Destruindo
e perseguindo o Natal (25/12 e 7/1), o comunismo soviético
deixou ao povo um feriado “apolítico”, o Ano Novo. Por sua vez, o feriado criou o seu próprio clima culinário das delícias e paladares que não podiam faltar
à festiva dos cidadãos. Assim era mesa mediana do Ano Novo da década de 1980.
O
défice total dos alimentos na URSS levou à situação em que o trigo-sarraceno
era comprado em grandes quantidades, o chouriço de defumação fria era achado ou conseguido, usando muita cunha ou recebido via “loja especial”, tornando o frango
assado “a cereja do bolo-rei”. O jornalista soviético, Vsevolod Ovchinnikov, descreve
no seu livro «Raízes do Carvalho» (1979) que os britânicos ficavam extremamente
desiludidos, degustando “as delícias soviéticas”. O frango, a comida de pobres
era o prato principal. Como tal, a pobreza média geral deve ser considerada o
principal status económico soviético. Os jantares fartos da festa do Ano Novo significavam
que a comida que sobrar, seria consumida por dois ou três dias...
A
salada “Olivier”
Inventada
na década de 1860 por Lucien Olivier, o chef do restaurante moscovita “Hermitage”
e conhecida nos países lusófonos como salada russa
ou “salada maionese” (em Moçambique), é uma salada completamente soviética que
funciona à semelhança às réplicas chinesas dos produtos de marca / grife:
“igualzinho, mas completamente diferente”. Após as décadas de mutações, a
salada ganhou a sua aparência atual já após a II G.M. O molho especial foi
substituído pelo maionese, as pétalas rubras de lagostim deram lugar à cenoura,
a perdiz-avelã foi substituída pelo frango e depois pela mortadela, no fim, a
salada entrou no menu de várias cantinas soviéticas. Ninguém possui a receita
exata da salada, cada dona de casa tinha a sua, variando nos ingredientes: língua
ou carne, frango ou mortadela/palony, pepinos ou maça? Que tipo de maionese? Nenhuma
resposta é certa e nenhuma está errada.
A
salada “Mimosa”
A
salada nasceu na década de 1970, no início dos anos cinzentos do brejnevismo.
Supostamente a gema ralada deveria lembrar as flores de veludo da mimosa. Os
puristas discutem a ordem e a quantidade das camadas da salada. A cebola picada
fininho, a cenoura e batatas cozidos e ralados, a clara do ovo ralada, a
conserva de peixe esmagada. Especialistas enfatizam: sauro enlatado em óleo. Os
alimentos são colocados às camadas finas, untadas com a maionese – repetindo o
ciclo. A discussão é sobre a manteiga congelada colocada entre as camadas (ou
não). Hoje, a “Mimosa" é um prato irremediavelmente ultrapassado, mas
ainda assim é considerado in em departamentos de alimentos prefabricados e na
cozinha dos tradicionalistas da culinária.
A
salada “Arenque sob o casaco”
Proveniente
da culinária judaica, essa salada faz parte do trio das saladas de maionese de
inverno. Dizem que entre o original iídiche e a sua cópia atual existe apenas
duas diferenças: aparecimento de maionese e da batata cozida que substituiu a
maça ralada. A atual forma que envolve as camadas da cebola picada, cubos (ou
não) de arenque, batata e beterraba cozidos apareceu antes da II G.M. mas
tornou-se canónica apenas na década de 1970.
A
receita é simples e servia, provavelmente, para dissimular o sabor de peixe
salgado, tão habitual às famílias judias pobres das áreas de assentamentos,
principalmente na Ucrânia e em Belarus. A salada soviética diferia apenas em número
de calorias, muito superiores, graças à maionese. Hoje em dia a salada é considerada
por alguns do elemento de comfort food, a comida conhecida desde infância e
consumida na época do Ano Novo.
Sprotte
(Espadilha)
A
espadilha é o tipo de conservas de peixe. Originalmente era feito de espadilha
do mar Báltico (uma subespécie do espadilha europeia), depois sob este nome
foram produzidas as conservas com uso da espadilha de Cáspio, arenque e outros
peixes pequenos. Na preparação das conservas, os peixes, sem nenhum pré-tratamento,
são defumados, e, em seguida, enlatados em óleo. Na linguagem comum, a palavra shproty, derivada de sprotte geralmente se refere à qualquer conservas de peixe menor defumado e
conservado em óleo. Na URSS este tipo de conservas era um atributo
indispensável da mesa festiva do Ano Novo.
