sexta-feira, maio 18, 2018

O sistema de racionamento soviético: compras com “cartões” e “talões”

"Meias NÃO HÁ" | "Calçado NÃO HÁ"
O sistema de racionamento soviético nasceu antes do próprio surgimento do “primeiro estado dos operários e camponeses”. Herdados diretamente do “czarismo marvado”, os “cartões”, “talões”, “cupões” e outros meios de distribuição e controlo, sobreviveram a queda da União Soviética e em algumas regiões russas foram usados até 1993.  

Do czarismo à revolução proletária

Os primeiros cartões de racionamento alimentar surgiram na Rússia czarista na primavera de 1916. Império russo, quebrado economicamente e psicologicamente com os resultados da I G.M. entrou numa crise alimentar e introduziu os talões para a compra de açúcar. [Os cartões eram distribuídos aos cidadãos de forma gratuita, no caso de perda não eram restituídos e deveriam ser entregues ao lojista no ato de compra. Quem tivesse apenas o dinheiro, não podia comprar o produto.] Principalmente devido ao facto de que as fábricas açucareiras da Polónia e Ucrânia Ocidental [nas regiões que faziam parte do império russo] se tornaram o palco de batalhas contra exércitos da Alemanha e do Império Austro-Húngaro.
Petrogrado, cartão para a compra de de açúcar, 3 libras por pessoa (3 copos ou cerca de 550 gr),
outubro, novembro, dezembro de 1916
Após o golpe bolchevique de 1917, a Rússia adotou as políticas do “comunismo de guerra” e sistema de cartões foi usado de uma forma maciça, em algumas regiões até o pão era vendido apenas aos portadores dos cartões de racionamento. Situação só mudou em 1921, com a introdução do NEP (Nova Política Económica) que aboliu o racionamento e encheu as lojas de produtos alimentares e manufatureiros. A chegada ao poder do Estaline acabou com experiência “proto-capitalista” e sistema de cartões foi novamente imposto, a União Soviética simplesmente não produzia a quantidade suficiente de mercadorias para saciar a procura da sua própria população.

Além do sistema de cartões, o estalinismo introduziu as “normas” de venda de produtos por cada comprador — desde abril de 1940 um comprador tinha direito de comprar não mais que 1 kg de carne e não mais que 0,5 kg de mortadela em cada compra. Para recordar, em 1940 já tinham passado 23 anos desde o golpe bolchevique, mas o país não conseguia viver de forma plena e feliz.
No decorrer da II G.M. o sistema de racionamento apenas se tornou mais severo e mais desumano. O cidadão que perdesse os seus talões, ou à quem estes fossem roubados, estava condenado à uma morte de fome, situação várias vezes descrita na literatura soviética.

A vida sem cartões, época de fartazana soviética

Em 1947 o sistema de cartões foi abolido, mas, de uma ou de outra forma, os elementos de racionamento do consumo alimentar ou manufatureiro persistiam por décadas. Por exemplo, o cidadão soviético não poderia simplesmente ir à loja e comprar o automóvel. Primeiro, teria que ficar numa “fila” [que poderia durar 5-7 anos (sim, anos!)], segundo, deveria pagar um valor bastante alto [por exemplo, a viatura Gaz-21 “Volga” custava 10.000 rublos ou 16,949 dólares ao câmbio oficial da época] e terceiro, teria que receber uma espécie de permissão de compra, emitida pelos órgãos locais do poder soviético, documento existente pelo menos até a década de 1960.
No início da década “brejnevista” de 1970, o sistema de racionamento não existia. A década se caraterizou pela alta de preços de petróleo e URSS recebeu uma “almofada de divisas”, que usava para comprar os produtos manufatureiros ocidentais e estrangeiros:  jeans FUZZ, sapatos Salamander e cassetes BASF da Alemanha Federal, mobílias da Roménia, chouriço fino da Finlândia, café brasileiro e outra mercadoria, comprada graças ao “petrodólares”.

Realmente, era a época dourada soviética — altos preços de petróleo permitiram ao URSS saciar a alta procura do consumo doméstico.

