A
servidão que se enraizou no império russo desde século XVI foi abolida apenas em
1861, e na época do golpe bolchevique de outubro de 1917 ainda havia as pessoas
que se lembravam da servidão, eles tinham 60-70-80 anos de idade – na verdade,
eram os pais e avós de alguns bolcheviques, que chegaram ao poder na sequência
de um golpe militar.
De
onde veio a servidão?
Servidão
tomou a forma jurídica no fim do século XVI, quando aos agricultores foi
finalmente vedado o direito de mudar o proprietário latifundiário rural. Em
1592 no principado de Moscovo foi abolida a “regra do dia de São Jorge” (26 de
novembro (9 de dezembro)) – neste dia os camponeses tinham o direito de mudar do
proprietário rural para quem trabalhariam todo o ano seguinte. Até então, os
camponeses eram relativamente livres e só tinham a obrigação de cumprir corveia ou pagar o obrok (quinhão, o equivalente moderno do
imposto pago por um percentual de produtos manufaturados, pós-colheita, etc.).
Depois
as coisas pioraram, à partir de meados do século XVII é definido o período
ilimitado de busca e captura de servos fugitivos – ou seja, o proprietário
latifundiário obtinha o direito recapturar e levar à sua propriedade, tanto o servo
agricultor, quer e sua família, incluindo os seus filhos. A propriedade pessoal
dos servos também passou a ser considerada propriedade do latifundiário. No entanto,
no século XVII, ainda não havia a venda livre e massificada dos servos – um dos Códigos reais estabelecia que “ninguém poderá vender as pessoas batizadas”.
Desde
o século XVIII, as leis mudam – tornou-se possível negociar livremente os
servos. Na verdade, o que começou como uma forma de uma espécie do “imposto” governamental
aos camponeses agricultores (impostos obrigatórios mais a proibição da passar livremente para um outro proprietário) começou se transformar numa privação completa de
quaisquer direitos civis dos camponeses – começou a escravidão real.
No
século XVIII e na primeira metade do século XIX floresceu o comércio livre de servos. Existiam algumas restrições, tais
como a proibição da separação das famílias de camponeses, mas estas nem sempre eram
observadas, os servos eram considerados a propriedade privada do latifundiário,
e embora, se no decorrer da punição corporal este morria – o proprietário teria que responder
perante a lei, mas com pouco de dinheiro escaparia qualquer punição legal ou
mesmo a reprimenda cívica.
Como
os servos viviam e trabalhavam
Os
servos eram uma grande parte da população das grandes cidades do império russo.
Na década de 1830, a população de São Petersburgo era de 450.000 pessoas, das quais
servos eram 200.000 – quase a metade. Os servos eram mantidos em
constante medo, de acordo com a prescrição – “eles deveriam viver em silêncio, quietos
e com medo constante de punição”. Para evitar fugas os servos não recebiam os passaportes (documentos de identificação) – a
mesma política, em relação aos camponeses, foi adotada pela União Soviética
cerca de um século depois.
Nas
cidades, os servos trabalhavam em grandes projetos de construção – erigiram a
maioria dos edifícios monumentais de São Petersburgo – que, em meados do século
XIX, por sinal, era uma cidade baixa com a maioria das casas feitas de madeira
e não de pedra. Em grandes canteiros de obras, os trabalhadores eram
supervisionados por zeladores e capatazes – muitas vezes eram pessoas livres e mesmo estrangeiros “alemães” (assim no império russo eram chamados vários
estrangeiros, provenientes da Europa Ocidental protestante).
Como
na URSS estalinista, os servos russos viviam em grandes barracas às brigadas inteiras,
ou alugavam espaços grandes (também para a brigada inteira): grandes salas com várias
janelas, com um fogão russo num dos cantos, e ao longo das paredes beliches de
várias camadas – na sala de 30-40 m² podiam viver de 40 à 60 pessoas –
homens, mulheres e crianças.
