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Propaganda soviética visando a rádio BBC |
Um homem com o olhar turvo se ajoelha ao lado de um rádio suspenso no ar. Uma cobra com a boca bem aberta estava enrolada na antena do receptor, como em volta de uma taça de Hipócrates. Esta não é uma pintura de Salvador Dali, mas uma caricatura soviética de ouvintes de “vozes inimigas” – estações de rádio ocidentais transmitindo línguas faladas na União Soviética: “Voz da América”, “BBC”, “Rádio Liberdade” e “Deutsche Welle”.
A ideia inicial de usar o rádio para combater inimigos ideológicos remonta à década de 1920: a “Rádio Comintern” e a “Rádio de Moscovo/ou” transmitiam ativamente em alemão e inglês para países europeus. A Alemanha, defendendo-se da propaganda comunista, bloqueou as transmissões. A URSS, por sua vez, bloqueou a rádio romena em 1931 e, mais tarde, a rádio espanhola e a alemã.
As maiores guerras de rádio começaram após a Segunda Guerra Mundial: em 26 de março de 1946, a BBC começou a transmitir regularmente em russo. Em 1947, um departamento de língua russa apareceu na estação de rádio Voice of America, que foi originalmente criada como um contrapeso à propaganda nazi. O início da transmissão do VOA em russo parecia um desafio ousado para a URSS: todos os meios de comunicação soviéticos receberam um comunicado de imprensa oficial da Embaixada dos EUA em Moscovo/ou. Nele, os americanos relataram a programação da Voz da América com um pedido para transmitir informações sobre transmissões em russo dos EUA “para a atenção dos ouvintes soviéticos”.
A primeira emissão da VOA em ucraniano foi ao ár em 12 de dezembro de 1949.
“Atenção – fala Nova York! Hoje, 12 de dezembro, a Voz dos Estados Unidos da América inicia a transmissão de rádio à Ucrânia. Damos as boas-vindas calorosas aos nossos novos ouvintes de rádio – ucranianos em todos os espaços onde nossa voz alcança, e esperamos servir ao povo ucraniano com informações verdadeiras sobre o que está acontecendo no mundo.”
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A redação ucraniana de VOA em 1947, 2º à esquerda o seu chefe Nikyfor Grigoriev (1949-1953) |
Estas foram as primeiras palavras da Voz da América em ucraniano, sete anos após a fundação da estação de rádio Voz da América nos Estados Unidos.
Inicialmente, a VOA em russo era destinada à elite política e cultural da URSS, mas descobriu-se que havia muito mais pessoas dispostas a ouvi-la. Isso causou uma reação nervosa da liderança soviética, que foi expressa pelo escritor Ilya Ehrenburg em seu artigo “Voz falsa”.
“Se você inventou algum tipo de goma de mascar inflável, por que você está distribuindo por todo o mundo em vez de soprar pacificamente bolhas de borracha em casa?” – Ilya Ehrenburg, no artigo no jornal “Cultura e Vida”, 10 de abril de 1947.
Em 19 de abril de 1949, o Ministério das Comunicações da URSS lançou um programa para bloquear “vozes inimigas”: geradores de interferência começaram a ser instalados em centros regionais e grandes cidades. E se em 1949 eram 350, no ano seguinte o número aumentou para 600.
A torre de interferências em Kharkiv, no bairro de Saltivka, construída em 1963 para que silenciar as «vozes inimigas»: BBC e Rádio Liberdade:
A imprensa da União Soviética publicava regularmente os artigos acusando estações de rádio ocidentais, e o famoso dramaturgo soviético Boris Lavrenev publicou a peça teatral “A Voz da América”, que foi colocada em palco em todas as repúblicas da URSS. O seu autor recebeu o Prémio Estaline de Literatura em 1950.
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Exibição «fechada» em Leninegrado, maio de 1950 Bilhetes são vendidos somente através das organizações do partido comunista, sindicatos estatais e a juventude comunista Komsomol |
Além da propaganda e das estações de interferência, a URSS também implementou métodos de luta mais radicais. Em 18 de maio de 1949, o chefe do Comité de Radiodifusão A.A. Puzin enviou um relatório para o ideólogo soviético M.A. Suslov, que chefiou a Diretoria de Propaganda e Agitação, na qual propôs cortar o nó górdio das “vozes inimigas” proibindo os receptores de certas ondas.
“A mais vil calúnia contra a União Soviética e os países de democracia popular está sendo realizada em transmissões de rádio ingleses, americanos e algumas outras rádios estrangeiras em russo. Quase todas as transmissões de rádio estrangeiras para a União Soviética são realizadas por meio de estações de rádio de ondas curtas. A defesa mais confiável contra a propaganda de rádio estrangeira hostil à URSS é a produção de receptores de rádio sem alcance de ondas curtas”, escreveu Puzin ao Suslov.
A proposta foi aceita e, a partir de 1 de agosto de 1949, absolutamente todas as unidades soviéticas de produção de aparelhos de rádio, passaram a produzir receptores de rádio de classe II e III sem a recepção de ondas curtas.
