sábado, maio 26, 2018

Retornado do Afeganistão: as memórias de um combatente soviético

O belaruso Aliaksandr Goshtuk serviu no Afeganistão em 1982-84, numa unidade de spetsnaz, como dizia a propaganda soviética “no contingente limitado dos internacionalistas soviéticos” que ajudavam a República Democrática do Afeganistão (RDA).

A primeira coisa que Aliaksander pediu na entrevista, é para que não se fale de nenhumas “bravuras”, nem “heroísmos” daquela guerra, mas das coisas que realmente aconteciam. Na verdade, o ex-comando soviético Aliaksander, mais uma vez confirmou a ideia de que a aventura afegã era uma guerra desnecessária – tanto aos afegãos, que perderam quase um milhão de pessoas [e tiveram cerca de 5 milhões de deslocados], e para as mães soviéticas, muitas das quais perderam lá os seus filhos. Uma aventura de um governo de velhos, fora de qualquer controlo da sociedade e fora da escolha popular.

Chegada ao Afeganistão

– Aliaksandr, como você parou no Afeganistão?

Quando chegou a hora de servir no exército, foi convidado pelo comissariado militar aos cursos da sociedade DOSAAF para fazer alguns saltos de para-quedas, saltei três vezes. Não tinha um desejo especial de servir nas forças aerotransportadas, mas percebi que eles me preparavam para isso. Na chamada militar, ainda em Belarus, eu e mais 8 rapazes foram designados ao Afeganistão. Mais tarde entrei nas forças especiais, outros dois – no batalhão para-quedista de assalto (DShB), ambos morreram...
De Belarus fomos enviados ao Chirchiq nos arredores de Tachkent, no Uzbequistão – no caminho soube que iríamos ao Afeganistão. O Chirchik estava estacionada a Brigada de Forças Especiais, que incluiu o famoso “batalhão muçulmano”, que em 1979 atacou o palácio de Amin – lá serviam principalmente tajiques e uzbeques, e em 1982 foram enviados para lá cerca de 120 recrutas eslavos, eu era um deles.

— Em Chirchik vocês receberam algum treino?

Tivemos apenas a formação padrão de jovem recruta com duração de um mês – disparamos um bocado, corremos, aprendemos “liquidar o vigia”, tivemos as corridas de cross-country de oito quilómetros para o polígono e de volta. Os sargentos tiveram que correr um pouco mais – voltavam periodicamente ao final da coluna e davam os pontapés nos traseiros dos mais atrasados.

Não nos ensinaram as especialidades militares – de franco-atiradores, operadores de metralhadoras ou morteiros. Mas participamos na colheita local, descarregávamos os vagões com água mineral, trabalhávamos num talho industrial... Foi chamado à tropa em 20 de março [de 1982] e já aos 12 de junho, após toda essa “aprendizagem” foi enviado ao Afeganistão.

Nem sequer prestei o juramento militar. Antes da partida para o Afeganistão, o batalhão fez o juramento, mas queriam me deixar na União Soviética, porque eu tinha carta de condução / carteira de motorista, assim não prestei o juramento. No último momento, na URSS ficou alguém com “boas conexões” e eu fui novamente enviado ao batalhão. Ao prestar o juramento, alguém, aparentemente, assinou por mim.

Primeiros meses no Afeganistão

Ao chegar ao Afeganistão – a primeira coisa que vi – eram veteranos, indo pela pista de aeródromo até os helicópteros. Chegando mais perto, ouvimos – “se enforquem, novatos”. Depois da primeira noite, foi difícil abrir os olhos – todo o rosto estava coberto com a fina poeira afegã.
Foi colocado no 6º pelotão, unidade mecânica, mas não fiquei lá por muito tempo. Participei em algumas operações militares. Lembro-me de um episódio, nós, forças especiais, estávamos levar um camião/caminhão cisterna afegão, alguém correu, todos começaram a atirar. Eu também atirei. Puxei a trava de segurança mais forte do que era necessário – e coloquei meu AK no regime de tiro simples. Durante muito tempo não conseguia entender por que todo mundo estava atirando com rajadas e eu disparava tiros esporádicos.

