A história da conspiração, encenada pela secreta soviética Tcheka/Cheka em 1919 na capital da Ucrânia, ocupada pelos bolcheviques. Envolvendo o suposto consulado brasileiro
em Kyiv, que utilizando falsas promessas, elaborava as listas dos cidadãos desencantados com o novo poder comunista.
A 22 de julho de 1919, os agentes da «Comissão de Emergência para Combate a Contrarrevolução», a CheKa, prenderam a tradutora ucraniana Raisa
Poplavska em Kyiv. O certificado da funcionária do consulado brasileiro apresentado pela mulher não a protegeu. Muito pelo contrário, escreve a página ucraniana Verdade Histórica.
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| Documento emitido por Alberts Pirro à Raisa Poplavska. Imagem: arquivo do SBU |
Três semanas depois, surgiu nos jornais a notícia de que era à partir da representação daquele país latino-americano se estendiam os tentáculos
de uma conspiração em larga escala do «corpo de oficiais obscuros e de todo o mundo burguês», exposta pelos chekistas. Durante este período, a CheKa não só conseguiu conduzir
uma «investigação» e estabelecer o «círculo de culpados», como também condenar à morte cinco «conspiradores», entre os quais se encontravam o próprio
«cônsul brasileiro» e a tradutora Raisa Poplavska.
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Relato de uma «conspiração contra-revolucionária» liderada por «conde Albert Pirro». Imagem: KI.ILL.IN.UA |
Assim terminou a história da conspiração de alto nível encenada pela própria CheKa na capital da Ucrânia, ocupada pelos bolcheviques. Porque, na realidade,
não havia consulado brasileiro em Kyiv, porque este país não mostrou qualquer intenção de estabelecer relações com a rússia bolchevique, e ainda menos com a sua fantoche soviética, Ucrânia ocupada e, claro, não enviou os seus representantes oficiais para as margens do rio Dnipro.
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Alberts Pirro, arquivos de CheKa. Imagem: Makarov61book2.ru |
O papel do cônsul foi desempenhado pelo agente da CheKa – o letão Alberts Pirro (conveniente para a liderança da CheKa, composta por vários letões, que
podiam comunicar com agente na sua língua nativa, que, soava suficientemente «estrangeira» para os restantes ouvintes). A julgar pelas críticas, Pirro desempenhou o papel de forma pouco convincente, por exemplo, desconhecia a etiqueta de mesa, bastante pior
do que a personagem da comédia farsesca britânica «Charley´s Aunt» (1892), de Brandon Thomas. Segundo o enredo, a personagem principal era forçada a fazer-se passar pela milionária brasileira
Dona Lúcia D'Alvadorez. Que por sua vez, mais tarde, inspirou a comédia soviética «Olá, sou a sua tia!» (1975), da onde saiu a famosa frase-meme:
— Sou a tia do Charlie, do Brasil, onde nas florestas vivem muitos, muitos macacos selvagens.
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| Cartaz da primeira produção de «Tia do Charlie» em Londres. Imagem: Wikimedia. org |
No entanto, os moradores de Kyiv, exaustos por anos de guerra, inúmeras mudanças de poder na cidade e o terror sem precedentes em que os bolcheviques mergulharam a capital da
Ucrânia, estavam completamente indiferentem às discussões sobre as competências de representação. Estavam simplesmente a tentar sobreviver. Era nisso que os chekistas se apoiavam verdadeiramente.
A escolha do agente, em geral, ilustra vivamente a reserva dos recursos humanos à partir do qual os bolcheviques e os seus serviços especiais recrutavam pessoal. No início
da sua carreira, Pirro trabalhou como jornalista, mas foi expulso de um jornal de Riga por tentativa do plágio literário. Com o início da Primeira Guerra Mundial, alistou-se no Corpo de Fuzileiros Letões
do exército russo, mas foi logo destituído da sua patente por «ações não autorizadas». Depois de ferido, viu-se na retaguarda russa – em Irkutsk, onde ganhava dinheiro a
vender bilhetes ao concerto do tenor russo Fiodor Shaliapin, do qual o próprio cantor nem sequer suspeitava.
Foi assim que surgiu o falso diplomata. O verdadeiro nome do pseudo cônsul manteve-se – soava bastente «estrangeiro» – acrescentaram lhe apenas o título
de conde (embora no Brasil os títulos foram oficialmente abolidos quase meio século antes destes acontecimentos).
Imediatamente após a aparição de Pirro em Kyiv, foram afixados cartazes nos locais públicos, convocando não só os cidadãos brasileiros, mas
também aqueles que desejassem tornar-se cidadãos do Brasil, a registarem-se no consulado. Ao mesmo tempo, os anúncios enfatizavam especialmente a proteção dos brasileiros contra a arbitrariedade das
autoridades comunistas. Esta promessa foi confirmada pela assinatura de Martyn Latsis, letão e chefe da CheKa ucraniana, que orquestrou o espetáculo.
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O edifício em Kyiv, onde se situava o consulado brasileiro falso. Rua Yaroslaviv Val, Nr. 14. Foto: Wikimedia. org; 2009 |
O consulado contratou os moradores de Kyiv para trabalhar (para os habitantes da cidade, esta era mais uma forma de se alimentarem e, mais uma vez, evitarem a repressão comunista) –
e o próprio Pirro, afirmou abertamente que preferia os candidatos que não partilhassem das ideias bolcheviques.
