segunda-feira, abril 09, 2018

Arquivo Mitrokhin: a rede do KGB em Portugal

O jornal português “Expresso” se dedicou ao estudo do Arquivo Mitrokhin guardado na Universidade de Cambridge. Se trata de maior coleção de materiais sobre as atividades dos serviços secretos soviéticos, que só recentemente se tornaram disponíveis ao público geral. A publicação de hoje é sobre os segredos da KGB em Lisboa e as suas ligações com Portugal.

por: Paulo Anunciação, Expresso (link apenas para os assinantes), a versão curta

A residentura do KGB em Portugal

Os documentos do arquivo, guardados no The Churchill Archives Centre – possuem diversos materiais dedicados ao Portugal, no período entre 1974 à 1982: pelo menos 172 menções do país.

Em 1980 a residentura do KGB em Portugal era encabeçada pelo Youri A. Semenitchev (Yuriy Semenychev), oficialmente o 1º secretário da embaixada e contava com 14 operativos: 6 pertenciam à linha “PR” («inteligência estratégica política, económica e militar, medidas ativas»), 2 — à linha «KR» (contra inteligência e segurança») e mais 2 — à linha «N» («apoio dos ilegais»). Além disso, a residentura possuía um operador de rádio, um agente de codificação, um agente da linha «H» («inteligência científica e técnica») e mais um — à linha «RP» («inteligência radioeletrónica»).

Todos os agentes do KGB em Portugal trabalhavam sob cobertura legal, ocupando os diversos postos na embaixada ou no serviço consular da missão soviética em Lisboa. Em 1980 o agente da linha «H» em Portugal era Boris F. Kesarev — oficialmente o chefe da representação comercial soviética. Anteriormente ele mostrou o seu serviço em Paris (em dezembro de 1974 foi condecorado pela Ordem da Bandeira Vermelha, a condecoração assinada pessoalmente pelo chefe do KGB, Yuriy Andropov). Outros agentes usavam outras disfarças: Victor P. Nesterov, oficial do KGB da linha “PR” usava a cobertura do correspondente do jornal «Izvestia», o mesmo acontecia com outros “jornalistas” soviéticos das agências TASS e APN. O arquivo Mitrokhin menciona os agentes L. K. Agapov (correspondente do «Izvestia» em Lisboa entre 1975 e 1978) e Viktor Gundarev, delegado em Portugal da Associação do Transporte do Mar Negro (em 1986, Gundarev, na altura o vice-chefe da residentura do KGB em Grécia, a sua companheira, diretora da escola soviética em Atenas e filho de 7 ou 8 anos fugiram para os EUA, com ajuda da CIA).
Oficial do KGB Victor P. Nesterov,
ainda estudante-finalista da Universidade Estatal de Moscovo, 1972
A residentura do KGB começou funcionar em Lisboa em agosto de 1974, a embaixada soviética, situada temporariamente no hotel “Tivoli”, se abriu no fim de julho do mesmo ano. O primeiro embaixador soviético em Portugal, Arnold Kalinin aterrou em Lisboa em 7 de agosto. Anteriormente ele trabalhou na embaixada soviética em Cuba, falava espanhol e português (mais tarde foi transferido para Angola), encabeçando a embaixada que no verão de 1974 contava com mais de 210 funcionários soviéticos, incluindo 15 diplomatas de carreira (muitos deles agentes do KGB).

No primeiro ano do funcionamento as comunicações com o «centro» (a sede do KGB em Moscovo) eram organizadas via Paris. No decorrer da Guerra Fria em Paris estava o maior número dos agentes soviéticos — pelo menos 50 — mais do que em qualquer outra cidade da Europa Ocidental. Em 1977 o volume de relatórios criptografados de Lisboa era tão grande – foram enviados 5.837 criptogramas de 938.906 grupos que a estação pediu ajuda: “A carga é incrível, precisamos de uma nova máquina de criptografia”, lemos em uma das notas do Mitrokhin de 1978.

A residentura também teve outras reclamações: “Portugal é um país periférico que está isolado há muito tempo e, portanto, aqui não é possível trabalhar em muitas questões internacionais significativas”, diz uma das anotações. A residentura reclama do facto de que “muitos golpes e contra-golpes (28 de setembro de 1974, 11 de março de 1975, 25 de novembro de 1975) destruíram vários contatos e conexões com os portugueses, o que os obriga a estabelecer novos contatos”.