No entanto, a liderança soviética cometeu o erro fatal, os excedentes da venda de petróleo não foram usados para desenvolver e fortalecer a economia nacional. Em vez de modernizar as fábricas de açúcar na Ucrânia ou instalar as linhas de transformação de batata em Belarus, URSS comprava o açúcar em Cuba, financiando deste modo os “regimes amigos”. Com a queda dos preços de petróleo e aumento dos gastos militares na guerra de Afeganistão ou em África, a economia soviética começou se aproximar ao seu colapso.

Retorno de talões «ao pedido dos trabalhadores»
No fim da década de 1970, os talões de racionamento voltaram, não em toda a União Soviética, mas em várias regiões, principalmente da federação socialista russa. A compra de carne, manteiga e açúcar só poderia ser feita pelos portadores dos talões. Depois, as coisas apenas pioraram, o racionamento foi alargado aos novos grupos de bens e alimentos.  
"Alimentação é efetuada APENAS com os talões de fábrica"
Nem todos os talões eram chamados de “talões”. O poder local optava pelos nomes mais simpáticos, como “Cartão de comprador”; “Reserva” ou mesmo “Convite para a compra”. Naturalmente estávamos perante a hipocrisia soviética — ninguém fazia “pedidos”, ninguém reservava nada às suas compras, nem pedia “cartões” — assim era camuflada a existência do sistema de distribuição dos bens da primeira necessidade.
"Apresente o documento" (com direito de fazer compras no local)
Na década de 1980, o racionamento geralmente abrangia carne e boa manteiga, a margarina barata e de má qualidade sempre estava em venda livre. Depois, a lista engrossou com açúcar (tornou-se um grande défice por causa de aumento brutal de produção de aguardente caseiro) e praticamente todo o tipo de álcool — um cidadão adulto recebia o talão que lhe permitia comprar 1 garrafa de vodca e 2 de vinho por mês (Sic!). 
O povo soviético na fila para comprar vodca e/ou vinho
Naquela época, todos compravam álcool, mesmo os que não bebiam, dado que uma garrafa de vodca que custava na loja 3,5 rublos (5,9 dólares), facilmente era vendida por 15-25 rublos (25,4 – 42,3 dólares ao câmbio oficial). Além disso, álcool se tornou, em quase toda a URSS, uma moeda universal aceite como meio de pagamento por quase qualquer tipo de serviço formal ou informal.

Década de 1990
Convite para comprar um par de botas masculinas nas lojas do distrito em 1990-93
Os problemas da economia planificada apenas pioravam — a “gestão manual” não funcionava, não havia mercadoria suficiente para todos, o mercado negro e as fábricas clandestinas floresciam por toda a parte. O pico da “distribuição por talões” calhou no início dos anos 1990 – quando, a URSS morreu de facto, antes do seu desaparecimento de jure. Em seguida, os talões foram mantidos, em várias regiões da Rússia ou Belarus por cerca de dois anos – a economia precisou este tempo para se mover aos trilhos do mercado (por exemplo, em Belarus continuavam à circular o rublo soviético). Este período os fãs da URSS geralmente chamam de “época de máfias e de surgimento de oligarquia”. No entanto, como fica claro neste artigo – o sistema de racionamento russo nasceu ainda antes do golpe bolchevique de 1917.
Imagem com as legendas em cima e original em baixo 
Cerca de 1993 na maior parte do espaço pós-soviético começou funcionar a economia do mercado, mesmo que imperfeito e surgiu a concorrência — os talões e cupões desapareceram. Como acontece sempre e em toda a parte, onde o Estado não interfere nos processos económicos – de alguma forma tudo é ajustado, por, a tal odiada pela esquerda “mão invisível do mercado”. Provavelmente, simplesmente porque as pessoas não são tão maus/ruins e impotentes quanto os comunistas imaginam que os cidadãos sejam :-)

Recentemente, várias páginas da Internet russa noticiaram que em 2019 Rússia poderá reintroduzir o sistema de cartões para os pobres – em vez de uma pensão ou salário decente e digno, as pessoas receberão cartões que poderão usar para a compra de alimentos (possivelmente subsidiados). Embora no valor de apenas cerca de 10.000 rublos (160 dólares) ao ano. O sistema de racionamento próximo ao existente na URSS; possivelmente os sonhadores com “URSS 2.0” ficarão felizes – irão às lojas, munidos de cartões e cupões para comprar açúcar e vodca :-)

Fotos: Internet | Texto Maxim Mirovich e [Ucrânia em África]

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