O
jornal português “Expresso” se dedicou ao estudo do Arquivo Mitrokhin
guardado na Universidade de Cambridge. Se trata de maior coleção de materiais
sobre as atividades dos serviços secretos soviéticos, que só recentemente se
tornaram disponíveis ao público geral. A publicação de hoje é sobre os segredos
da KGB em Lisboa e as suas ligações com Portugal.
por:
Paulo Anunciação, Expresso
(link apenas para os assinantes), a versão curta
A
residentura do KGB em Portugal
Os
documentos do arquivo, guardados no The Churchill Archives Centre – possuem diversos
materiais dedicados ao Portugal, no período entre 1974 à 1982: pelo menos 172
menções do país.
Em
1980 a residentura do KGB em Portugal era encabeçada pelo Youri A. Semenitchev
(Yuriy Semenychev), oficialmente o 1º secretário da embaixada e contava com 14
operativos: 6 pertenciam à linha “PR” («inteligência estratégica política, económica
e militar, medidas ativas»), 2 — à linha «KR» (contra inteligência e segurança»)
e mais 2 — à linha «N» («apoio dos ilegais»). Além disso, a residentura possuía
um operador de rádio, um agente de codificação, um agente da linha «H» («inteligência
científica e técnica») e mais um — à linha «RP» («inteligência radioeletrónica»).
Todos
os agentes do KGB em Portugal trabalhavam sob cobertura legal, ocupando os diversos
postos na embaixada ou no serviço consular da missão soviética em Lisboa. Em 1980
o agente da linha «H» em Portugal era Boris F. Kesarev
— oficialmente o chefe da representação comercial soviética. Anteriormente ele
mostrou o seu serviço em Paris (em dezembro de 1974 foi condecorado pela Ordem
da Bandeira Vermelha, a condecoração assinada pessoalmente pelo chefe do KGB,
Yuriy Andropov). Outros agentes usavam outras disfarças: Victor P. Nesterov,
oficial do KGB da linha “PR” usava a cobertura do correspondente do jornal «Izvestia»,
o mesmo acontecia com outros “jornalistas” soviéticos das agências TASS e APN. O
arquivo Mitrokhin menciona os agentes L. K. Agapov (correspondente do «Izvestia»
em Lisboa entre 1975 e 1978) e Viktor
Gundarev, delegado em Portugal da Associação do Transporte do Mar Negro (em
1986, Gundarev, na altura o vice-chefe da residentura do KGB em Grécia, a sua
companheira, diretora da escola soviética em Atenas e filho de 7 ou 8 anos fugiram
para os EUA, com ajuda da CIA).
Oficial do KGB Victor P. Nesterov, ainda estudante-finalista da Universidade Estatal de Moscovo, 1972 |
A
residentura do KGB começou funcionar em Lisboa em agosto de 1974, a embaixada
soviética, situada temporariamente no hotel “Tivoli”, se abriu no fim de julho
do mesmo ano. O primeiro embaixador soviético em Portugal, Arnold Kalinin
aterrou em Lisboa em 7 de agosto. Anteriormente ele trabalhou na embaixada
soviética em Cuba, falava espanhol e português (mais tarde foi transferido para
Angola), encabeçando a embaixada que no verão de 1974 contava com mais de 210 funcionários
soviéticos, incluindo 15 diplomatas de carreira (muitos deles agentes do KGB).
No
primeiro ano do funcionamento as comunicações com o «centro» (a sede do KGB em
Moscovo) eram organizadas via Paris. No decorrer da Guerra Fria em Paris estava
o maior número dos agentes soviéticos — pelo menos 50 — mais do que em qualquer
outra cidade da Europa Ocidental. Em 1977 o volume de relatórios criptografados
de Lisboa era tão grande – foram enviados 5.837 criptogramas de 938.906 grupos que
a estação pediu ajuda: “A carga é incrível, precisamos de uma nova máquina de
criptografia”, lemos em uma das notas do Mitrokhin de 1978.
A
residentura também teve outras reclamações: “Portugal é um país periférico que
está isolado há muito tempo e, portanto, aqui não é possível trabalhar em
muitas questões internacionais significativas”, diz uma das anotações. A residentura reclama do facto de que “muitos golpes e contra-golpes (28 de setembro de
1974, 11 de março de 1975, 25 de novembro de 1975) destruíram vários contatos e
conexões com os portugueses, o que os obriga a estabelecer novos contatos”.