Os
servos de Petersburgo comiam muito mal – a comida diária era broa simples (que
levavam consigo para o trabalho), na melhor das hipóteses o pão podia ser acompanhado
por um pedaço de manteiga ou uma cebola. À noite era preparada a sopa russa
chamada schi – muitas vezes era
apenas um repolho cortado em 4 pedaços e fervido em água salgada.
Como
as pessoas eram negociadas em São Petersburgo
Jornais russos do final dos séculos XVIII-XIX estavam cheios de anúncios sobre as “pessoas para
a venda”. Num dos anúncios, o proprietário vendia as suas propriedades: “tudo
já foi vendido, ficou apenas uma vaca leiteira e um menino que sabe pentear o
cabelo”. Um outro anúncio dizia: “se vende um pequeno de 17 anos e um conjunto de
móveis”. Numa outra edição do jornal, foi publicitado que “se vende uma moça de
30 anos e um jovem cavalo”. Nos jornais do ano 1800 se podia ler: “são vendidos
o marido e a sua esposa, de 40-45 anos, de bom comportamento e um jovem cavalo castanho/marrom”.
Vendedores não hesitavam, descrevendo os seus “produtos”: “a mulher de 40 anos, bonita
de cara e boa de corpo”; “menino é um mestre e sabe a arte de sapateiro”, “a gaja
de 40 anos, não perde para um bom cozinheiro na preparação das refeições”.
Anúncios de um jornal russo de 22/02/1800. Sapateiro custa 500 rublos e cortador (?) 400 |
Além
da venda de camponeses por anúncios, havia também verdadeiros mercados de
escravos – eram organizados por empreendedores à imagem e semelhança dos
mercados orientais. Os mercados de escravos estavam localizados nos lugares
proeminentes e transitórios da capital russa da época, na ponte Potseluev
ou no canal Ligovsky. Os compradores vinham e escolhiam o “produto”, agindo tal-é-qual como na compra de um cavalo – era obrigatório apalpar o servo “na questão
de ferimentos e doenças”, bem como ver os seus dentes.
Os
preços dos servos mudavam seguindo os tempos. Os mais caros eram mestres de
seus ofícios: cozinheiros e cabeleireiros, e os mais baratos – os camponeses
fracos, incapazes de trabalhar. No final do século XVIII os servos custavam, em média, até
100 rublos, em 1782 foi feito um inventário dos bens de um tal capitão Ivan Zinoviev,
em que foram incluídos, os camponeses: “Leonty Nikitin, 40 anos, avaliado em 30
rublos, sua esposa Maria Stepanova, 25 anos, avaliada em 10 rublos. Efim
Osipov, 23 anos, avaliado em 40 rublos, sua esposa Maria Dementeva, 30 anos, avaliada
em 8 rublos”.
No
século XIX, os preços começaram a subir, e os servos foram vendidos por várias
centenas de rublos por cada “alma”, em São Petersburgo os preços eram particularmente
altos, nas províncias – mais baixos.
São Petersburgo, meados do século XIX |
Mas o preço de um bom cozinheiro poderia chegar aos milhares de rublos. Um cabeleireiro
experiente custava não menos que mil rublos. Um preço especial valiam os
servos, inclinados aos negócios. Os proprietários os sobrecarregaram com o
quinhão considerável, e alguns desses mujiques comerciais garantiam a renda não
menor de que uma grande propriedade. Um deles recordava que a sua servidão não o
atrapalhava, e mesmo ajudava nos negócios. Um nobre proprietário com ótimas
conexões servia como boa cobertura contra as investidas de pequenos
oficiais controladores. Mas quando o quinhão começou a sobrecarregá-lo
excessivamente, tirando os ativos e destruindo o comércio, ele decidiu se
libertar, oferecendo ao seu dono 5 mil rublos pela sua liberdade. Ao que recebeu a resposta:
“Esquece mesmo de pensar” [fonte].
