foto @Pedro Saad/Netflix |
“O
Mecanismo”. Este Brasil na TV é ficção ou realidade? Na série de José Padilha o
alvo perpetua-se. É o caso "Lava Jato" na TV, mas não é só, e tem
dado audiências e polémica. Está disponível na Netflix.
por:
André Almeida Santos, Observador.pt
O
mecanismo. O mecanismo? O mecanismo! Perdoem a repetição, mas é mais ou menos
esta a sequência com que Marco Ruffo (Selton Mello) decifra — precisamente — o
mecanismo que está a tentar derrubar na série criada por José Padilha para a
Netflix e que se estreou no passado dia 23 de março. A adaptação do livro de
Vladimir Netto, Lava Jato – O Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação que
Abalou o Brasil, surgiu num momento oportuno no Brasil e causou sururu no país.
Questionou-se realidade com ficção, acusou-se a liberdade criativa da série e
até houve manifestações de boicote ao serviço de streaming.
Em
tempos de fake news, é natural que o público, cronistas, pensadores e políticos
tenham, por vezes, dificuldades em lidar com essa coisa chamada ficção.
Principalmente se é um produto televisivo e se é transmitido a uma escala
global. Por mais inspiração que “O Mecanismo” absorva do que aconteceu no caso
Lava Jato, pela própria tangibilidade com a realidade e o seu oportunismo ou o
pouco esforço em disfarçar alguns nomes de personagens — como Ricardo Brecht
(Emílio Orciollo Netto)/Marcelo Odebrecht, Samuel Themes (Tonio
Carvalho)/Michel Temer ou nomes de empresas como Petrobrasil/Petrobras e Grupo
OAS que vira OSA na série — isto é, de facto, ficção.
Mas
o que é “O Mecanismo” e porque é que vale a pena ver? Será que está ao nível de
outras séries fora do contexto norte-americano e anglo-saxónico que têm
estreado nos últimos meses na Netflix, como “Dark” ou “A Casa de Papel”? Uma
coisa pode-se avançar já: se a criação de José Padilha ainda está na listinha
de coisas para ver, pare já o que está a fazer [...] e avance para a série
brasileira e perceba as razões de todo o ruído que se fez em volta da sua
estreia.
O
mecanismo
Se
é para explicar algo que é pouco claro, o melhor é dar logo tudo. Uma das
razões para “O Mecanismo” funcionar bem no imediato passa por enfiar o dito
mecanismo no enredo ao início e meter o espectador numa situação de total
desarme. Isso acontece nos primeiros minutos da série, quando Marco Ruffo decide
que é hora de sujar as mãos e agarrar a corrupção pelos cornos. E fica óbvio de
que o tal mecanismo é um sinónimo de corrupção e uma forma do sistema
funcionar. Está em todo o
lado.
Inclusive
na polícia. A demora de Marco Ruffo em avançar para o caso acontece pelos
bloqueios à sua volta. Ele quer fazer o seu trabalho de inspetor policial, mas
o mecanismo está tão entranhado no funcionalismo de qualquer instituição
brasileira que o jogo começa logo viciado. No fundo, o que Padilha faz é
comprimir as regras sugeridas por “The Wire”, a série de David Simon para a
HBO, e desmontar um sistema a partir das teias de corrupção que chegam à
polícia/justiça e a impossibilidade, ou dificuldade, de qualquer movimento de
ataque.
“Lava Jato – O Juiz Sergio Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil”; o livro de Vladimir Netto que inspirou “O Mecanismo” |
Num
jogo com peças em movimento, Padilha quis explorar a luta contra uma malha de
corrupção tão interligada. A primeira peça a cair é Marco Ruffo, o indivíduo
que quer deitar tudo abaixo, o “bom” da pintura inicial e que é imediatamente
derrotado pela força com que o mecanismo cai em si, no seu trabalho,
investigação, na sua vida familiar. O primeiro episódio apresenta um mártir e, depressa,
também diz que todas as batalhas precisam dos seus mártires, que a posteriori
serão transformados em heróis. Marco Ruffo, independentemente do que acontece a
seguir, é o herói que um enredo destes precisa para mostrar como o mecanismo
funciona.
O
mecanismo?
Com
Ruffo fora do palco, Caroline Abras (Verena Cardoni) entra para mostrar que é
possível. Começa por atacar um dos inimigos de Ruffo, Roberto Ibrahim (Enrique
Diaz), e rapidamente entram novos fatores dentro de “O Mecanismo”. No primeiro
episódio percebe-se a intenção de desmantelar a corrupção, a partir do segundo
trabalha-se a sua escala. Numa questão de cenas começa-se logo a falar de
Petrobrasil/Petrobras e a criação de Padilha abre para as suas verdadeiras
intenções: explorar o caso “Lava Jato” com sotaque de thriller colado à ideia
de um roubo cuja localização não é um banco, ou a casa da moeda, mas um país
inteiro.
Só
que aqui seguem-se as regras normais. O espectador [...] fica sempre do lado da
polícia/justiça. [...] “O Mecanismo” vem com as intenções de expor exatamente o
mesmo, com o sentimento justiceiro certo, só que explora o código normal do
thriller.
[...]
A saga policial que se instala no segundo episódio de “O Mecanismo” é uma
correria bem sintetizada de como apanhar os maus num jeito muito sul-americano.
Monta-se uma equipa, olham-se para papéis, descobrem-se nomes, desenham-se setinhas,
fazem-se escutas e entra-se em casa de supostos culpados com mandatos. O que
acaba por ter alguma graça em “O Mecanismo” é que os motivos para descobrir a
carapuça de alguns dos arguidos são descobertos pela forma básica como fazem
alguma da trafulhice. E por básico entenda-se: a corrupção no contexto
mostra-se tão fácil que nem é preciso entrar em grandes esquemas para a
encobrir. E é mais ou menos aqui que o Brasil de “O Mecanismo” faz lembrar um
bocadinho Portugal: como se os portugueses tivessem lá deixado uma semente de
corrupção que foi a génese de tudo. A diferença? Uma questão de proporção e
escala.
O
mecanismo!
No
terceiro ato surge um herói encapuzado. O mártir afinal não é bem mártir e
Ruffo entende que para deitar o mecanismo abaixo é essencial agir sem as
amarras de quem voluntária ou involuntariamente está dentro do sistema. Mas
agora, o mesmo Ruffo tem capa de herói e a dada altura tem um “momento eureka!”
sobre o funcionamento de tudo.
É
um arranjo de Padilha para tornar tangível o funcionamento da coisa. Ruffo tem
um problema no esgoto da casa. Chama o serviço responsável para tratar desses
assuntos na cidade, mas o trabalho vai demorar mais tempo do que o desejado.
Contacta outra pessoa, cujo nome foi dado pela empresa anterior, e a coisa
parece que se pode resolver mais fácil e rapidamente. Pergunta o preço e acha
exagerado. E começa a percorrer com o seu contacto o custo das coisas
(material, mão-de-obra, etc.). Percebe que o valor que lhe está a ser cobrado
não faz qualquer sentido. É exagerado. Grande parte do dinheiro não irá para
custos nem para a mão-de-obra, mas para o tipo que passou o contacto. A lógica
parece natural, até justificada, e Ruffo dá o salto dessa lógica para o
funcionamento do país. Desenha as coisas num quadro e tudo.
Aí
se dá a segunda derrota do protagonista. Algo que ele sabia e que ainda não
tinha sido exposto de forma tão clara: o mecanismo está em todo o lado e é
impossível desmontá-lo. Podem-se tirar peças mas serão trocadas por outras. É
algo intrínseco ao funcionamento daquele Brasil e que funciona a todos os
níveis da sociedade, favorecendo os mesmos ou, então, os que integram essa
lógica. [...].
Bónus
“O
mecanismo resiste, o mecanismo está sempre tentando parar a Lava Jato”
Ler a entrevista do Vladimir Neto na íntegra |
Jornalista
e autor do livro sobre o caso Lava Jato que inspirou a série “Mecanismo”,
Vladimir Neto (44) diz ao Observador.pt
que a pacificação da sociedade brasileira só se vai verificar após as
presidenciais de 2018.
1 comentário:
A série é muito boa, muito bem sucedida! O mecanismo, deve dividir opiniões. O motivo é que, nos dias de hoje, tudo no Brasil que se relaciona a política tende a polarizar e a produção retrata os desdobramentos da operação Lava-Jato no Brasil, ação da Polícia Federal que denunciou um esquema de corrupção envolvendo políticos e empreiteiros. Apesar disso, o diretor e produtor-executivo, gosta de ressaltar que a série está fora de ideologias. A série estabelece uma boa narrativa e consegue prender o espectador. A promessa é de ainda mais agilidade, pelo menos foi o que garantiu o diretor Daniel Rezende (Bingo), que comandou o set nos dois últimos episódios. Apesar de não ser um protagonista óbvio e ter mais ar de vilão, Enrique Diaz é o grande destaque da série. Com uma bela atuação, ele entrega um Ibrahim ao mesmo tempo cínico, empático e até engraçado. O núcleo do personagem é o alívio cômico da série, que tem um ar de seriedade, afinal de contas, retrata um tema bastante sério para a história do país. Não tem jeito é quase impossível não comparar O mecanismo com Narcos e Tropa de elite 1 e 2, todos projetos de José Padilha — o que não é ruim se você é fã (como eu) dessas produções. Os motivos são o estilo narrativo escolhido pelo diretor — com uma narração a cada episódio — e também pela mensagem que ele quer passar sobre a política no Brasil, que ele mesmo explicou em entrevista à imprensa: “que só tem bandido, resumindo”.
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