Os
passaportes russos, prometidos recentemente pelo Putin, ainda não foram distribuídos,
mas os moradores das “repúblicas populares” de Donetsk e Luhansk já retornaram
à sua juventude soviética. Inscrever-se num caderninho ainda de madrugada, receber
um número escrito na palma da mão, lutar por um lugar na fila, sair do trabalho
para fazer a chamada obrigatória duas vezes por dia (Sic!) – na URSS as pessoas
compravam assim as geleiras/geladeiras e mobílias [da RDA e Checoslováquia].
por:
Irina Tumanova, Novaya
Gazeta (a versão curta, título do artigo é da responsabilidade do nosso
blogue)
O
decreto do Presidente Putin sobre a obtenção simplificada da cidadania russa para
cidadãos da Ucrânia, que “vivem em certos distritos das regiões de Donetsk e
Luhansk” foi emitido em 24 de abril de 2019. Alguns dias depois, os canais russos
da TV mostraram dois escritórios da recepção de documentos, maravilhosamente
equipados na região de Rostov: na aldeia de Pokrovskoye e na cidade de
Novoshakhtinsk, para os cidadãos de “dnr” e “lnr”, respectivamente. Assim como [mostraram]
os funcionários competentes e trabalhadores desses pontos, que no primeiro dia
receberam “um pouco menos de cem” conjuntos de documentos. E também têm
trezentos mil “em processo de registo”.
[Spoiler:
ambos os escritórios não funcionam, fechados e guarnecidos pela polícia/Guarda
Russa].
Desde
o início, sabia-se que, na região russa de Rostov, tudo arrancaria apenas
quando os moradores das “repúblicas” entreguem os documentos no seu local de
residência [na Ucrânia ocupada]. E os camaradas autorizados de “dnr” e “lnr”
levarão estes documentos aos locais no território russo.
«Gente,
não sejam como uma manada de animais!»
Foto: Irina Tumanova, NG |
Donetsk,
rua Schors, № 104. Escritório de emissão de bilhetes de identidade do bairro de
Kyiv. 7h00 de manha. Escritório abre às 9h00. Junto às portas já se formou uma
fila, pessoas vão chegando.
Foto: Irina Tumanova, NG |
Para
se inscrever na fila (Sic!), é preciso preencher os papelinhos expostos no capô
de uma velha Škoda preta, com a matrícula igual ou semelhante a dos militares
russos: no bloco de notas está a lista para receber o “passaporte” fake da
“dnr”, numa folhinha solta – para o passaporte/cidadania russa. No gabinete № 1
se deve receber o talão de pagamento e pagá-lo.
Foto: Irina Tumanova, NG |
O
passaporte interno russo (semelhante ao cartão do cidadão/BI) custa 4.000 rublos
(61,82 dólares); o passaporte interno, mais o passaporte de viagem
internacional — 5.900 rublos (91,18 dólares).
Nem
todos os moradores da dita “dnr” obtiveram o “passaporte” fake da sua “república”.
Mas segundo o decreto do Putin, sem possuir o “passaporte” da “dnr” não se pode
receber a cidadania russa. Pelo passaporte da «dnr» se espera por 2-3 meses, pois,
como foi explicado, «demoram de serem impressos».
Uma
avó veio marcar a fila às 5h20 de manha. Em toda a “dnr” funciona o regime do
recolher obrigatório das 23h00 às 5h00. Quem é apanhado na rua, pode entrar nas
masmorras do “mgb” por 28 dias.
Foto: Irina Tumanova, NG |
As
pessoas sonham com as reformas/aposentadorias russas, outros subsídios sociais.
Mas não sabem como proceder com o seu registo domiciliar. Para receber a
cidadania russa, é preciso ter o registo do domicílio na federação russa. Mas
todos eles vivem na Ucrânia temporariamente ocupada... O pessoal da fila tem fé,
que eles serão registados como moradores da região russa de Rostov. Na realidade,
na Rússia isso é um crime, se chama “registo [domiciliar] fictício”.
