Num
dos elementos notáveis da propaganda contemporânea russa se tornou a literatura
do subgênero “viajantes do tempo”, que com mais ou menos talento conta a
mesmíssima história: o cidadão soviético/russo é “lançado” ao passado histórico,
onde faz aquilo que sabe melhor: explodir, matar e torturar, lutando
pela “paz mundial”.
De
que subgênero literário estamos à falar?
A
ideia dos viajantes do tempo (ao passado histórico ou ao futuro) não é um tema
propriamente novo. Desde o final do século XIX essa ideia foi explorada na
literatura mundial pelo H. G. Wells no seu romance “A Máquina do Tempo” (1895);
por Mark Twain no “Um yankee de Connecticut na corte do Rei Arthur” (1889) ou
pelo Edgar Burroughs no seu ciclo “Marcianos” (1911-1964).
A
principal característica deste subgênero reside no facto de que a sua
personagem principal deve necessariamente possuir algum tipo de conhecimento e de
habilidades para de alguma forma mudar o mundo em que “aparece”. Aqui está um
ponto importante – com a ajuda deste conhecimento e destas habilidades, o herói
se esforça para recriar não apenas o mundo moderno dele, mas também a sua realidade
que vê como um ideal.
Os
viajantes do tempo russos
Não
há atualmente um único livro russo em que um fã da União Soviética aparece no
passado para ensinar as pessoas à fazer o melhor sorvete do mundo. A
personagem, pelo contrário, faz o que sabe melhor – disparar, matar,
espionar, organizar redes de sabotagem e publicar literatura de propaganda, dando
os seus conselhos “sábios” aos líderes autoritários sobre a uma nova ordem
mundial – tudo para colocar URSS ao controlo do nosso planeta. Garantindo que
nem Ocidente, nem os EUA poderão dificultar o seu trabalho de matar as pessoas
e as colocar no GULAG.
O
herói de Mark Twain lutava, com todas as suas forças e de todas as maneiras possíveis
contra o obscurantismo medieval, tentava oferecer aos cidadãos as novas
tecnologias, conhecimentos e habilidades. Já os heróis dos modernos livros
russos estão lutando para trazer todo mundo de volta ao passado, para proibir, fechar,
destruir e provar o seu alegado direito à dominação mundial.
Desde
a década de 2000, os heróis dos livros russos sobre os viajantes do tempo se
tornaram todos os tipos de marginais e perdedores – ex-militares e ex-oficiais
do KGB/GRU na reserva, professores expulsos das escolas/universidades, alcoólicos
profissionais e outros camaradas semelhantes. Este tipo do herói literário era
a cópia fidedigna do seu real leitor russo – um perdedor complexado, que estava
convencido de que somente as circunstâncias o impediram de realizar todo o seu
potencial – numa outra época histórica ele seguramente mostraria o que vale!
Os
heróis dos livros russos não ajudam as pessoas do passado à adquirir novos
conhecimentos e tecnologias, mas estão empenhados exclusivamente em ressuscitar
a União Soviética. Frequentemente, o próprio Estaline ou Andropov se tornam as personagens
– eles enviam os nossos complexados Nikolay ou Ivan ao passado para “mudar a
história” ou escutam os seus importantes conselhos sobre a nova ordem mundial.
Enredos
típicos das obras russas sobre os viajantes do tempo:
Ano
1941. O capitão do NKVD se torna o membro de uma Direcção secreta, criada para
corrigir a história e entra na batalha contra os hitlerianos e contra os “banderistas”
[nacionalistas ucranianos].
Eles
foram enviados do século XXI ao século XVIII para mudar a história [...] Eles conseguiram
se agarrar no passado, criando um enclave na América do Norte em 1790. [...] Com
quem eles podem contar na luta contra o Império Britânico, que pretende dominar
o mundo?
A
“classe criativa” [russa] chegou ao poder, entregando a federação russa aos
“parceiros estrangeiros”. [...] Mas a NATO/OTAN está comemorando a sua vitória
antecipadamente. Por toda a Rússia, a guerra de sabotagem contra os novos vlasovistas e seus mestres se
intensifica. À frente da insurreição estão os oficiais aposentados de forças
especiais e dos serviços especiais, que o povo chama de “imperiais”, e os invasores
declararam como “terroristas”.
Futuro próximo. Ucrânia [...] a fronteira com Donbas independente
está fechada pelos campos minados, mas os serviços secretos da Novorossia
mandam os grupos de sabotagem ao território do inimigo.