De
acordo com o registo de 1978, a embaixada soviética em Lisboa reparou e equipou
três novas salas – duas delas para a residentura do KGB. As contas de 1979, copiados
por Mitrokhin, indicam uma falta grave de fundos na administração da residentura
da capital portuguesa – 9.400 rublos. “As despesas de acordo com o Artigo 1 UA
(agentes) totalizaram 10.400 rublos, enquanto as despesas de acordo com o
Artigo 1 UD (despesas operacionais) totalizaram 18.000. O montante total de
28.400 rublos (conversível em moeda estrangeira) excede o planeamento
financeiro em 9.400 rublos (conversível em moeda estrangeira)”
Nome
de código: «Patrick»
Durante
décadas o Partido Comunista Português (PCP) negava, de forma categórica,
qualquer tipo de cooperação com os serviços secretos soviéticos. Na entrevista
publicada no jornal oficial do PCP, Avante!, em 13 de Outubro de 1994, o líder comunista
Álvaro Cunhal assegurou que PCP pediu repetidamente ao partido comunista
soviético e aos outros países socialistas “que dêem instruções específicas para
que os respetivos serviços secretos se abstenham de tentar encontrar informação
ou recrutamento entre membros do nosso partido”.
Os
arquivos da KGB, copiados por Vasily Mitrokhin, mostram um quadro completamente
diferente. O PCP não só permitia, mas também estimulava e encorajava o
recrutamento de membros e apoiantes do partido pelo KGB. Os documentos mostram
que muitos dos agentes portugueses do KGB foram recrutados sob a direção ou
recomendação do PCP.
Em
dezembro de 1974, o chefe da residentura do KGB em Lisboa (“Leonid”) reuniu-se
com o líder do PCP, Álvaro Cunhal, num dos apartamentos secretos do partido. “Questões
específicas foram discutidas. A conversa ocorreu não com palavras, mas com a
ajuda de papel e lápis, por medo de escutas telefónicas”. De acordo com esse
registo, Cunhal declarou a sua prontidão para “cooperar em qualquer assunto de
interesse do KGB”. Foi decidido que a KGB treinaria dois membros do partido
para detectar dispositivos de escutas (Cunhal prometeu selecionar “dois
camaradas de confiança”). O líder português também anunciou que entregaria ao
KGB “os materiais da PIDE e da NATO/OTAN à disposição do partido”.
A propaganda do PCP de 1976 |
Outro
nome que mais constantemente é encontrado nos registos relativos ao Portugal é “Patrick”,
o nome do código claramente indicado ao Octávio Pato, um dos membros principais
do Comité Central do PCP, deputado e candidato nas eleições presidenciais de
1976. Os seus encontros a residentura do KGB em Lisboa eram de natureza regular
(“uma ou duas vezes por mês”). Numa dessas reuniões, “Patrick” entregou “informações
militares secretas sobre os americanos, obtidas por meio de um agente do PCP”, está
escrito num dos documentos. Ao KGB também eram fornecidas as informações sobre
o partido, sobre questões políticas nacionais e sobre a NATO/OTAN. Mitrokhin
também informa que em 1980 a Primeira Direção do KGB em Moscovo estava
discutindo a possibilidade de fornecer aos comunistas portugueses “meios
técnicos especiais” com a finalidade de instalá-los em “objetos de interesse”
em Portugal.
Em
julho de 1977, durante uma visita do Octávio Pato ao Moscovo, a Primeira
Direção do KGB lhe pediu para ajudar na seleção de candidatos portugueses que
serão submetidos a treino específico para realizar as operações especiais
contra a NATO. “Patrick”, disse que não tinha objeção para indicar os membros
do partido para determinada missão secreta periódica “nos interesses da URSS”,
mas expressou preocupação sobre a potencial perda de “bons comunistas
confiáveis” para o trabalho de inteligência de longo prazo. Pato prometeu
discutir essa questão com Cunhal.
De
acordo com os documentos do arquivo Mitrokhin, mais tarde “Patrick” apresentou
à residentura do KGB em Lisboa os nomes de cinco potenciais candidatos – cinco
comunistas portugueses “que não ocupavam as posições de responsabilidade no
partido” – e entregou os passaportes portugueses limpos e outros documentos [de
identificação] que poderiam ser necessários para a criação de novas identidades
dos candidatos.
No
início de 2016 e para colher a posição do partido, o jornal Expresso contactou
o serviço de imprensa do PCP, que seguindo as deixas do Cunhal declarou que: «nega
veementemente velhas falsificações, difamações e provocações anti-comunistas».
Ver o documento original em formato PDF |
[No
entanto, os dados do arquivo Mitrokhin são corroborados, de forma absolutamente
independente pelo arquivo
Bukovsky. Nomeadamente, em abril de 1980, o camarada Octávio Pato, pediu o
CC do PCUS financiar a compra dos “equipamentos especiais do fabrico
estrangeiro para garantir a segurança do partido”. Em 13 de maio do mesmo ano,
o CC do PCUS concordou (documento número CT210/62) e incumbiu o Ministério das
Finanças da URSS alocar à Direção dos serviços do CC do PCUS as divisas no
valor 2.500 rublos expressos em divisas (equivalente aos 3.000 USD). O CC do
PCUS também deu a ordem ao KGB para comprar e fornecer os equipamentos aos
“amigos portugueses”. A questão foi coordenada com o chefe do KGB, Yuri
Andropov e os gastos forma cobertos pelo orçamento do PCUS [ver
o documento em formato PDF]].