Pensões
/ aposentadorias
Putin
prometeu aos russos, que orçamento do estado russo aguentará os
pensionistas/aposentados de Donbas. Mas ninguém sabe quantos pensionistas/aposentados
realmente vivem na região [antes da guerra russo-ucraniana em Donetsk viviam
cerca de 950.000 pessoas; na região/oblast
de Donetsk – 2.500 milhões de pessoas. O número de pensionistas/reformados nas regiões de Donetsk e Luhansk é avaliado em cerca de 1,1 milhões de pessoas].
A
região de Donbas são minas de carvão e as unidades de metalurgia pesada. A produção
é muito prejudicial à saúde, devido às condições de trabalho, e por lei
ucraniana, os mineiros podem se aposentar após 20 anos de serviço. Para as
mulheres que trabalham nessas indústrias há mais de sete anos, a idade de
aposentadoria também é reduzida. A possibilidade de receber o passaporte russo,
para tentar reclamar a reforma/aposentadoria russa, fará com que as pessoas um
pouco mais velhos de 40 anos vão se inscrever no programa.
Cidade
de Donetsk. Bairro de Kalinin.
O
Departamento local da polícia começou receber as listas no segundo dia após a
saída do decreto do Putin, em 26 de abril de 2019. Até o dia 15 de maio a lista
já tinha cerca de 600 nomes. Por dia aqui são recebidas 6-8 pessoas.
Eu
também me inscrevi: № 539 para o passaporte da “dnr” e № 468 para o passaporte
da federação russa – os números foram desenhados na palma da minha mão. Se ter
em conta que o escritório funciona quatro dias por semana, então a minha vez chegará
em cerca de 4 anos e 9 meses.
Foto: Irina Tumanova, NG |
—
Que não, será mais rápido – me acalma um titio de cabelos grisalhos. — Lhes prometem
alocar mais um funcionário.
Então,
é possível contar com cerca de dois anos e meio. Todo esse tempo é necessário
vir aqui de manhã das seis às nove para se registar. Caso contrário a pessoa é
riscada da lista. Desde ontem, devido aos “riscados”, a fila encurtou imediatamente
em 25 nomes.
Aqueles
que diligentemente se registavam todos os dias, nas primeiras duas semanas
avançaram 101 posições. Assim, a fila para receber o passaporte da “dnr” na
realidade durará apenas dois meses e meio. Após mais alguns meses de espera, pessoa
receberá o documento. O problema é que a fila da recepção do passaporte russo é
mais curta. Se a minha vez chegar, sem eu receber o passaporte da “dnr”, terei
que marcar a fila novamente.
Mas
o passaporte da “dnr” não é dado à todos. Primeiro, a pessoa precisa de provar
que estava residente da “república” em 12 de maio de 2014. Portanto, a lista
onde sou 539ª é apenas para verificação dos documentos.
«Quando
receberemos a ordem…»
No
primeiro dia de entrega dos documentos, 6 de maio de 2019, houve lutas corporais
por um lugar na fila do escritório regional de passaportes em Donetsk. Agora o
escritório serve apenas os funcionários de empresas estatais (EE) e
funcionários públicos da “república”. O serviço é mais caro do que aos outros:
eles pagam 7.100 rublos (109,69 dólares) por um conjunto completo de dois
passaportes russos (interno e externo). Mas essas pessoas explicam que precisam
de passaportes russos muito mais do que outros. Pois temem as represálias por
parte da Ucrânia pelo seu serviço à “república” não reconhecida.
«Queremos
simplesmente qualquer tipo de reconhecimento»
Não
vi nada de novo nos balcões de emissão de passaportes de Luhansk em comparação
com os de Donetsk: as mesmas filas, as mesmas listas, as mesmas pessoas
infelizes de plantão desde cinco da manhã.
Foto: Irina Tumanova, NG |
—
Você está na primeira consulta? — uma mulher com a pasta vem até mim e me instrui
claramente: — Se recorde do seu número. Serve para a validação dos documentos. Não
é necessário ficar aqui. A chamada é às cinco da tarde e às oito da manhã. Se
você não vier, sairá da lista. Terá que marcar a fila novamente. Você será
verificada, receberá um talão de pagamento – vá para a próxima fila.
Ex-banqueiro
Kostia (Kostiantyn) conta a sua história.
—
Tinha um emprego – o levaram. — Eu preciso desesperadamente do passaporte russo!
