianya (Paisão), Gyurza, Cupon (Cupão), Drovosek (Lenhador).
Numa outro cena burlesca se casam separatistas com os nomes incrivelmente
coloridos que parece que saíram das páginas do Nicolas Gogol: Angela Tikhonovna
Kuperdyagina e Ivan Pavlovich Yaichnitsa (literalmente Ovos Mexidos). Ninguém deverá
ficar surpreso se estes nomes se revelem reais.
A
película é composta por uma série de cenas aterrorizantes, grotescas e
hiper-realistas, sem uma conexão formal, embora correlacionadas pelo tempo e
espaço. Um bandido com look dos anos 1990 organiza o show numa maternidade
pobre, onde o médico chefe rouba comida e remédios. Os “guarda-fronteira”
separatistas humilham os civis que venham à Donbas para visitar os seus
familiares e verificar se suas casas ainda estão de pá. Os separatistas roubam,
usando a coerção, a viatura de um empresário pouco simpático e ainda lhe exigem
o resgate. O soldado ucraniano, barbudo e calado, capturado pelos terroristas,
é levado pela cidade com letreiro “Voluntário do batalhão punitivo” e depois
amarrado a um poste de energia, para que a populaça pudesse satisfazer os seus
desejos mais primitivos.
No
entanto, “Donbass” é nitidamente um filme antiguerra que não justifica a violência
vinda de qualquer dos lados. A película mostra como a guerra danifica as pessoas,
os transformando em monstros, cómicos e horríveis ao mesmo tempo.
Cena do filme: a populaça tenta humilhar um militar, POW ucraniano |
Arte segue a realidade, a populaça separatista à humilhar a patriota ucraniana Iryna Dovhan |
Existe
no filme um episódio tocante quando a câmara, circula de forma incessante pelos
corredores labirínticos de uma pensão destruída pela guerra, onde vivem as
pessoas desabrigadas. Não vamos perceber quem fez as filmagens, realizador ou
alguma personagem sua, certamente movida pelos objetivos menos nobres. Pois,
além de guerra moderna, “Donbass” é dedicado às mídia, redes sociais e outros
intermediários que transformam a guerra em um show. A película mostra aquilo que
não deveria se transformar em “apenas o cinema”.
O
documentário anterior do realizador, “Dia da Vitória”, foi filmado em Parque Treptow
em Berlim em 2017 e é dedicado ao atual feriado russo de mesmo nome. O novo
trabalho de Loznitsa é marcado pela retórica e estética da moderna propaganda
patrioteira russa (que pode ser resumida ao meme “os avós combateram”). Mas
também mostra a distância intransponível entre a guerra em defesa da pátria e a
sua versão “híbrida”, claramente absurda e igualmente cruel para todos os seus participantes.
A
pergunta principal e calada de "Donbass" é essa: “numa guerra como
essa, no seu final, porque um dia este sempre chegará, existirá o dia da
vitória? Ou qualquer resultado será uma derrota?”
Primeiras duas fotos: filme documental “Dia da Vitória”, Parque Treptow, Berlim, 9/05/2017 |
Segundas duas fotos: marcha dedicada ao Dia da Vitória, Lisboa, 6/05/2018 |
Bónus
Extrato
do discurso do Sergei Loznitsa no discurso de premiação do seu filme, no fecho
do festival de Cannes (publicado no Facebook do produtor ucraniano de “Donbass”,
Dennis
Ivanov):
Sergei Loznitsa |
[...]
Quero agradecer – mais uma vez – o meu Festival favorito – o Festival de Cannes
– pela oportunidade de apresentar “DONBASS” ao mundo e fazer perguntas que me
atormentam. Nos últimos dias, percebi, conversando com jornalistas e cineastas,
o quão pouco eles sabem sobre a guerra que está acontecendo no coração da
Europa exatamente agora.
[...]
Enquanto decorre esta cerimónia, no extremo norte da Rússia, na colónia de
regime severo, um jovem artista ucraniano, nosso companheiro diretor de cinema,
continua a sua greve de fome. Ele próprio, acusado de crimes que nunca cometeu
e injustamente condenado aos 20 anos de cadeia, exige às autoridades russas
libertação imediata de todos os presos políticos ucranianos, encarcerados na
Rússia.
Com
muita dor e com grande admiração, declaro minha solidariedade com Oleg
Sentsov, com todos os realizadores em diferentes partes do mundo, lutando
pela liberdade, pela honra e, finalmente, pela humanidade. Não importa o quanto
os regimes cruéis e despóticos nos persigam, calem a boca e nos obriguem a
obedecer às regras deles, a arte do cinema permanecerá livre.
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