Aproximação
ao Mário Soares
Arquivo
Mitrokhin possui três menções do Mário Soares, que no período de 1972 e 1977 era
alvo da tentativa de aproximação por parte do KGB. Para o efeito, Portugal foi
repetidamente visitado pelo agente do KGB V(ladimir?) I. Koblikov, sob o
disfarce de visitas oficiais da União das Sociedades soviéticas para Amizade e
laços culturais com países estrangeiros. Os objetivos reais do Koblikov, no
entanto, eram “estabelecer contactos e relação de confiança com os partidos
socialista e comunista”. Cunhal estava ciente da missão para se aproximar de
Soares, cujo nome de código era “Merkuriy” (Mercúrio); é de notar que KGB
atribuía os nomes de código não apenas aos seus agentes e funcionários, mas
também às pessoas que eram alvos de suas operações clandestinas. “Koblikov
recebeu informações de “Mercuriy” e a carta ao Brejnev. No entanto, as metas
previstas não foram cumpridas”, – menciona um dos registos.
Uma
nota de 1977 observa que Soares, então primeiro-ministro do governo
constitucional, estava na lista de contatos de um dos agentes da KGB em Lisboa,
nome de código “Yaroslav”. “Graças à ajuda das pessoas de confiança da residentura
[do KGB em Lisboa] e graças aos esforços de bastidores de Mário Soares, a residentura
conseguiu fechar os semanários reacionários “Telex” [dirigido pelo Sammy Santos]
e “A Rua” [dirigido pelo Manuel Maria Múrias],
que publicavam regularmente materiais anti-soviéticas”. Também se diz que,
graças à influência do mesmo Soares sobre os líderes do partido e sobre os
círculos militares e políticos portugueses, foi adiada por um período longo, reprogramada
para 1978, a conferência europeia contra a ameaça soviética.
O
último registo de arquivo Mitrokhin sobre Mário Soares não está datado, mas
supõe-se que se refira ao início dos anos 1980, quando André Gonçalves Pereira
atuou como ministro dos Negócios Estrangeiros / Relações Exteriores dos VII e
VIII governos constitucionais (1981-82). “Patrick [Octávio Pato] do PCP
informou-nos que o partido possui os dados comprometedores das ligações entre
M. Soares e A. Gonçalves Pereira com a CIA e os americanos, embora não haja
provas visíveis, fotos ou contas bancárias. Este material pode ser usado em um outro
país”, dizia a nota.
«Agulhas»
do PCP
Em
1991, após a apreensão de arquivos do PCUS pelo governo russo de Boris Yeltsin,
foi publicada uma série de documentos para identificar os números exatos
desembolsados pela URSS aos “partidos irmãos” no Ocidente. Considera-se que na
década de 1980 – um momento em que a URSS estava sofrendo uma tremenda escassez
de moeda estrangeira – PCUS distribuiu mais de 200 milhões de dólares entre os «partidos
irmãos» fora do bloco soviético. No seu livro “Cunhal, Brezhnev e 25 de Abril”
(2013), o jornalista e historiador português José Milhazes relata que naquele período
PCP recebia entre 700.000 dólares (em 1981) até um milhão de dólares (em 1987-1989)
em subsídios soviéticos.
Ler mais | imagem @darussia |
Tal
como no caso dos outros partidos, a atribuição de recursos financeiros de Moscovo
ao PCP era decidido pelo Comité Central do PCUS, e as transferências estavam ao
cargo do KGB. Na correspondência entre o “centro” e a residentura de Lisboa,
esse dinheiro sempre era chamado de “agulhas”. No Canada, por exemplo,
subsídios ao Partido Comunista Canadense receberam o nome de código de “trigo
americano”.
Nos
registos de Mitrokhin de 1977 sobre o encontro de agentes soviéticos com “Patrick”
– o contacto preferencial da residentura do KGB em Lisboa entre a elite
comunista – é relatado que, além de a troca de informação política, se falou
sobre “a questão dos preparativos especiais necessários para a transmissão de "agulhas"”.
Documentos
raramente se referem aos valores específicos. Em um dos registos é relatado que
representantes do jornal soviético «Pravda» participaram em setembro de 1978 no
festival Avante! e «entregaram 576.000 escudos portugueses» – que aos preços de
2015 corresponderiam aos 43.000 Euros (de acordo com a atualização dos valores
com base no índice de preços ao consumidor).
continua…
Sem comentários:
Enviar um comentário