A Letónia é o seu produtor mais
importante e a marca Riga Sprats
é uma das mais conhecidas atualmente.
Chouriço
/ mortadela
Como
dizia a piada soviética o “chouriço é o melhor peixe”. “O Diretório da produção
de chouriço da carne e produtos semi-acabados” de 1960 continha a descrição de dezenas de tipos
de chouriços, salsichas e pão de carne, incluindo os mais exóticos, de
preparação complicada, folhados e recheados. O leitor era mimado com os nomes como
“Mortadela de ganso”, “Mortadela do doutor da dieta de leite”, “Mortadela de
cérebro”, “Mortadela de língua”. Obviamente, os nomes como “Mortadela de Estalinabade”
ou “Cozida com alho” também eram concebidos para atiçar o apetite dos
consumidores. As imagens maravilhosas das mortadelas e salsichas pareciam o
design de arte popular. No entanto, a maioria destes produtos maravilhosos
existia unicamente naquele diretório, ou – na melhor das hipóteses – nas lojas especiais,
acessíveis apenas aos aparatchiks e vedadas ao povo. As pessoas comuns poderiam
esperar meses até que na mercearia mais próxima seriam atiradas / descartadas (eufemismo soviético para a “venda livre”) as desejáveis peças da mortadela. Isso
é, nas cidades onde eram praticados este tipo de “descartes”. Os moradores de
outras cidades (principalmente na parte europeia da Rússia socialista), vinham, aos milhares, à Moscovo, nos chamados “interurbanos de
mortadela”, à procura desta iguaria.
—
Que é coisa, que é ela: verde, rastejando, cheira a mortadela?
—
O interurbano da cidade de Ryazan.
Enquanto
a mortadela, continuava um tremendo défice, se tornou o tema de piadas e anedotas,
o chouriço recebeu o estatuto de culto. O chouriço soviético tinha quase o
mesmo valor que o Cervelat
finlandês – o sonho real do qualquer pequeno burguês e o símbolo do seu status.
O chouriço cortado às rodelas era associado à dolce vita, ao buffet teatral ou de
sala de espetáculos, deixando o odor indelével nos dedos e lábios dos seus felizes
consumidores.
A
carne cozida, banhada em caldo da sua própria gelatina, arrefecendo se
transforma em geleia, também conhecida na Ucrânia como kholodets ou kholodne.
Inicialmente era um meio de reaproveitar os restos de carne da 2ª; na culinária
soviética o kholodets (tal como muitos outros pratos dos pobres) tornou-se um
fetiche. O acompanhante perfeito da horilka
e um prato camponês saudável – o kholodets se tornou o herói indispensável da
mesa festiva. Uma longa e cansativa cozedura, a espera agonizante – endurecerá
ou não – dava muito tempo para a reflexão. Alho? Estrelinha de cenoura cozida? Cortar
às tiras ou rasgar às garfadas? Salgar logo ou após a cozedura? Cada nuance
significava muita coisa.
A
receita canónica incluía a cabeça de vaca, a sua cauda, duas mãos e duas patas,
era a coisa quase impossível de conseguir na URSS.
O
frango assado
A
galinha soviética, adulta, grande, magra e azul-acinzentada, aparecia nas
cozinhas inteira, com todos os seus pormenores: estômago, coração, cabeça e patas.
Foi especialmente interessante encontrar na sua cavidade um ovo que frango não
teve tempo de “parir”. Ou os ovários com vários ovos, sem a casca, em
diferentes fases do seu crescimento. Ou então era um frango da marca polaca Hortex,
menor, mais fofo, frango de corte. Era cuidadosamente embalado em plástico e as
suas miudezas – apenas as mais necessárias – embaladas em um saco separado. Verdadeiro
luxo.
