A
grande fome
russa de 1891-92 ceifou as vidas de cerca de 400.000 camponeses. O número das
vítimas poderia ser muito maior se não fosse a ajuda e empenho da sociedade
civil norte-americana, desde filantropos famosos até os populares anónimos.
Devido
à péssima safra de 1891 que varreu o sul da Rússia e a região do Volga, no
vasto território do Império russo começou a fome, agravada pela continuação das
exportações de trigo ao exterior. O governo russo, no entanto, negava a
existência de fome, alegando que Ocidente está exagerando a gravidade da
situação (um rumor atribuía ao imperador Aleksandr III a frase: “Não tenho
vítimas de fome, tenho apenas afectados por uma má colheita”). O conde e editor
russo Vladimir
Obolensky (1869 – 1950) conta nas suas memórias que a censura estatal da
época riscava dos textos jornalísticos dedicados à fome as palavras “fome”,
“esfomeados” ou “famintos”.
Ilustração ocidental da época: os camponeses famintos caminham ao São Petersburgo |
Alarmado
e sentido pela situação catastrófica, o governo dos Estados Unidos ofereceu a Rússia
a sua ajuda humanitária através da missão diplomática dos EUA em São
Petersburgo. A oferta feita de forma oficial em meados de novembro de 1891 foi formalmente
aceite pelo governo russo em 4 de dezembro de 1891.
Em
20 de novembro de 1891, William C. Edgar (1856-1932), filantropo e editor
americano, dono da influente revista “Northwestern Miller”, mandou à embaixada
russa nos EUA o telegrama, perguntando da predisposição do czar russo de
receber ajuda financeira e alimentar americana. Uma semana depois, sem receber qualquer
resposta do embaixador russo Karl von Struve
(Kirill Struve), William Edgar escreveu a carta com o mesmo teor e passando mais
uma semana veio a resposta russa: “A Sua proposta é recebida pelo governo da Rússia
com agradecimento”.
Naquele
mesmo dia, “Northwestern Miller” escreveu: “No nosso país [...] temos tanto
trigo que não conseguimos o comer todo. Ao mesmo tempo, os cães mais sarnentos
que vagueiam pelas ruas das cidades americanas se alimentam melhor do que os
camponeses russos”. William Edgar escreveu as cartas aos 5.000 empresários do
ramo moageiro da costa leste dos EUA. Quase todos eles reponderam
favoravelmente. Durante três meses os americanos reuniam a farinha para ajuda
humanitária. Em 12 de março de 1892 os navios zarparam para o Império russo.
William Edgar acompanhou a missão, de Hamburgo ao São Petersburgo ele viajou de
comboio. Na fronteira russa o esperava o primeiro choque: “Os alfandegários russos
foram tão severos que eu me sentia como um rato na ratoeira”,— escreveu o
filantropo. A capital russa o surpreendeu — o luxo não correspondia ao país em
fome. Seguiu-se a viagem pelas zonas afetadas: a fome, as famílias exaustas e
famintas que apenas em conjunto conseguiam carregar um saco de farinha, o
desaparecimento de uma parte da ajuda humanitária americana, a compra, pelo
governo russo, no intuito de alimentar os famintos, de várias toneladas do
trigo impróprio para o consumo humano...
Cantina popular montada em 1892 na base da ajuda humanitária americana |
Em
1893 William C. Edgar publicou em Mineápolis o seu livro de memórias “The
Russian Famine of 1891 and 1892” (The Russian famine of 1891 and 1892: some
particulars of the relief sent to the destitute peasants by the millers of
America in the steamship Missouri: a brief history of the movement, a
description of the relief commissioners' visit to Russia, and a list of
subscribers to the fund). Algumas imagens deste artigo são provenientes deste livro.
Navio fretado pelos moageiros americanos no seu caminho ao Império russo |
Nos
Estados Unidos foi criado o Comité para ajudar os famintos russos (Russian
Famine Relief Committee of the United States), que recebeu o apoio moral de
autoridades oficiais americanas, embora a ajuda alimentar foi realizada principalmente
à custa dos recursos captados por cidadãos americanos e pelas organizações
privadas. A orquestra sinfónica da Nova Iorque, juntamente com outros artistas,
através dos concertos de caridade reuniu 77.000 dólares para ajuda aos
camponeses russos.