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Aparelho do rádio Okean-209, equipado com as ondas curtas Classe II, produzido em Minsk entre 1976 à 1984 |
O problema com a transmissão das estações de rádio ocidentais nas cidades foi resolvido, mas a situação nas aldeias permaneceu incontrolável. Um jornalista do jornal “Agricultura Socialista” na região de Kalinin, P. Dudochkin, após uma viagem aos kolkhozes, escreveu uma carta ao Comitê Central do Partido Comunista, relatando que os camponeses estavam ouvindo ativamente “vozes inimigas”.
“Ao visitar kolkhozes, ficamos impressionados com o comportamento incorreto e, às vezes, completamente antipatriótico de alguns proprietários de rédios. Eles ouvem estações de rádio estrangeiras e falam sem um pingo de consciência sobre o que as estações fascistas Voz da América e BBC transmitem. Assim, a agitação inimiga contra o comunismo é espalhada pelo nosso próprio povo que está construindo o comunismo”, escreveu Dudochkin.
No final da carta, o correspondente sugeriu retirar à força os receptores de rádio das fazendas coletivas: “Pode ser inconveniente retirar todos os receptores de rádio dos camponeses, mas, ao menos um deve ser retirado de cada aldeia”.
Nas áreas rurais, era muito mais fácil captar estações de rádio ocidentais, também porque elas não estavam no alcance dos bloqueadores, e a 20 quilômetros da cidade não havia problema algum em ouvir a Voz da América.
Posteriormente, o bloqueio de rádio aumentou e diminuiu, e tornou-se uma espécie de “pepel de teste” das relações entre a União Soviética com o Ocidente. Se a Guerra Fria entrava em uma fase menos ativa, a intensidade do bloqueio diminuia — por exemplo, a partir de setembro de 1959, quando começou a «degelo» nas relações entre a URSS e os EUA.
A primeira transmissão da edição ucraniana da Rádio Libertação foi transmitida de Munique em 16 de agosto de 1954. Já em 1959, a estação de rádio foi renomeada para Rádio Liberdade.
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Funcionários da redação ucraniana da Rádio Libertação. Munique, 1 de fevereiro de 1955 |
Em 1963, John Kennedy pediu o fim da Guerra Fria, e a interferência nas estações de rádio ocidentais cessou completamente — isso continuou até 1968, quando ocorreu a Primavera de Praga e os países do Pacto de Varsóvia enviaram tropas para a Checoslováquia. O próximo degelo ocorreu em 1975, durante a Conferência de Helsinque sobre Segurança e Cooperação na Europa, e terminou com a entrada de tropas soviéticas no Afeganistão em 1979.
Em 1986, a liderança soviética decidiu parar de bloquear a Voz da América e a BBC porque estes «geralmente apresentam seus materiais de forma tendenciosa, a partir de uma posição antissoviética, mas tentam usar uma abordagem objetiva», e aumentar a interferência contra a Rádio Liberdade e na Deutsche Welle. Dois anos depois, em 30 de novembro de 1988, o bloqueio de estações de rádio ocidentais cessou completamente.
Mas a história não para nem por um momento...
Em 2024, a Rádio Liberdade novamente e oficialmente se tornou «indesejável» na Rússia. A decisão foi tomada pelo Ministério da Justiça da Rússia, que adicionou a corporação «Rádio Europa Livre/Rádio Liberdade» à lista de organizações não governamentais estrangeiras e internacionais cujas atividades são consideradas indesejáveis no país. A mensagem foi publicada no site do departamento em 20 de fevereiro. Antes disso, a decisão de reconhecer as atividades da corporação como indesejáveis foi tomada pela Procuradoria-Geral da federação russa; foi emitida em 2 de fevereiro de 2024, relata a RFE/RL.
Estar incluído na lista significa que a Radio Liberdade está proibida de operar no país, e os cidadãos russos estão proibidos de colaborar com a rádio sob ameaça de perseguição criminal.
De acordo com o Comité Internacional para a Proteção de Jornalistas, desde 2021, as autoridades russas declararam dezenas de organizações de imprensa/mídia «indesejáveis». A lista inclui vários veículos de comunicação russos independentes que foram forçados a deixar o país: a TV Rain, projetos Meduza, Novaya Gazeta Evropa, Vazhiye Istorii, The Insider, Proekt.
Desde março de 2022, a Deutsche Welle também foi declarada «agente estrangeiro» na Rússia. Anteriormente, a DW foi proibida de transmitir, o escritório da DW em Moscovo/ou foi forçado à fechar e se mudar para o exterior, o portal dw.com na rússia foi bloqueado em todos os idiomas nos quais a empresa alemã distribui seu conteúdo.
Em 2024 os processos criminais foram abertos contra pelo menos 45 jornalistas russos, de acordo com um relatório da Fundação Centro de Defesa da Mídia de Massa. Note-se que, em comparação com 2023, o número de jornalistas sujeitos a processos criminais duplicou.
O maior número de processos criminais, dezesseis, está relacionado ao artigo do código penal sobre o descumprimento dos deveres de um «agente estrangeiro». Dez vezes, jornalistas foram acusados de espalhar falsificações sobre o exército russo, oito de participar de uma comunidade extremista e sete de justificar o terrorismo. Os tribunais russos aplicaram, pelo menos, vinte e sete sentenças, dez das quais à revelia. As autoridades russas também abriram, pelo menos, doze processos criminais contra os jornalistas estrangeiros que cobriram os conflitos na região de Kursk.
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