De acordo com o registo de 1978, a embaixada soviética em Lisboa reparou e equipou três novas salas – duas delas para a residentura do KGB. As contas de 1979, copiados por Mitrokhin, indicam uma falta grave de fundos na administração da residentura da capital portuguesa – 9.400 rublos. “As despesas de acordo com o Artigo 1 UA (agentes) totalizaram 10.400 rublos, enquanto as despesas de acordo com o Artigo 1 UD (despesas operacionais) totalizaram 18.000. O montante total de 28.400 rublos (conversível em moeda estrangeira) excede o planeamento financeiro em 9.400 rublos (conversível em moeda estrangeira)”

Nome de código: «Patrick»

Durante décadas o Partido Comunista Português (PCP) negava, de forma categórica, qualquer tipo de cooperação com os serviços secretos soviéticos. Na entrevista publicada no jornal oficial do PCP, Avante!, em 13 de Outubro de 1994, o líder comunista Álvaro Cunhal assegurou que PCP pediu repetidamente ao partido comunista soviético e aos outros países socialistas “que dêem instruções específicas para que os respetivos serviços secretos se abstenham de tentar encontrar informação ou recrutamento entre membros do nosso partido”.

Os arquivos da KGB, copiados por Vasily Mitrokhin, mostram um quadro completamente diferente. O PCP não só permitia, mas também estimulava e encorajava o recrutamento de membros e apoiantes do partido pelo KGB. Os documentos mostram que muitos dos agentes portugueses do KGB foram recrutados sob a direção ou recomendação do PCP.

Em dezembro de 1974, o chefe da residentura do KGB em Lisboa (“Leonid”) reuniu-se com o líder do PCP, Álvaro Cunhal, num dos apartamentos secretos do partido. “Questões específicas foram discutidas. A conversa ocorreu não com palavras, mas com a ajuda de papel e lápis, por medo de escutas telefónicas”. De acordo com esse registo, Cunhal declarou a sua prontidão para “cooperar em qualquer assunto de interesse do KGB”. Foi decidido que a KGB treinaria dois membros do partido para detectar dispositivos de escutas (Cunhal prometeu selecionar “dois camaradas de confiança”). O líder português também anunciou que entregaria ao KGB “os materiais da PIDE e da NATO/OTAN à disposição do partido”.
A propaganda do PCP de 1976
Outro nome que mais constantemente é encontrado nos registos relativos ao Portugal é “Patrick”, o nome do código claramente indicado ao Octávio Pato, um dos membros principais do Comité Central do PCP, deputado e candidato nas eleições presidenciais de 1976. Os seus encontros a residentura do KGB em Lisboa eram de natureza regular (“uma ou duas vezes por mês”). Numa dessas reuniões, “Patrick” entregou “informações militares secretas sobre os americanos, obtidas por meio de um agente do PCP”, está escrito num dos documentos. Ao KGB também eram fornecidas as informações sobre o partido, sobre questões políticas nacionais e sobre a NATO/OTAN. Mitrokhin também informa que em 1980 a Primeira Direção do KGB em Moscovo estava discutindo a possibilidade de fornecer aos comunistas portugueses “meios técnicos especiais” com a finalidade de instalá-los em “objetos de interesse” em Portugal.

Em julho de 1977, durante uma visita do Octávio Pato ao Moscovo, a Primeira Direção do KGB lhe pediu para ajudar na seleção de candidatos portugueses que serão submetidos a treino específico para realizar as operações especiais contra a NATO. “Patrick”, disse que não tinha objeção para indicar os membros do partido para determinada missão secreta periódica “nos interesses da URSS”, mas expressou preocupação sobre a potencial perda de “bons comunistas confiáveis” para o trabalho de inteligência de longo prazo. Pato prometeu discutir essa questão com Cunhal.

De acordo com os documentos do arquivo Mitrokhin, mais tarde “Patrick” apresentou à residentura do KGB em Lisboa os nomes de cinco potenciais candidatos – cinco comunistas portugueses “que não ocupavam as posições de responsabilidade no partido” – e entregou os passaportes portugueses limpos e outros documentos [de identificação] que poderiam ser necessários para a criação de novas identidades dos candidatos.

No início de 2016 e para colher a posição do partido, o jornal Expresso contactou o serviço de imprensa do PCP, que seguindo as deixas do Cunhal declarou que: «nega veementemente velhas falsificações, difamações e provocações anti-comunistas».
Ver o documento original em formato PDF
[No entanto, os dados do arquivo Mitrokhin são corroborados, de forma absolutamente independente pelo arquivo Bukovsky. Nomeadamente, em abril de 1980, o camarada Octávio Pato, pediu o CC do PCUS financiar a compra dos “equipamentos especiais do fabrico estrangeiro para garantir a segurança do partido”. Em 13 de maio do mesmo ano, o CC do PCUS concordou (documento número CT210/62) e incumbiu o Ministério das Finanças da URSS alocar à Direção dos serviços do CC do PCUS as divisas no valor 2.500 rublos expressos em divisas (equivalente aos 3.000 USD). O CC do PCUS também deu a ordem ao KGB para comprar e fornecer os equipamentos aos “amigos portugueses”. A questão foi coordenada com o chefe do KGB, Yuri Andropov e os gastos forma cobertos pelo orçamento do PCUS [ver o documento em formato PDF]].