Algum camponês em roupas afegãs subiu ao muro da aldeia e o nosso operador de rádio o atingiu com o fogo de metralhadora. Aparentemente, acertou nos pulmões – saiu a espuma cor-de-rosa. Então, eu completamente me desinteressei dessa guerra, tinha pensamentos sobre o que estava fazendo aqui. Nosso alferes acenou para o operador, e ele acabou por abater o homem – então eu me “desliguei” totalmente, cabeça começou a girar e passei mau. O homem afegão, à propósito, provavelmente era um civil não combatente...

— No seu pelotão havia gente que gostava matar as pessoas, os afegãos?

Não conheci nenhum que gostava de matar, acho que é algum tipo de patologia, nós não os tivemos. Num episódio os membros do KHAD (secreta comunista afegã) capturaram os prisioneiros e disseram-nos para os fuzilar – não houve um único que quisesse, nós não faríamos o tal absurdo. Os prisioneiros foram entregues aos responsáveis, só isso.
Após a unidade mecânica entrei na unidade paramédica – também aconteceu por acaso. Eu disse que não entendo disso, que tenho medo de sangue – me responderam que não era nada, que irei aprender. Tudo era assim... O operador da metralhadora era alguém culpado – recebia a metralhadora para carregar como um castigo, porque era pesada. Também não tínhamos os franco-atiradores – atirar para onde? Estávamos cercados pelas montanhas.

— Você próprio disparou contra as pessoas?
Disparei sim, mas para onde? Quando era visível em quem disparar – o melhor era não atirar. Apenas parece – somos lançados do helicóptero em grupo de 12 pessoas, marchamos carregados de munição, como os verdadeiros rangeres, mas quando somos alvo de fogo inimigo, saltamos/pulamos para a vala, para a lama, e pensamos – “Meu Deus, o que estou fazendo aqui?” Numa guerra real, os seis carregadores de AK na melhor das hipóteses chegam para meia hora de combate.

Os horrores da guerra afegã

Num dos primeiros dias de serviço como paramédico, foi enviado para lavar o corpo do soldado morto, de apelido/sobrenome Shapovalov, ele levou um tiro sob a clavícula – eu tinha que lavar o corpo, amarrar a mandíbula, para a boca não se abrir e dobrar as mãos corretamente. Comecei a lavá-lo, o virei – nas costas havia uma bolha do sangue coagulado. A ferida verteu mas algum sangue, eu tremia todo...
Mais tarde você se acostuma com essas coisas, uma vez me trouxeram doze pessoas que se pisaram o nosso próprio campo minado – uma mistura de ossos... E você simplesmente faz o seu trabalho. Porque se não for você – quem o fará? Depois de Afgan achavam que eu deveria entrar na medicina – respondi que não, tinha medo de sangue.

A escritora belarusa Svetlana Alexievich, no seu livro Rapazes de Zinco descreve como nos caixões de zinco, muitas vezes, para a União Soviética era enviada simplesmente a terra no lugar de corpos, você testemunhou algo assim?
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É possível. Nós tínhamos um necrotério no aeroporto – não havia geleiras/galadeiras, apenas um abrigo na terra. Entravam lá os mangustos e roíam os corpos... Além disso, o calor era muitas vezes superior aos +50ºC – até à União Soviética chegava uma papa/mingau. Conheço apenas um caso quando o tradutor do comandante do batalhão foi enterrado como mandam as regras – ele levou um tiro na testa em Aybak (antiga Samangan), especialmente para ele foi encomendado gelo, ele estava vestido em um fardamento de desfile...

No Afeganistão, fiquei doente com febre tifóide e icterícia. Eu peguei icterícia, aparentemente, no decorrer de uma operação militar – estava num MTLB (rebocador blindado leve, armado e com lagartas) como operador de metralhadora, percebi que os meus olhos se tornaram amarelados. E assim não foi chamado para uma próxima incursão. Eu pergunto – “então quem estará com a metralhadora?” —  não há problema”, – me responderam, – “vais ensinar um jovem”.
O meu MTLB explodiu naquela incursão, pisando um obus – a torre onde eu deveria estar, voou por cerca de 200 metros. Apenas um soldado, com alcunha de “Tártaro”, sobreviveu – ficou vivo, mas perdeu um pé – cortado pela própria blindagem da viatura atingida. Para retirar o nosso cirurgião que estava lá, MTLB caiu-lhe em cima, tiveram que reunir os “macacos” de toda a coluna.