Fim
da servidão e a guerra na Crimeia do século XIX
Ironicamente,
a razão para a abolição da servidão não era nenhum “humanismo” (aceite por um pequeno
punhado de intelectuais que liam livros e escreviam artigos nos jornais), mas a
banal falta de dinheiro – entre 1853 à 1856, nas vésperas da famosa “reforma
camponesa” de 1861, a Rússia entrou na Guerra da Crimeia, que
arruinou o seu sistema financeiro. Rússia teve de recorrer à impressão de bilhetes
de tesouro não garantidos, e o rublo se desvalorizou em metade. A servidão tornou-se
um fardo não lucrativo para o débil corpo de uma economia já bastante frágil –
e foi decidido aboli-la.
Naturalmente
a decisão foi apresentada ao “zé povão” como a maior misericórdia real – o rei
acordou numa manhã e decidiu dar a liberdade aos servos. O manifesto real foi
chamado “Sobre a mais Graciosa Dádiva às pessoas servas do direito de
habitantes rurais livres”. Traduzido, isso significa que agora os camponeses
não-livres eram equiparados aos camponeses livres.
Essa
nova “liberdade” não era muito diferente da anterior falta dela – sim, as
pessoas deixaram de serem a mercadoria, mas agora eles tiveram que pagar o
aluguer/l ao proprietário rural pela terra que usavam, ou tinham que servir ao
latifundiário. Em geral, a “vitória da Crimeia” não fez os ex-servos mais felizes.
Ecos
da servidão. Em vez de um epílogo
A
escravidão foi abolida há pouco mais de 150 anos, e os bolcheviques, que
chegaram ao poder em 1917, eram descendentes diretos dos servos da primeira e segunda
geração. Por um lado, as pessoas tentavam se livrar da “antiga opressão”, que
conheciam das histórias de seus pais/avós, e, por outro lado, elas mesmas,
sem saber, absorviam completamente os hábitos familiares e o modo de vida dos ex-servos.
A fuga da servidão comunista kolkhoziana à mendicidade Moscovo (?), 1947 |
Na
verdade, o sistema económico construído na URSS não era muito diferente da
servidão czarista e, em alguns casos, a superou – as pessoas continuavam a viver
sem possuir os direitos, na URSS não existiam os sindicatos reais para proteger
estes direitos e os camponeses nem possuíam os passaportes (documentos de
identificação) desde a década de 1930 até os anos 1970 – os kolkhozes
soviéticos não diferiam muito da comunidade feudal. Na época da servidão,
acreditava-se que o senhorio tinha um “poder supremo” sobre os seus servos, na
URSS, o “Estado” abstrato passou a deter o tal poder, que considerava os
habitantes do país não como cidadãos livres, mas como súditos.
O
que é interessante é que muitos publicistas russos hoje novamente consideram a
servidão como algo de bom, criando pérolas como “a servidão era um componente
orgânico e necessário da realidade russa”.
Fotos:
Internet | Texto: Maxim
Mirovich
4 comentários:
Muito boa a abordagem sobre a servidão na Rússia. Elemento crucial para compreender a literatura daquele país. Excelente compilação.
Estou lendo o Livro "Os Irmãos Karamázov" e a pesquisar o termo "Mujique" me deparei com esse texto bastante esclarecer. Muito Bom. Parabéns!
Atenção que o termo mujique tem dois significados:
1. Camponês, substantivo masculino, em uso em toda a literatura russa, de Tolstoy à Dostoievski e etc, etc.
2. Desde as décadas de 1930-40 até hoje no calão prisional soviético/russo mujique significa prisioneiro trabalhador, sujeito é neutro, não faz parte do submundo dos ladrões, nem do mundo dos "ativistas" (aktiv) que colaboram com o sistema prisional para maltratar outros prisioneiros ao mando da administração do sistema penitenciário russo.
Como disse Lermontov: "Rússia, país de escravos".
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