quarta-feira, maio 29, 2019

Donbas: os gemidos e as quimeras do “mundo russo”

https://www.novayagazeta.ru/articles/2019/05/26/80657-pasportnyy-ston
Os passaportes russos, prometidos recentemente pelo Putin, ainda não foram distribuídos, mas os moradores das “repúblicas populares” de Donetsk e Luhansk já retornaram à sua juventude soviética. Inscrever-se num caderninho ainda de madrugada, receber um número escrito na palma da mão, lutar por um lugar na fila, sair do trabalho para fazer a chamada obrigatória duas vezes por dia (Sic!) – na URSS as pessoas compravam assim as geleiras/geladeiras e mobílias [da RDA e Checoslováquia].

por: Irina Tumanova, Novaya Gazeta (a versão curta, título do artigo é da responsabilidade do nosso blogue)

O decreto do Presidente Putin sobre a obtenção simplificada da cidadania russa para cidadãos da Ucrânia, que “vivem em certos distritos das regiões de Donetsk e Luhansk” foi emitido em 24 de abril de 2019. Alguns dias depois, os canais russos da TV mostraram dois escritórios da recepção de documentos, maravilhosamente equipados na região de Rostov: na aldeia de Pokrovskoye e na cidade de Novoshakhtinsk, para os cidadãos de “dnr” e “lnr”, respectivamente. Assim como [mostraram] os funcionários competentes e trabalhadores desses pontos, que no primeiro dia receberam “um pouco menos de cem” conjuntos de documentos. E também têm trezentos mil “em processo de registo”.

[Spoiler: ambos os escritórios não funcionam, fechados e guarnecidos pela polícia/Guarda Russa].

Desde o início, sabia-se que, na região russa de Rostov, tudo arrancaria apenas quando os moradores das “repúblicas” entreguem os documentos no seu local de residência [na Ucrânia ocupada]. E os camaradas autorizados de “dnr” e “lnr” levarão estes documentos aos locais no território russo.

«Gente, não sejam como uma manada de animais!»
Foto: Irina Tumanova, NG
Donetsk, rua Schors, № 104. Escritório de emissão de bilhetes de identidade do bairro de Kyiv. 7h00 de manha. Escritório abre às 9h00. Junto às portas já se formou uma fila, pessoas vão chegando.
Foto: Irina Tumanova, NG
Para se inscrever na fila (Sic!), é preciso preencher os papelinhos expostos no capô de uma velha Škoda preta, com a matrícula igual ou semelhante a dos militares russos: no bloco de notas está a lista para receber o “passaporte” fake da “dnr”, numa folhinha solta – para o passaporte/cidadania russa. No gabinete № 1 se deve receber o talão de pagamento e pagá-lo.
Foto: Irina Tumanova, NG
O passaporte interno russo (semelhante ao cartão do cidadão/BI) custa 4.000 rublos (61,82 dólares); o passaporte interno, mais o passaporte de viagem internacional — 5.900 rublos (91,18 dólares).

Nem todos os moradores da dita “dnr” obtiveram o “passaporte” fake da sua “república”. Mas segundo o decreto do Putin, sem possuir o “passaporte” da “dnr” não se pode receber a cidadania russa. Pelo passaporte da «dnr» se espera por 2-3 meses, pois, como foi explicado, «demoram de serem impressos».

Uma avó veio marcar a fila às 5h20 de manha. Em toda a “dnr” funciona o regime do recolher obrigatório das 23h00 às 5h00. Quem é apanhado na rua, pode entrar nas masmorras do “mgb” por 28 dias.
Foto: Irina Tumanova, NG
As pessoas sonham com as reformas/aposentadorias russas, outros subsídios sociais. Mas não sabem como proceder com o seu registo domiciliar. Para receber a cidadania russa, é preciso ter o registo do domicílio na federação russa. Mas todos eles vivem na Ucrânia temporariamente ocupada... O pessoal da fila tem fé, que eles serão registados como moradores da região russa de Rostov. Na realidade, na Rússia isso é um crime, se chama “registo [domiciliar] fictício”.