Após saber da notícia – fiquei absolutamente “abatido”, com uma temperatura de +40ºC entrei no hospital em Pol-e Khomri. Me propuseram ficar lá, mas pedi para voltar – eu era para-quedista, membro das forças especiais. Naquela época, isso me parecia algo importante...

— Vocês tiveram os casos dos militares que se feriam propositadamente?

Sim, houve casos, muitos ficavam com medo. Tivemos um moscovita, com apelido/sobrenome Pevtsov, era considerado “filho do papai”, ninguém gostava dele. Ele disparou com AK no seu estômago – queria provocar a ferida leve e passar à reserva, mas atingiu o próprio fígado e morreu. Outro se suicidou em Jalalabad – a rajada de três munições na cabeça, não aguentou o serviço. Outro moscovita bebeu urina icterícia e passou à reserva – não participava nas missões, mas escrevia aos seus pais as estórias do tipo: “Estou escrevendo-vos essa carta numa trincheira, por cima de um capacete, seguro nas minhas mãos o último carregador...” Normalmente, escrevíamos aos nossos pais que estamos passear todos os dias e não fazíamos nada de especial.

A vida do spetsnaz soviético

No quartel improvisado da nossa unidade vivíamos em construções feitas por nós mesmos – cavamos o solo num metro de profundidade, surgiu algo parecido com um abrigo. Depois fizemos a fundação, erguemos as paredes, usando adobe, por cima colocamos a lona. No interior, havia beliches em que dormíamos. As paredes de adobe poderiam aguentar o fogo de armas ligeiras, mas isso nunca aconteceu, não deixávamos ninguém se aproximar – mesmo se aparecesse algum pastor à um quilómetro da distância, imediatamente era alvo de fogo direto até que apague o seu fogareiro.
No quartel tínhamos uma cantina – mas após um ano de serviço, ninguém comia lá, só levávamos lá o pão. Na tenda, usando o fogão feito de um tambor, preparávamos aquilo que era possível de arranhar, fritávamos as nossas batatas. Na cantina comiam apenas os “novatos” – na sopa aguada se afogava uma centena de moscas até que a levas à mesa. Nossa unidade também tinha cozinhas de campo próprias e uma padaria, nas proximidades funcionava um bazarinho local – lá vendiam o leite condensado, biscoitos e limonada em lata [o produto absolutamente inexistente na União Soviética, onde todos os refrescos eram produzidos em garrafas 0,33 – 0,5 L].

Na questão de fardamento estávamos razoavelmente bem, usávamos os padrões soviéticos “areia” e “químico” – os fardamentos camuflados de malha, de kit de proteção química, eram confortáveis no clima quente. Tínhamos os coletes à prova de bala, mas ninguém os usava – era muito quente. Nem usávamos os capacetes, exceto nas operações nas montanhas – por causa do perigo de pedras. Não usávamos os cintos de cabedal/couro, tentamos obter os de construção civil, de lona – estes não se esticavam, carregados de bolsas pesadas.

Como calçado usávamos sapatilhas/tênis – os “arranjávamos” nas batalhas, ou comprávamos ali mesmo, no bazarinho. Praticamente não tivemos os coletes de descarga – usávamos coletes de natação, tirávamos de lá polietileno e metíamos os carregadores de AK.

Absolutamente mal estávamos com medicamentos – basicamente, tudo que usávamos eram troféus. Apanhamos muitos medicamentos de troféu [no decorrer dos combates] no desfiladeiro de Marmol – havia sistemas muito bons de soro e tudo o resto. Na União Soviética nada disso existia!

Todos usavam drogas no Afeganistão – não tínhamos nada para fazer entre as operações, acontecia que as pessoas fumavam droga as vezes até dez vezes ao dia. Em Aybak se usava anasha [calão soviético genérico para canábis sativa e haxixe], e as unidades que ficaram em Cabul – a heroína mais pura.

Vocês tiveram o assim chamado dedovshina [sistema de abusos e bullying, perpetuado pelos soldados veteranos]?