Estaline
[...] decide SALVAR O FUTURO. Os grupos de batedores de NKVD são lançados ao século
XXI, recebendo a ordem de contactar os serviços secretos russos e os líderes do
Kremlin com a proposta de uma união político-militar entre a União Soviética e
federação russa.
A
continuação da guerra secreta do nosso contemporâneo, lançado ao junho quente de
1941 para cancelar a Grande catástrofe Patriótica! O viajante do tempo
especial contra os serviços especiais nazis(tas), contra a inteligência
americana, contra os conspiradores do partido [comunista] e os sabotadores do
futuro! [...] Será que a Rússia atual está pronta para celebrar a união com a URSS
estalinista?
O
viajante do tempo [...] desafia a “Rainha dos mares” [The Queen of the Seas, isso é, o Império Britânico]. Os couraçados
do almirante Ushakov atacam a frota do almirante Nelson [na batalha de]
Trafalgar. As tropas do Kutuzov invadem Gibraltar, Barclay de Tolly lidera a
revolta dos montanheses escoceses, a vanguarda de Bagration ocupa um enclave em
Hastings, garantindo o desembarque nas ilhas Britânicas do exército [russo] comandado
pelo generalíssimo Suvorov. Batalha da Inglaterra começou! LONDRES DEVE SER DESTRUÍDA!
“Camarada Hitler”. [...] O nosso viajante no tempo, colocado
no corpo do Adolfo Hitler muda a história da II G.M. [...] Será que se consegue
enforcar Churchill? [...] Será celebrada a união do Reich com a URSS estalinista?
O camarada Hitler e o camarada Estaline vão derrotar os Estados Unidos e criar
uma bomba atómica antes dos americanos?
Ele
é piloto do único Su-25 da Novorossia
[...] numa das missões ele “cai” dentro da Grande Guerra Patriótica [II G.M.], entrando
no corpo de Vasily Estaline! [o filho preferido do Estaline] Será que Vasily Estaline
ousará lutar não apenas contra os “especialistas” da Luftwaffe, mas também
contra a gangue de Khrushchev?
Ano
2037. Os russos são primeiros no Marte! [...] O primeiro romance sobre a
batalha pelo Planeta Vermelho entre a Rússia e os Estados Unidos.
São
apenas uma minúscula parte de títulos e de enredos deste subgênero literário – na
Rússia atual já foram publicados milhares de títulos semelhantes.
Viajantes
do tempo vs realidade. Posfácio. O abismo
No
conto do escritor argentino Jorge Luis Borges “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” é
descrito como a ficção literária gradualmente se transforma na realidade – algo
semelhante aconteceu no meio real dos leitores das histórias dos viajantes
do tempo russos. Foram este tipo de livros, juntamente com a propaganda
televisiva russa, que fomentaram o indoutrinação ideológica que fez os fãs da
URSS viajar à Ucrânia para matar os ucranianos. Após lerem e ouvirem centenas
de histórias sobre os “faxistas ucranianos” de Kyiv, que comiam, ao pequeno
almoço/café de manha, os dom-fafes inocentes e bebés falantes de língua russa.
A
realidade e as ficções de livros malignos sobre os viajantes do tempo se misturam
nas mentes dos adeptos [do “mundo russo”] numa visão coerente. Algo semelhante
acontece nas seitas totalitárias – de acordo com o princípio da psicose
induzida, os seus adeptos alimentam, uns noutros, a “história alternativa”,
compartilham complexos de inferioridade e lutam contra a civilização. A
fantasia nestas comunidades fechadas substitui a realidade.
Sempre
gostei da frase do Friedrich Nietzsche: “Quando se olha muito tempo para um
abismo, o abismo olha para você”. Os livros russos sobre os viajantes do tempo dão
uma resposta muito completa à questão – como seria o mundo se os fãs da URSS
governassem nele. O abismo do futuro das adeptos das amanhas cantantes ganha as
características muito reconhecíveis do GULAG soviético – pelo qual os heróis destes
livros desesperadamente lutam, matando e torturando...
Bónus
Dizem, que quase metade dos escritores contemporâneos russos, que trabalhavam na área de ficção científica já morreram na guerra da Ucrânia, nas batalhas de Donbas. Por enquanto não vimos os números que possam confirmar essa afirmação, mas uma coisa está certa «os escritores propagandistas russos sempre sonharam de atacar os ucranianos com as armas do século XXI, acabando por enfrentar as FAU com as armas de décadas 1950-1990 do século XX».
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