Pensões / aposentadorias

Putin prometeu aos russos, que orçamento do estado russo aguentará os pensionistas/aposentados de Donbas. Mas ninguém sabe quantos pensionistas/aposentados realmente vivem na região [antes da guerra russo-ucraniana em Donetsk viviam cerca de 950.000 pessoas; na região/oblast de Donetsk – 2.500 milhões de pessoas. O número de pensionistas/reformados nas regiões de Donetsk e Luhansk é avaliado em cerca de 1,1 milhões de pessoas].

A região de Donbas são minas de carvão e as unidades de metalurgia pesada. A produção é muito prejudicial à saúde, devido às condições de trabalho, e por lei ucraniana, os mineiros podem se aposentar após 20 anos de serviço. Para as mulheres que trabalham nessas indústrias há mais de sete anos, a idade de aposentadoria também é reduzida. A possibilidade de receber o passaporte russo, para tentar reclamar a reforma/aposentadoria russa, fará com que as pessoas um pouco mais velhos de 40 anos vão se inscrever no programa.

Cidade de Donetsk. Bairro de Kalinin.

O Departamento local da polícia começou receber as listas no segundo dia após a saída do decreto do Putin, em 26 de abril de 2019. Até o dia 15 de maio a lista já tinha cerca de 600 nomes. Por dia aqui são recebidas 6-8 pessoas.

Eu também me inscrevi: № 539 para o passaporte da “dnr” e № 468 para o passaporte da federação russa – os números foram desenhados na palma da minha mão. Se ter em conta que o escritório funciona quatro dias por semana, então a minha vez chegará em cerca de 4 anos e 9 meses.
Foto: Irina Tumanova, NG
— Que não, será mais rápido – me acalma um titio de cabelos grisalhos. — Lhes prometem alocar mais um funcionário.

Então, é possível contar com cerca de dois anos e meio. Todo esse tempo é necessário vir aqui de manhã das seis às nove para se registar. Caso contrário a pessoa é riscada da lista. Desde ontem, devido aos “riscados”, a fila encurtou imediatamente em 25 nomes.

Aqueles que diligentemente se registavam todos os dias, nas primeiras duas semanas avançaram 101 posições. Assim, a fila para receber o passaporte da “dnr” na realidade durará apenas dois meses e meio. Após mais alguns meses de espera, pessoa receberá o documento. O problema é que a fila da recepção do passaporte russo é mais curta. Se a minha vez chegar, sem eu receber o passaporte da “dnr”, terei que marcar a fila novamente.

Mas o passaporte da “dnr” não é dado à todos. Primeiro, a pessoa precisa de provar que estava residente da “república” em 12 de maio de 2014. Portanto, a lista onde sou 539ª é apenas para verificação dos documentos.

«Quando receberemos a ordem…»

No primeiro dia de entrega dos documentos, 6 de maio de 2019, houve lutas corporais por um lugar na fila do escritório regional de passaportes em Donetsk. Agora o escritório serve apenas os funcionários de empresas estatais (EE) e funcionários públicos da “república”. O serviço é mais caro do que aos outros: eles pagam 7.100 rublos (109,69 dólares) por um conjunto completo de dois passaportes russos (interno e externo). Mas essas pessoas explicam que precisam de passaportes russos muito mais do que outros. Pois temem as represálias por parte da Ucrânia pelo seu serviço à “república” não reconhecida.

«Queremos simplesmente qualquer tipo de reconhecimento»

Não vi nada de novo nos balcões de emissão de passaportes de Luhansk em comparação com os de Donetsk: as mesmas filas, as mesmas listas, as mesmas pessoas infelizes de plantão desde cinco da manhã.
Foto: Irina Tumanova, NG
Você está na primeira consulta? — uma mulher com a pasta vem até mim e me instrui claramente: — Se recorde do seu número. Serve para a validação dos documentos. Não é necessário ficar aqui. A chamada é às cinco da tarde e às oito da manhã. Se você não vier, sairá da lista. Terá que marcar a fila novamente. Você será verificada, receberá um talão de pagamento – vá para a próxima fila.

Ex-banqueiro Kostia (Kostiantyn) conta a sua história.