A
sociedade civil da Filadélfia apetrechou o navio de transporte «Indiana» com os
diversos alimentos ao peso total de 1.900 toneladas que chegou ao atual porto letão
de Liepaja aos 16 de março de 1892. O segundo navio, de responsabilidades dos
cidadãos dos estados de Minnesota, Iowa e Nebraska – “Missouri” trouxe a carga
de trigo e de farinha de milho com o peso total de 2.500 toneladas em Liepaja
aos 4 de abril de 1892. Em maio de 1892 chegou ao porto letão de Riga mais um navio
de ajuda humanitária enviada pelos moradores da Filadélfia; em junho o navio
enviado pela Cruz Vermelha americana de Washington e em julho – um outro, de Nova
Iorque. Além dos farmeiros americanos que reuniram e enviaram à Rússia a
farinha no valor de 1 milhão de dólares, as empresas estatais e privadas dos
EUA ofereceram aos agentes agrícolas russos os empréstimos de longa duração no
valor de 75 milhões de dólares.
O
futuro imperador russo Nikolai II (na altura Grão-Duque e chefe do comité
especial russo para assistência das vítimas de fome) disse: “Estamos todos
profundamente comovidos com o facto de que vêm da América os navios cheios de
comida”. A resolução preparada por representantes proeminentes do público russo
dizia: “Através do envio de trigo ao povo russo em tempos de dificuldades e necessidades,
os Estados Unidos mostram o exemplo mais emocionante de sentimentos fraternos”.
Todo
este movimento de solidariedade americana é retratado em dois quadros do pintor
russo Ivan
Aivazovskii, esquecidos e ignorados na Rússia atual. Ambos são dedicados à
época em que os EUA e dos americanos salvaram milhares de camponeses russos da
morte certa, a morte que poderia ser evitada pelo seu próprio governo, mas não
foi. A morte que foi impedida pelos norte-americanos, considerados em 2014 como
“inimigo № 1”, por 73% dos cidadãos russos.
O
primeiro quadro, chamado “Entrega dos Alimentos” (1892) mostra uma carroça
russa de três cavalos (a famosa tróica), carregada de alimentos americanos e um
camponês russo empenhando, com orgulho, a bandeira dos Estados Unidos. Os
moradores da aldeia abanam os seus lenços e chapéus, alguns, caindo no chão,
rezam ao Deus e agradecem os EUA pela sua ajuda alimentar.
O
segundo quadro se chama “O navio da ajuda” (o título inicial “A chegada do
navio “Missouri” com o trigo à Rússia” (1892) e é dedicado à chegada da ajuda
alimentar americana nos portos do império russo em 1892.
As
razões da fome
Ilustração ocidental da época: os cossacos russos não permitem aos camponeses abandonar a sua aldeia |
As
fomes naturais, fustigavam a Rússia, de forma cíclica, durante séculos. Para
contrariar a situação, desde o reinado
da imperatriz Catarina II
no Império russo foi criado um sistema de armazéns locais, onde era armazenado
o excesso dos cereais. Nos anos de má safra, a administração regional
emprestava o stock aos camponeses para os alimentar e garantir a próxima
colheita. No entanto, no fim do século XIX, o estado russo vendia na Europa
cerca de metade da safra, recebendo anualmente mais de 300 milhões de rublos
(aos preços da época).
Na
primavera de 1891 foi feita a revisão destes armazéns. O resultado foi assustador,
em 50 províncias o stock representava 30% do normal, em 16 regiões chegava à apenas
14%. No entanto, o Ministro das Finanças russo, Ivan Vyshnegradsky,
tinha dito: “Nós próprios não vamos comer, mas iremos exportar”. Naquele ano Império
russo vendeu no estrangeiro quase 3,5 milhões de toneladas de trigo. Em 1892,
na auge da fome, o governo russo tentou proibir a exportação, mas a proibição só
funcionou por cerca de 10 meses e em 1892, severamente fustigado pela fome, o país
vendeu na Europa 6,6 milhões de toneladas de trigo.
Ilustração ocidental da época: os cossacos russos à procura do trigo roubado pelos camponeses |
A
fome foi acompanhada pelas epidemias, o sociólogo russo Vladimir Pokrovsky estipula
o número de mortos em resultado daquela fome em, no mínimo, de 400.000 pessoas
(até o verão de 1892).
A
história foi lembrada nos EUA apenas em 1962, quando a URSS e os Estados Unidos
estavam na eminência de uma guerra nuclear. A Primeira-dama dos EUA, Jacqueline
Kennedy, pediu os quadros do Aivazovskii à Corcoran Gallery (à quem o pintor
ofereceu os dois quadros) para os mostrar na Casa Branca. Na percepção dos
americanos, as obras deveriam recordar ao Kremlin os sentimentos fraternais que
dois países sentiam reciprocamente no passado. Em 1979 os quadros foram
vendidos à uma coleção privada, novamente revendidos em 2008 no leilão de Sothеby’s
por 2,4 milhões de dólares. Os seus compradores privados atuais são desconhecidos
(fonte1; fonte2; fonte3).
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