Em
qualquer dos casos, era a carne mais acessível e real. O frango assado no forno,
muitas vezes era o evento principal da noite do Ano Novo. As receitas e
técnicas culinárias perfaziam cerca de um milhão, e cada ano a dona de casa enfrentava
o desafio anual – como conciliar as várias demandas conflitantes. A pele crocante,
as pernas macias bem fritas e o peito suculento. Enquanto o frango se espreguiçava
no forno, um erudita qualquer contava que Napoleão odiava o frango desde a sua infância,
mas adorou, quando uma vez, o seu cozinheiro, apesar da proibição, lhe preparou
o dito de alguma forma inteligente. “Deve ser a mesma que é usada pela nossa anfitriã?”
As
técnicas finalmente eram combinadas de melhor maneira possível e o chefe da
família, já com copos, dissecava o pobre pássaro com a faca. Na URSS não existia
YouTube com os tutoriais em vídeo de “como cortar o frango assado de forma
rápida e correta”.
As
tangerinas
Na
URSS se consumiam as tangerinas da Abecásia (Geórgia) ou de Marrocos, estas,
assinaladas com um pequeno autocolante negro na sua casca – “Maroc”. As tangerinas
da Abecásia eram mais naturais, de aroma forte, sumarentos e de sabor forte e
textura dura. Apesar de hoje o “capitalismo selvagem” garantir o acesso à fruta
mais possível e imaginária, as tangerinas ainda são o símbolo do Ano Novo no
espaço pós-soviético. E no fundo um bom citrino, facilmente descascável e de
muita vitamina.
Caviar
É
sabido que URSS exportava dezenas de milhares de toneladas de caviar aos
mercados internacionais. Na década de 1980, no mercado interno, a latinha de
200 gramas de produto custava cerca de 4 rublos, equivalente aos 2 kg de
bife. O ato de consumir o caviar era na URSS algo profundamente íntimo,
consumado no seio familiar, não para ser visto pelos olhos alheios.
O
caviar
vermelho, mais democrático no preço e mais simples de achar (isso é, comprar ou adquirir), desde sempre servia como o substituto honroso à
“comida cara”. Geralmente a sua latinha era aberta à metade, este caviar era usado
para fazer os canapés, gastando uma parte de embalagem, mas nem toda. Assim,
era o símbolo de generosidade e da poupança.
Os
camarões
Embora
a frota pesqueira soviética capturava o camarão em vários países do mundo, entre
Angola, Moçambique (“Mosopesca”) ou Cabo Verde, o camarão do tamanho comercial
era vendido no mercado capitalista internacional, no intuito de captar as “divisas
livremente convertíveis” (geralmente os dólares americanos, parcialmente usados,
depois, para financiar os “partidos amigos” entrincheirados nos países capitalistas
e desejosos de acabar com este sistema marvado, mas é uma outra estória).
Desta
feita, aos consumidores soviéticos, fora da elite estatal e/ou partidária, chegavam
as conservas de camarão microscópico, chamado krill
(do holandês kriel, restos) – o nome coletivo de pequenos crustáceos
planctónicos marinhos (copépodes) de tamanho 10-65 mm, capturados pela URSS, de
forma comercial, desde a década de 1970. Nos países africanos de expressão
portuguesa o camarão um pouco maior, até 100-150 mm, é desde há muito, é usado
como o recheio de rissóis ou chamussas/chamuças (samoosas).
O
champanhe soviético
"Bebam o champanhe soviético. O melhor vinho de uva" |
Era
o único disponível. O vinho gaseificado com sabor de leveduras, quase sempre
doce, supostamente deveria ser aberto no último minuto antes da chegada do Ano
Novo – para ter o tempo de brindar antes da meia-noite, assinalada com o
tilintar de sinos. O sabor fraquinho era nivelado com alguns goles de vodka, de
seguida, apesar do perigo da uma ressaca viciosa. Tal como “conhaque arménio”
não era conhaque, o “champanhe soviético” não era o champanhe. Embora até hoje
existem os fãs deste vinho espumante e a sua marca se tornou um brand. Tem a
ver com o saudosismo generational e ideológico e com a crença popularucha do que
“na URSS tudo era de melhor qualidade”.
O "vinho do Porto" soviético de marca "777", produzido no Azerbaijão |
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