Oficial ucraniano Yuliy Mamchur, comandante da base aérea, desarmado, ameaçado por três militares russos, sem sinais de identificação, na invasão da Crimeia |
Apesar
do profundo desejo ucraniano de não ver a Rússia como a parte do conflito, a
realidade dos factos e a presença documentada de militares russos em Donbas
provam o contrário.
por:
INNA OHNIVETS, a Embaixadora da Ucrânia em Portugal (*)
O
comentário russo de 31 de Março lança uma série de alusões históricas e
acusações contemporâneas contra a Ucrânia, a sua história, soberania e
realidade atual. Dado que o público português merece o melhor esclarecimento
sobre os temas, importa rever ao pormenor uns pontos abordados.
Começando
pelo ano longínquo de 1654, é de recordar que a República dos Cossacos, perante
uma decisão difícil, optou por um acordo estratégico com o vizinho moscovita
cujo texto original foi definitivamente perdido nos arquivos russos. Como tal,
hoje é impossível saber ao certo os direitos e deveres das partes.
Praticamente
na mesma época, Ucrânia foi visitada pelo engenheiro e cartógrafo militar
francês G. L. de Beauplan, que deixou o livro de memórias, publicado em 1651 e
intitulado, à partir da sua 2.ª edição, de Description d'Ukranie.
Anteriormente, em 1648, de Beauplan produziu o mapa da Ucrânia (que pode ser
consultado na biblioteca do Congresso dos EUA), uma das primeiras menções da
Ucrânia na cartografia europeia. O mesmo mapa permite perceber que a atual
Rússia era conhecida na época como Moscóvia e que as suas fronteiras
geográficas não correspondiam às fronteiras atuais.
Após
séculos de dominação colonial do império russo e na sequência da sua derrota na
I Guerra Mundial, em Janeiro de 1918 surgiu em Kyiv a República Popular da
Ucrânia, que estabeleceu relações diplomáticas com mais de 20 países europeus,
mas de imediato sofreu as pressões, ameaças e ultimatos vindos do poder
soviético sempre com o pretexto de “apenas ajudar o povo ucraniano”. Mesmo
reconhecendo formalmente a Ucrânia independente através do Tratado de
Brest-Litovsk de 1918, o governo russo criou, apoiou, armou e financiou as
forças e formações que possibilitaram a criação da “República Soviética
Socialista da Ucrânia”, dependente de Moscovo e com a soberania extremamente
limitada, os restos da qual foram perdidos após a consolidação do poder
estalinista.
República Popular da Ucrânia, cidade de Kyiv, praça de Sofia, 1918 |
A
colectivização forçada, a destruição das relações económicas no campo, a
apreensão e confisco organizado e centralizado dos cereais, mesmo pertencentes
ao fundo da colheita futura, resultaram em Holodomor. O número de ucranianos
mortos, em resultado do Holodomor, é avaliado em mais de 7,5 milhões de
vítimas, perfeitamente equiparado às perdas populacionais da Ucrânia em toda a
II Guerra Mundial.
O
jurista, advogado e pesquisador americano R. Lemkin, autor do próprio termo
“genocídio”, foi absolutamente peremptório em classificar o Holodomor de
genocídio soviético, tal como atesta o título da sua obra dedicada ao tema,
Soviet Genocide in the Ukraine (1953).
Passando
ao empenhamento da Ucrânia nos Acordos de Minsk, importa salientar que o
cessar-fogo e a retirada das armas pesadas da linha de contato só são possíveis
com o empenho de todas as partes envolvidas. A retirada do exército e dos
equipamentos militares ucranianos, de uma forma unilateral, apenas irá premiar
as organizações terroristas, ativas nos territórios ucranianos temporariamente
ocupados, e não irá contribuir para os esforços de paz na região.
O cidadão russo e líder dos terroristas de Donbas, Arsen "Motorola" Pavlov |
A
Ucrânia declara que está absolutamente aberta e deseja firmemente a presença
dos observadores na linha de contato. No entanto, a presença militar russa, que
é rejeitada, quer pela Rússia, quer pelos separatistas pro-russos, impede a
monitorização da missão da OSCE, abatendo, por exemplo, os drones usados pela
missão.
Examinando
os relatórios diários da missão da OSCE, podemos constatar que as forças
conjuntas russo-separatistas não sentem nenhuma falta de munições, equipamentos
militares, os seus operadores qualificados ou combustível para operar os mesmos.
A Ucrânia não acredita, nem tão pouco, na versão lançada pela diplomacia russa
de que todos estes materiais foram “achados” nas minas em armazéns da época
soviética em Donbas.
Apesar
do profundo desejo ucraniano de não ver a Rússia como a parte do conflito, a
realidade dos factos e a presença documentada de militares russos em Donbas
provam o contrário.
* publicado no jornal
português Público (12/04/2017).
A autora escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico.
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