— Tinha um emprego – o levaram. — Eu preciso desesperadamente do passaporte russo! Ainda não temos nem Ucrânia, nem a Rússia. Eu trabalhei num banco...
— Todos esperávamos, que nos libertassem. Alguns esperavam que Ucrânia o fizesse, outros esperavam pela Rússia. Agora entendemos: somos dispensáveis. E de alguma forma eu paro de gostar disso.
— Você não gostaria que tudo volte como era em 2014? – pergunto com cuidado.
— Honestamente? Bem, eu ... Não, você não pense que eu sou contra a Rússia! Eu até sou russo por etnicidade, mas ninguém nos perguntou quando tudo aconteceu.
— Como não perguntou? Vocês tiveram um referendo? Você participou no referendo [de 2014]?
— Não, eu não participei.
— Mas quer um passaporte?
— Claro que sim. Queremos simplesmente qualquer tipo de reconhecimento. Se começamos tudo isso, então deve haver algum reconhecimento. E não como na Transnístria. Ou na Abecásia.
Foto: Irina Tumanova, NG
Donetsk em 2014 era uma cidade bonita e próspera, nas ruas principais havia butiques caros. Agora os moradores locais estão brincando, dizem que têm uma nova rede de lojas “À Arrendar”. Esta palavra está colocada em várias montras. No lugar de butiques – as lojas de roupas da segunda mão.

As grandes redes comerciais deixaram o território não reconhecido, roupas são importadas da Rússia. As roupas mais chiques – atrás de vitrinas com as placas “Roupas da Polónia”, de alguma forma são contrabandeadas por aqueles que possuem o passaporte ucraniano, isento de visto da UE.

Antigamente eu gostava de visitar as lojas second-hand, mas agora parei, – cara da jornalista Oksana se escurece. — Sabe, geralmente há um cheiro específico de roupas de segunda mão – após o processo de saneamento. Depois entro – não há cheiro. Finalmente, pensei, eles fizeram alguma coisa para evitar o cheiro. Cheguei mais perto e percebi que as roupas têm o cheiro do armário.

E aqui fiquei como se fosse baleada: meu Deus, são roupas vindas dos saqueadores...

Depois li nas redes sociais: uma mulher viu seus vestidos numa das lojas de second-hand, eram peças exclusivas, importadas, a sua casa foi saqueada... É impossível verificar isso, mas é claro, coisa assustadora para saber.

Serhiy, com quem conversamos na estação ferroviária de Donetsk, não pretende pedir o passaporte russo.

Você participou no referendo [de 2014]? – pergunto.
Infelizmente fui. E votei... Nos assustaram com os “banderistas” [nacionalistas ucranianos]. O povo acreditou. Quando começaram os combates, quando aqui começou o caos, ficou logo claro para onde estávamos indo. Instantaneamente. Mas as pessoas por inércia ainda acreditavam que tudo ficaria bem.
— Ilegalidade – por parte da Ucrânia?
Vinda dos locais! As pessoas simplesmente eram atiradas/jogadas fora dos seus carros, mortas. Os apartamentos eram ocupados. Os marginais locais faziam tudo isso. Aqueles que nunca trabalharam na vida. Eles primeiro correram lá! Toda a sua vida ele não fez nada – e aqui já estava conduzir um “Land Cruiser”. Com bolsos cheios de dinheiro. Num mês. De onde veio isso? O meu carro tentaram me arrancar algumas vezes. Simplesmente rua, aparecem e começam...
— As pessoas provavelmente tinham medo de bombardeamentos? Os ucranianos bombardearam as casas pacíficas?
— Dizer a verdade?.. Ucrânia atirava apenas contra nas posições da onde era alvejada. Se fogo vinha dos [bairros] de setor privado, respondiam naqueles alvos. Os bombardeios em larga escala, como dizem, é simplesmente uma propaganda.
— Muita gente entende isso agora?
— Bem, agora, claro, estão percebendo as coisas.
— Se de repente Ucrânia...
— Voltará aqui? Será bem-vinda e recebida de braços abertos! E serei primeiro à correr.

Ler o artigo completo em russo.

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