Dizer que em Afeganistão existiu o dedovshina é não dizer nada, em Aybak tudo era executado à correr – se um novato apenas caminhava – ele apanhava dos “avós” (veteranos). Se um veterano mandava buscar uma peça de pão – você poderia sair de manha e voltar só à noite, no caminho alguém o iria interceptar – “oi, novato, estas muito folgado, faz isso e mais aquilo”... Voávamos como os diabos! Numa incursão de combate – você estaria colado ao “seu” veterano, mas dentro da unidade era assim.

Todos pediam para ir às operações de combate – na unidade não havia nada para fazer, era um tédio, na operação se podia “arranjar” alguma coisa.

Vocês tiveram alguma “preparação política”? Os vice-comandantes políticos (zampolit, uma espécie de comissário político do exército soviético) tentavam vos endoutrinar?

Não, praticamente não tivemos coisas deste tipo. Oficial da secreta militar e zampolit corriam principalmente à cheirar o ár para ver quem é que fuma a maconha. Pessoalmente, eu nunca teve nenhum “sentimento de dever internacionalista”.

A vida depois
Fiquei no Afeganistão por mais de dois anos – falei com vários veteranos, ninguém ficou mais tempo. Do Afeganistão voltei em 1984, na época, ainda tentavam ocultar a guerra de todas as maneiras possíveis – recebi um documento chamado Certificado de direito aos benefícios, sem quaisquer pormenores. Nos jornais, na imprensa e na TV não se dizia uma única palavra – como se nos nunca estivéssemos lá.

Quando voltei para casa, os primeiros meses tudo era muito estranho, sentia até raiva das pessoas, do tipo, “vocês – aqui, e nós – lá”... Mas isso rapidamente me passou. Todas essas histórias que as pessoas sentem muita dificuldade em se adaptar – muitas vezes são alguns estereótipos, que passam do veterano ao veterano. Aquele que se perdeu na bebida – o mais provavelmente se teria perdido sem passar pelo Afeganistão, apenas estava para ai virado.
Eu não vós mandei ao Afeganistão...
Cartoon soviético da época de Perestroika, 1987 (?)
Na década de 1980 fui trabalhar na polícia, em 1986, trabalhei em Chornobyl, depois entrei na polícia de choque, OMON, que então tinha apenas sido criado – era muito legal e interessante, uma nova unidade de combate contra os criminosos, pensei – mesmo à calhar para mim! Mas depois eu saí de lá – e mesmo sendo um ateu, dou graças ao Deus por não me meter no atual OMON, que surgiu depois de 1994, após a dissolução do Conselho Supremo [da Belarus].

— O que você pensa sobre os veteranos do Afeganistão?

Assisti um par de vezes o dia das forças aerotransportadas (VDV), mas rapidamente foi embora. Infelizmente, a maioria dos ex-veteranos do Afeganistão sentem a nostalgia pela URSS – na verdade, eles são realmente nostálgicos pela sua juventude, depois da qual não fizeram nada de excepcional. Para meu grande pesar, muitos dos ex-veteranos [da Belarus] agora estão na Donbas, lutando pelas repúblicas autoproclamadas – até os entendo de alguma forma. As pessoas vivem em algum cú distante e vão para a Donbas para lutar contra a rotina da sua vida, são os alcoólatras de ontem que, de repente, querem ser heróis. Da mesma forma, como em Afgan queríamos ir às operações de combate – dentro da unidade reinava dedovshina e um tédio mortal...

— O que você faz agora?

Eu tenho uma boa família, trabalho num dos serviços do táxi de Minsk, ganho bem, sou um capataz. Conduzo um Toyota híbrido – sigo a tecnologia, estou interessado em todas as novidades, o meu próximo carro será elétrico) Tento não me recordar da guerra, ocasionalmente assisto os filmes militares. Bons filmes sobre a guerra são aqueles, assistindo quais, você nunca terá o desejo de ir à guerra.

— A última pergunta. Será que o Afeganistão e tudo o que aconteceu lá de alguma forma influenciou a formação de suas convicções democráticas?

Para ser sincero – não sei. Afeganistão e tudo o que aconteceu comigo lá – foi em alguma infância distante.

Texto e fotos atuais Maxim Mirovich

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