O cônsul também deixou também claro que, com a sua ajuda, aqueles que quisessem poderiam trocar as notas bancárias soviéticas por notas de governos anteriores,
nas quais os cidadãos comuns confiavam mais. Isso apesar de o governo bolchevique considerar essa operação de «especulação monetária», punível ao abrigo do novo
código penal.
Seja como for, graças e através do Pirro, a CheKa de Kyiv recebeu listas de cidadãos politicamente «inseguros» e daqueles que possuíam pelo menos algumas economias
naqueles tempos difíceis – aliás, compiladas pelos próprios. Os chekistas tinham simplesmente de comparecer aos endereços. Eles compareciam regularmente...
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| As vítimas do terror vermelho em Kharkiv. Foto: Wikimedia.org |
Só a derrota dos bolcheviques na frente de combate – tanto frente das forças ucranianas, unidas sob a bandeira da República Popular da Ucrânia (UNR), como
do exército voluntário russo – do general Denikin, obrigou os chekistas a interromper rapidamente a operação. Para isso, Pirro ordenou a Raisa Poplavska, que ele tinha anteriormente contratado
como tradutora, de colocar algum tipo de «mensagem secreta» nas suas roupas, que deveria levar para a cidade de Odesa. Naturalmente, quando Raisa foi detida, CheKa anunciou que era uma mensagem de espionagem, dirigida
ao próprio primeiro-ministro francês Georges Clemenceau – não é precisa mencionar que o próprio Clemenceau não sabia disso mais do que Shaliapin sobre o seu suposto concerto em Irkutsk.
Na sequência, Pirro, que foi evacuado às pressas de Kyiv (ao contrário dos outros acusados, ele, naturalmente, não foi executado), tenha sido enviado para a Sibéria.
Desta vez, para a cidade de Omsk. Onde a encenação... foi repetida. O guião foi alterado apenas em pequenos pormenores — Pirro mudou o seu apelido para Hoffman. Desta vez não fingiu ser um brasileiro, mas sim diplomata dinamarquês-holandês.
As viagens seguintes foram mais próximas da terra natal de Pirro — ele ajudou aos bolcheviques construir uma rede subversiva nos países bálticos, que até
1940 conseguiram manter a sua independência. Trabalhou como mensageiro — como centenas de outros enviados secretos, levava jóias e dinheiro para a Europa — para agentes e redes comunistas, cuja tarefa
era a de organizar as revoltas «proletárias espontâneas» nos diversos países europeus.
Em algum momento o OGPU e os camaradas do Kremlin suspeitaram que mansageiro não esquecia dos seus próprios bolsos, e Pirro se viu preso durante algum tempo, de seguida fazendo
todo o possível para escapar da URSS o mais rapidamente possível.
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«O ex-chequista - provocador Alberts Pirro passa de uma cadeia para outra». Imprensa da Letônia da época. Imagem: PERIODIKA.LNDB.LV |
Depois de regressar à Letónia – mas já como cidadão privado – o nosso «cônusl» voltou à estaca zero. À vida de um pequeno
canalha. Fez-se passar por jornalista, representante de organizações respeitáveis americanas, por vezes, até por agente da polícia local, tentando extorquir dinheiro a todos os que se cruzavam no
seu caminho.
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| Alberts Pirro em 1927. Imagem: PERIODIKA.LNDB.LV |
Foi preso e libertado, conhecido por vários roubos e tentativas de fraude, mais do que uma vez e cumpriu várias penas em várias prisões na Letónia. Em algum momento foi deportado
à vizinha Lituânia, acabando por regressar à sua terra natal, até ser completamente esquecido. Tentou tirar a própria vida por duas vezes. A última menção do Pirro data
de 1936.
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Brochura de Alberts Pirro «Com Espada, Fogo e a Bandeira Vermelha». Imagem: GENI.COM |
Durante uma das suas estadias na cadeia, Pirro, conseguiu escrever memórias – um panfleto chamado «Com Espada, Fogo e uma Bandeira Vermelha» e uma série de ensaios
intitulada «Eu me arrependo e maldigo». Poucas pessoas acreditavam no arrependimento, pois encontraram imediatamente muitas mentiras descaradas nos textos.
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«Me arrependo e maldigo! Memórias Nr. 6 do comissário A. Pirro». Jornal «Slovo» de Riga. Imagem: PERIODIKA.LNDB.LV |
Em 1960, um outro antigo chekista, argumentista e escritor Nikolay Ravich publicou as suas próprias memórias, nas quais com a seriedade enfatizada, relatou que o «perita
em várias línguas», Pirro foi enviado de Odess para Kyiv pela inteligência da Entente, que lhe forneceu todos os documentos diplomáticos necessários e o instruiu para criar uma organização
clandestina de oficiais monárquicos. Os argumentistas do filme soviético «Adjunto de Sua Excelência», rodado em 1969, foram mais longe. Complementaram a teoria de uma «organização
de oficiais» supostamente criada por Pirro, com o surpreendente relato de que o falso cônsul estava, na realidade, a trabalhar, a mando dos franceses, para estadista ucraniano Symon Petliura e que era o chefe da
filial de Kyiv da União para a Libertação da Ucrânia (realmente criada, com o apoio das Potências Centrais, mas oficialmente dissolvida em maio de 1918).
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Cartaz do filme soviético «Adjunto de Sua Excelência» (1969). Imagem: Wikimédia.org |
Em geral, a história da provocação chequista de Kyiv, foi abafada por completo na historiografia soviética. Oficialmente, Pirro, foi «executado» pela CheKa. Dos
cidadãos relamente fuzilados e torturados por sua culpa ninguém se lembrava, enquanto a União Soviética existiu.