Ainda não temos nem Ucrânia, nem a Rússia. Eu trabalhei num banco...
—
Todos esperávamos, que nos libertassem. Alguns esperavam que Ucrânia o fizesse,
outros esperavam pela Rússia. Agora entendemos: somos dispensáveis. E de alguma
forma eu paro de gostar disso.
—
Você não gostaria que tudo volte como era em 2014? – pergunto com cuidado.
—
Honestamente? Bem, eu ... Não, você não pense que eu sou contra a Rússia! Eu até
sou russo por etnicidade, mas ninguém nos perguntou quando tudo aconteceu.
—
Como não perguntou? Vocês tiveram um referendo? Você participou no referendo [de
2014]?
—
Não, eu não participei.
—
Mas quer um passaporte?
—
Claro que sim. Queremos simplesmente qualquer tipo de reconhecimento. Se
começamos tudo isso, então deve haver algum reconhecimento. E não como na
Transnístria. Ou na Abecásia.
Foto: Irina Tumanova, NG |
Donetsk
em 2014 era uma cidade bonita e próspera, nas ruas principais havia butiques
caros. Agora os moradores locais estão brincando, dizem que têm uma nova rede
de lojas “À Arrendar”. Esta palavra está colocada em várias montras. No lugar
de butiques – as lojas de roupas da segunda mão.
As
grandes redes comerciais deixaram o território não reconhecido, roupas são
importadas da Rússia. As roupas mais chiques – atrás de vitrinas com as placas “Roupas
da Polónia”, de alguma forma são contrabandeadas por aqueles que possuem o
passaporte ucraniano, isento de visto da UE.
—
Antigamente eu gostava de visitar as lojas second-hand,
mas agora parei, – cara da jornalista Oksana se escurece. — Sabe, geralmente há
um cheiro específico de roupas de segunda mão – após o processo de saneamento. Depois
entro – não há cheiro. Finalmente, pensei, eles fizeram alguma coisa para
evitar o cheiro. Cheguei mais perto e percebi que as roupas têm o cheiro do
armário.
E
aqui fiquei como se fosse baleada: meu Deus, são roupas vindas dos saqueadores...
Depois
li nas redes sociais: uma mulher viu seus vestidos numa das lojas de second-hand, eram peças exclusivas,
importadas, a sua casa foi saqueada... É impossível verificar isso, mas é
claro, coisa assustadora para saber.
Serhiy,
com quem conversamos na estação ferroviária de Donetsk, não pretende pedir o
passaporte russo.
—
Você participou no referendo [de 2014]? – pergunto.
—
Infelizmente fui. E votei... Nos assustaram com os “banderistas” [nacionalistas
ucranianos]. O povo acreditou. Quando começaram os combates, quando aqui começou
o caos, ficou logo claro para onde estávamos indo. Instantaneamente. Mas as
pessoas por inércia ainda acreditavam que tudo ficaria bem.
—
Ilegalidade – por parte da Ucrânia?
—
Vinda dos locais! As pessoas simplesmente eram atiradas/jogadas fora dos seus carros,
mortas. Os apartamentos eram ocupados. Os marginais locais faziam tudo isso. Aqueles
que nunca trabalharam na vida. Eles primeiro correram lá! Toda a sua vida ele
não fez nada – e aqui já estava conduzir um “Land Cruiser”. Com bolsos cheios
de dinheiro. Num mês. De onde veio isso? O meu carro tentaram me arrancar algumas
vezes. Simplesmente rua, aparecem e começam...
—
As pessoas provavelmente tinham medo de bombardeamentos? Os ucranianos
bombardearam as casas pacíficas?
—
Dizer a verdade?.. Ucrânia atirava apenas contra nas posições da onde era
alvejada. Se fogo vinha dos [bairros] de setor privado, respondiam naqueles
alvos. Os bombardeios em larga escala, como dizem, é simplesmente uma
propaganda.
—
Muita gente entende isso agora?
—
Bem, agora, claro, estão percebendo as coisas.
—
Se de repente Ucrânia...
—
Voltará aqui? Será bem-vinda e recebida de braços abertos! E serei primeiro à
correr.
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