Aproximação ao Mário Soares

Arquivo Mitrokhin possui três menções do Mário Soares, que no período de 1972 e 1977 era alvo da tentativa de aproximação por parte do KGB. Para o efeito, Portugal foi repetidamente visitado pelo agente do KGB V(ladimir?) I. Koblikov, sob o disfarce de visitas oficiais da União das Sociedades soviéticas para Amizade e laços culturais com países estrangeiros. Os objetivos reais do Koblikov, no entanto, eram “estabelecer contactos e relação de confiança com os partidos socialista e comunista”. Cunhal estava ciente da missão para se aproximar de Soares, cujo nome de código era “Merkuriy” (Mercúrio); é de notar que KGB atribuía os nomes de código não apenas aos seus agentes e funcionários, mas também às pessoas que eram alvos de suas operações clandestinas. “Koblikov recebeu informações de “Mercuriy” e a carta ao Brejnev. No entanto, as metas previstas não foram cumpridas”, – menciona um dos registos.

Uma nota de 1977 observa que Soares, então primeiro-ministro do governo constitucional, estava na lista de contatos de um dos agentes da KGB em Lisboa, nome de código “Yaroslav”. “Graças à ajuda das pessoas de confiança da residentura [do KGB em Lisboa] e graças aos esforços de bastidores de Mário Soares, a residentura conseguiu fechar os semanários reacionários “Telex” [dirigido pelo Sammy Santos] e “A Rua” [dirigido pelo Manuel Maria Múrias], que publicavam regularmente materiais anti-soviéticas”. Também se diz que, graças à influência do mesmo Soares sobre os líderes do partido e sobre os círculos militares e políticos portugueses, foi adiada por um período longo, reprogramada para 1978, a conferência europeia contra a ameaça soviética.

O último registo de arquivo Mitrokhin sobre Mário Soares não está datado, mas supõe-se que se refira ao início dos anos 1980, quando André Gonçalves Pereira atuou como ministro dos Negócios Estrangeiros / Relações Exteriores dos VII e VIII governos constitucionais (1981-82). “Patrick [Octávio Pato] do PCP informou-nos que o partido possui os dados comprometedores das ligações entre M. Soares e A. Gonçalves Pereira com a CIA e os americanos, embora não haja provas visíveis, fotos ou contas bancárias. Este material pode ser usado em um outro país”, dizia a nota.

«Agulhas» do PCP

Em 1991, após a apreensão de arquivos do PCUS pelo governo russo de Boris Yeltsin, foi publicada uma série de documentos para identificar os números exatos desembolsados pela URSS aos “partidos irmãos” no Ocidente. Considera-se que na década de 1980 – um momento em que a URSS estava sofrendo uma tremenda escassez de moeda estrangeira – PCUS distribuiu mais de 200 milhões de dólares entre os «partidos irmãos» fora do bloco soviético. No seu livro “Cunhal, Brezhnev e 25 de Abril” (2013), o jornalista e historiador português José Milhazes relata que naquele período PCP recebia entre 700.000 dólares (em 1981) até um milhão de dólares (em 1987-1989) em subsídios soviéticos.
Ler mais | imagem @darussia 
Tal como no caso dos outros partidos, a atribuição de recursos financeiros de Moscovo ao PCP era decidido pelo Comité Central do PCUS, e as transferências estavam ao cargo do KGB. Na correspondência entre o “centro” e a residentura de Lisboa, esse dinheiro sempre era chamado de “agulhas”. No Canada, por exemplo, subsídios ao Partido Comunista Canadense receberam o nome de código de “trigo americano”.

Nos registos de Mitrokhin de 1977 sobre o encontro de agentes soviéticos com “Patrick” – o contacto preferencial da residentura do KGB em Lisboa entre a elite comunista – é relatado que, além de a troca de informação política, se falou sobre “a questão dos preparativos especiais necessários para a transmissão de "agulhas"”.

Documentos raramente se referem aos valores específicos. Em um dos registos é relatado que representantes do jornal soviético «Pravda» participaram em setembro de 1978 no festival Avante! e «entregaram 576.000 escudos portugueses» – que aos preços de 2015 corresponderiam aos 43.000 Euros (de acordo com a atualização dos valores com base no índice de preços ao consumidor).

continua

Sem comentários: