Compreendendo
o papel crucial de propaganda, a União Soviética a impingia aos seus cidadãos desde
a infância mais inocente, quando uma criança apenas começa perceber o mundo
exterior à partir de livros e de leitura. A revista infantil “Iskorka” (Centelhinha)
é um exemplo deste tipo de propaganda infanto-juvenil.
A
revista “Centelhinha” foi criada na base de todos os cânones da propaganda
clássica – não havia pluralismo de opiniões, os artigos abusavam do sentimento
de pena ou de medo, e na descrição dos “adversários políticos” eram usados
apenas os epítetos negativos, reforçados pelos cartoons. Uma criança –
leitora assídua de “Centelhinha” ficava com uma visão distorcida do mundo, em
que existia apenas a Grande e Bela Pátria Soviética, cheia de conquistas
desportivas, económicas, cósmicas e militares, cercada pela corja de monstros
infernais enviados pelo Ocidente putrificado e decadente.
Parece
que todo o discurso e visão pró-soviética do mundo dos atuais governantes
russos veio diretamente das páginas de “Centelhinha” (a revista foi publicada e
vendida principalmente em Leninegrado, atual São Petersburgo), absorvendo
totalmente os seus códigos e narrativas culturais, não permitindo olhar ao
mundo exterior com uma visão diferente.
“Centelhinha”
surgiu em 1957 como um suplemento infantil do jornal “As Centelhas de Lenine”,
originalmente vendido apenas em Leninegrado, com a ideia de que “as crianças
sejam capazes de ler uma história, poesia interessante, familiarizado com os
heróis dos nossos dias, conhecer a história das organizações da [juventude
comunista] Komsomol e dos pioneiros, e nas horas de lazer resolver as palavras
cruzadas, charadas, quebra-cabeças”.
Charadas
e quebra-cabeças na “Centelhinha” eram poucas – cerca de 70% do espaço da
revista era composto por mais pura propaganda soviética, acrescentada pelas
caricaturas políticas escabrosas e pseudo-recordações dos feitios históricos. A
maioria das edições tinha uma capa brilhante e cativante, totalmente em
desarmonia com o conteúdo – logo após a capa seguiam páginas cinzentas de
jornal, cheias de pinturas sombrias. Os desenhos eram feitos em tinta-da-china,
muitas vezes em uma técnica descuidada – manchas negras representavam os
soldados à correrem com armas, algumas cabanas cinzentas, pessoas esfomeadas,
etc. Em geral – a revista foi bastante sombria.
Os
restantes 30% do espaço eram preenchidos com alguns enigmas banais, histórias
sobre a natureza e dicas úteis sobre como sobreviver no Grande País –
reparar/concertar óculos da vovó usando fragmentos de agulha de tricô e fita
isolante azul, como fabricar os seus próprios brinquedos de bolotas e fósforos
ou como costurar um quimono para as aulas de sambo, usando um esfarrapado, mas
ainda muito bom saco de batatas.
Culto
do líder
Em
quase todas as adições de “Centelhinha” as crianças levavam uma carga de histórias
sobre Lenine – como ele fez a Revolução de outubro e como ele era uma genial
bom sujeito, e como todos os outros eram maus. Lendo a revista a criança
soviética aprendia, por exemplo, o fato importante de que na URSS já existem
milhares de monumentos de Lenine, e seus números continuam a se multiplicar, e
que este plano astuto de propaganda monumental até foi inventado pelo próprio
Lenine, no decorrer da guerra civil russa:
Muitas
vezes eram publicados os versos banais sobre Lenine, compostos por poetas
locais: “…Caminhava o camarada Lenine – o chefe e melhor amigo”.
Às
vezes apareciam as obras que eram quase hokku: “A pedra é fraca perante o
tempo, os diamantes perdem o brilho, […] mas o homem-Lenine está vivo!” [Na
Rússia soviética muito naturalmente podia aparecer um verso chamado “Sobre Rússia”,
na mesma época na Ucrânia, só era permitido exortar as belezas da “Ucrânia Soviética”...]
De
tempos em tempos a revista publicava as notas musicais para que cada criança
soviética, se preparando, de forma convincente poderia cantar uma ode ao Chefe:
“O menino foi franco de forma infantil, e não fez segredo da felicidade maior,
quando pela primeira vez ele compôs o nome de LENINE – como o nome mais
fraterno de todos os outros nomes”.
A
guerra eterna
Além
de Lenine, a Guerra estava sempre presente nas páginas da revista. Praticamente
todas as edições publicavam os desenhos sombrios de tanques queimados, pessoas
mortas, sistemas anti-tanque e arame farpado, prisioneiros inimigos, bem como
histórias sobre as operações especiais, interrogatório de prisioneiros e um
menino, que, sozinho, matou 50 inimigos. A ênfase não era sobre a importância
da paz, mas sobre a capacidade soviética de “poder repetir”, constantemente
eram apreciados os detalhes da guerra, etc.
A
história dos sistemas defensivos reforçados e bunkers, rolos de arame farpado e
a frase sobre os franco-atiradores russos [mais uma vez, russos e não
soviéticos] que disparam com precisão na cabeça, entre os olhos e o pescoço.
Estamos ler uma revista infantil.
Além
da Segunda Guerra Mundial, constantemente se escrevia sobre a guerra civil
russa – histórias terríveis sobre a “execução do povo pelos capangas do czar”,
usando as imagens sombrias de cores escuras:
Também
houve na revista as fotos de crianças – neles os mais pequenos defendiam algum
tipo de construções militarizadas, lutando contra o “inimigo” com ajuda de
armas de brinquedo e meios improvisados, como blocos de neve e gelo. A guerra
na “Centelhinha” era total, eterna e nunca acabava.
Ocidente
putrificado
Além
do culto quase religioso de Lenine e da Guerra Eterna, as crianças, recebiam a
informação sobre os países estrangeiros, de uma maneira especialmente
soviética. Por exemplo, a história de Paris: a cidade-luz, capital de moda, de “Três
Mosqueteiros”, vinho e arquitetura. Mas revista fala sobre os mendigos que
dormem debaixo da ponte e sobre os capitalistas americanos que periodicamente
vêm ao país, querendo comprar os antigos palácios e monumentos franceses para
os levar aos EUA “como uma qualquer bugiganga”.
“Ainda
bem que eu vivo na URSS e não no Ocidente” – deveria começar à pensar a criança
soviética, ouvindo essas estórias.
Além
disso, o Ocidente, estava cheio de inimigos e espiões, que nem são parecidas
com as pessoas, mas se assemelham a robôs, vestindo chapéus e paletós
idênticos. Desenhos sombrios completavam a narrativa:
Além
disso, como se sabe, nos EUA, Obama constantemente linchava os afro-americanos,
enviando, periodicamente, às pradarias, as expedições punitivas:
Seguindo
o curso do partido
Os
autores de “Centelhinha” seguiam rigorosamente “o curso do partido e do governo”,
despejando sobre as cabeças das crianças todos os padrões de propaganda que
URSS usava para justificar as suas travessuras na arena internacional. Assim,
as crianças soviéticas deveriam aprender que numa determinada temporada
deveriam torcer pela Nicarágua, fornecendo ao país as armas e os especialistas
da “economia popular”:
Numa
outra temporada, já torciam por Cuba, e as crianças liam poemas estranhos como:
“Este é um ianque, ele ameaça a Cuba. Acena com uma grande bomba. Está claro
para todos – embora ele parece como um branco — ele é um negro, possui a alma
negra!”. Ao mesmo tempo, os desenhos dos cartoonistas soviéticos eram apresentados
aos leitores como supostos “desenhos de crianças cubanas”.
“Até
quando matarás, a besta fascista?” Perguntava a revista infantil soviética...
Intemporal.
“Os militantes guatemaltecos na campanha”, com histórias sobre a luta contra “carrascos
americanos”. “A CIA coloca armas nas mãos de forças punitivas guatemaltecas
e portanto, é cúmplice do massacre”. É uma reminiscência de como a geração dos
leitores da “Centelhinha” vê e interpreta os acontecimentos da guerra
russo-ucraniana no leste da Ucrânia.
...
e pecuária
O
espaço que sobra de manipulações de propaganda é preenchido com algumas
histórias insuportavelmente banais e absolutamente desinteressantes sobre os
animais, os povos do Norte soviético, o preenchimento certo do diário de
observações do crescimento de feijão e sobre Nadezhda Krupskaya – a viúva do
Lenine e amiga mais velha de todos os jovens pioneiros.
Às
vezes, poderia aparecer um qualquer artigo sobre a “real qualidade soviética e
as normas estatais GOST”, onde algum velho caduco, usando as frases supostamente
eruditas tenta provar que a qualidade soviética é a mais qualitativa e incomparavelmente
superior do mundo.
Também
apareciam os artigos com fatos banais sobre o pão – alimento bastante
prejudicial à saúde e base de toda a cozinha soviética, mas que gozava na URSS
uma espécie de culto.
A
revista poderia terminar com um artigo insuportável como “Seu tempo, pepino!”,
em que uma deputada do Soviete Supremo da URSS compartilhava com os mais novos
as peculiaridades do crescimento e desenvolvimento de plantas herbáceas da
família da abóbora.
Tudo
isso seria ridículo, se não fosse tão triste. São os leitores e fãs dedicados
da “Centelhinha” que agora governam [federação russa], criam as leis e iniciam
as guerras no espaço pós-soviético. O vasto mundo da Internet, de turismo, do
desenvolvimento do Estado de direito e do progressivo desaparecimento de
fronteiras, não existe para eles – existe apenas um código cultural estranho e
limitado, implantado pelos textos da “Centelhinha”.
Scan
das imagens e texto @Maxim
Mirovich e [Ucrânia em África]
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